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5. O reino de Judá
5.1. Os reis de Judá
Nome | Data | Duração |
---|---|---|
Roboão | 931-914 a.C | 17 anos |
Abian | 914-912 | 3 anos |
Asa | 912-871 | 41 anos |
Josafá | 871/0-848 | 23 anos |
Jorão | 848-841 | 7 anos |
Ocozias | 841 | 1 ano |
Atalia | 841-835 | 6 anos |
Joás | 835-796 | 40 anos |
Amasias | 796-767 | 29 anos |
Ozias | 767-739 | 28 anos |
Joatão | 739-734 | 5 anos |
Acaz | 734/3-716 | 18 anos |
Ezequias | 716/15-699/8 | 17 anos |
Manassés | 698-643/2 | 55 anos |
Amon | 643/2-640 | 2 anos |
Josias | 640-609 | 31 anos |
Joacaz | 609 | 3 meses |
Joaquim | 609-598 | 11 anos |
Joaquin | 598/7 | 3 meses |
Sedecias | 597-586 | 11 anos |
5.2. A reforma de Ezequias e a invasão de Senaquerib
Em Judá, a dinastia davídica durou até o fim do reino. Não houve tantas lutas e golpes de Estado, como no norte. Um ou outro assassinato, coisas normais nas cortes.
De Roboão a Joatão (de 931 a 734 a.C.) temos pouco a assinalar. Resumidamente:
. o ataque e a destruição de boa parte do país promovida pelo faraó Sheshonq (Shishaq) em 929 a.C., no tempo de Roboão
. os conflitos constantes com o norte
. a tensão sempre presente entre a aristocracia de Jerusalém e a massa da população rural. Também a tensão entre o javismo e os cultos e costumes estrangeiros e especialmente o culto a Baal, forte na região
. a derrota de Amasias por Joás, de Israel, e o saque de Jerusalém pouco depois de 796 a.C. pelas tropas do norte.
Retomamos a história de Judá com Acaz (734/3-716 a.C.).
Como vimos, a ameaça conjunta das forças israelitas do norte e sírias em 734 a.C. levou o desprotegido Judá a invocar o auxílio da Assíria. Judá teve a proteção assíria, mas perdeu sua independência. Acaz acabou vassalo da Assíria, pagando-lhe tributo e rendendo homenagem aos deuses assírios.
Is 7,1-17 e a guerra siro-efraimita
Is 7,1-9 relata o encontro de Isaías com Acaz, às vésperas da guerra siro-efraimita, em 734 ou 733 a.C. Os reis de Damasco e de Samaria planejam invadir Judá para depor Acaz e no seu lugar colocar um rei não-davídico – o filho de Tabeel – que envolveria o país na coalizão anti-assíria.
Isaías vai ao encontro de Acaz acompanhado por seu filho Sear-Iasub (Um-resto-voltará), indicação ou sinal de esperança frente à crítica situação que se desenha. Acaz está cuidando das defesas de Jerusalém.
Segundo Isaías, a dinastia davídica está ameaçada por dois fatores: os planos inimigos e o medo do rei. Os planos inimigos fracassarão, o temor e as alianças políticas farão o rei de Judá fracassar. O que dá estabilidade é a confiança em Iahweh. O que Isaías diz a Acaz, segundo os vv. 4-9 do capítulo 7, é o seguinte:
“Toma as tuas precauções, mas conserva a calma e não tenhas medo nem vacile o teu coração diante dessas duas achas de lenha fumegantes, isto é, por causa da cólera de Rason, de Aram, e do filho de Romelias, pois que Aram, Efraim e o filho de Romelias tramaram o mal contra ti, dizendo: ‘Subamos contra Judá e provoquemos a cisão e a divisão em seu seio em nosso benefício e estabeleçamos como rei sobre ele o filho de Tabeel’.
Assim diz o Senhor Iahweh:
Tal não se realizará, tal não há de suceder,
porque a cabeça de Aram é Damasco, e a cabeça de Damasco é Rason; (…)
A cabeça de Efraim é Samaria e a cabeça de Samaria é o filho de Romelias.
Se não o crerdes, não vos mantereis firmes”.
Parece faltar alguma coisa ao texto. Há várias propostas:
“e a cabeça de Jerusalém é Iahweh”
ou
“e a cabeça de Jerusalém é a casa de Davi”
ou
“mas a capital de Judá é Jerusalém
e a cabeça de Jerusalém é o filho de Davi”.
Is 7,10-17 relata novo encontro de Isaías com Acaz, desta vez, talvez, no palácio, no qual o profeta oferece ao rei um sinal de que tudo se arranjará diante da ameaça siro-efraimita. Com a recusa do rei em pedir um sinal a Iahweh, Isaías muda de tom e relata a Acaz que Iahweh, por própria iniciativa, dar-lhe-á um sinal. Que consiste no seguinte: a jovem mulher (‘almâh) dará à luz um filho, seu nome será Emanuel (Deus-conosco) e ele comerá coalhada e mel até que chegue ao uso da razão. Até lá Samaria e Damasco serão destruídas.
“Pois sabei que o Senhor mesmo vos dará um sinal (‘ôth):
Eis que a jovem está grávida (hinnêh hâ’almâh hârâh)
e dará à luz um filho
e por-lhe-á o nome de Emanuel (‘immânû ‘êl).
Ele se alimentará de coalhada e de mel
até que saiba rejeitar o mal e escolher o bem.
Com efeito, antes que o menino saiba rejeitar o mal e escolher o bem,
a terra, por cujos dois reis tu te apavoras, ficará reduzida a um ermo” (Is 7,14-16).
Os LXX, na sua versão grega da Bíblia, traduziram ‘almâh por parthénos (= virgem). Mt usou a versão dos LXX (cf. Mt 1,23): “Idoù he parténos (= a virgem) en gastrì hécsei (= conceberá) kai técsetai hyón…”. Entretanto, a palavra hebraica para designar virgem é bethûlâh. A palavra ‘almâh significa uma jovem mulher, virgem ou não. Em muitos casos designa uma mulher jovem já casada. Além do que esta jovem é uma pessoa concreta, conhecida e, provavelmente, presente na ocasião, porque o texto diz: “Eis aqui (hinnêh) a (hâ) jovem…”.
Do que é razoável concluir que a mulher aqui chamada de ‘almâh é muito provavelmente a jovem rainha, talvez designada assim antes do nascimento do primeiro filho.
É bem provável que o menino seja Ezequias, filho de Acaz. Isaías falou a Acaz nos primeiros meses de 733 a.C., e Ezequias teria nascido no inverno de 733-32 a.C.
O nascimento do menino garante, desta maneira, a continuidade da dinastia davídica, atualizando a promessa e resumindo a aliança de Iahweh com o povo através de seu nome, Emanuel (‘immânû ‘el), que evoca fórmula frequente no AT, especialmente no deuteronomista:
Dt 20,4: “Porque Iahweh vosso Deus marcha convosco”
Js 1,9: ” Porque Iahweh teu Deus está contigo”
Jz 6,13: “Se Iahweh está conosco (weyêsh Yhwh ‘immânû)”
1Sm 20,13: “E que Iahweh esteja contigo”
2 Sm 5,10: “Davi ia crescendo, e Iahweh, Deus dos Exércitos, estava com ele”.
Por outro lado, o sinal não seria, segundo alguns, de salvação, mas de castigo. Acaz é rejeitado porque não confia em Iahweh. O alimento do menino, do mesmo modo, supõe um período de devastação e miséria em Judá, como consequência da política filo-assíria de Acaz. É mais provável, entretanto, que seja um alimento de tempos de abundância, como sugerem as passagens de Ex 3,8.17 e 2Sm 17,29.
Para Acaz, a esperança reapareceu com seu filho Ezequias. Associado ao trono desde criança, em 728/7 a.C., ao ser coroado em 716/15 a.C. este rei começou uma reforma no país para tentar debelar a crise.
Um dos alvos da reforma teria sido a ruptura com práticas cultuais não javistas dos agricultores. Entre outras coisas, teria abolido os lugares altos (bâmôt), quebrado as estelas (matsêbôt), cortado o poste sagrado (‘asherâh). Até mesmo do Templo de Jerusalém Ezequias teria retirado símbolos dos cultos da fertilidade, como uma serpente de bronze. É o que nos conta 2Rs 18,4, embora aqui a OHDtr tente apresentar uma justificativa para a presença desta serpente de bronze no Templo (“que Moisés havia feito, pois os israelitas até então ofereciam-lhe incenso” – cf. Nm 21,8-9).
Entretanto, há autores, como Finkelstein/Silberman e Liverani, que apresentam uma perspectiva um pouco diferente: a “reforma” de Ezequias não teria sido a restauração de uma estrutura desmantelada ao longo do tempo, mas uma inovação. A idolatria dos judaítas não foi um abandono de seu anterior monoteísmo, pois esta era a forma como a população de Judá tinha praticado seu culto por centenas de anos. A reforma sinaliza na direção da transformação de Iahweh de Deus nacional, convivendo com os deuses regionais, em Deus exclusivo[1].
A destruição de Samaria levou refugiados de Israel para Jerusalém, pois novas estruturas foram construídas, como bairros novos, ampliação de muralhas e o túnel que levava as águas da fonte Gihon para o reservatório de Siloé. Sobre este último feito testemunham 2Rs 20,20 e a Inscrição de Siloé, que celebra o encontro das duas turmas de escavadores[2].
O fato é que Jerusalém superou seu antigo isolamento e, ancorada na política assíria, cresceu de 5 para 60 hectares e de cerca de 1000 para algo em torno de 15 mil habitantes. E em Judá, no final do século VIII a.C., podem ser contados cerca de 300 assentamentos e uma população de uns 120 mil habitantes. A fortaleza de Laquis, na Shefelá, se desenvolveu extraordinariamente. Outros fortalezas foram construídas na mesma região. Surge portanto, só agora, uma elite judaíta e se formam as estruturas de um verdadeiro Estado. Todas estas mudanças trazem consigo o fenômeno do profetismo, bem mais antigo no reino de Israel, mas só a partir deste momento tomando forma bem definida em Jerusalém, com Isaías (Is 1-39) e Miqueias, duas vozes formidáveis em defesa do javismo[3].
Enquanto isso, na Assíria, Senaquerib subiu ao trono em 705 a.C. e imediatamente teve que enfrentar nova revolta na Babilônia. Todas as províncias do oeste então se levantaram. Acreditavam ter chegado o momento da libertação. O Egito prometeu ajuda, mais uma vez. A coalizão integrava Tiro, com outras cidades fenícias; Ascalon e Ekron, com algumas cidades filisteias; Moab, Edom e Amon; e Ezequias, de Judá, entrou como um dos líderes da revolta. Fortificou suas defesas e preparou-se cuidadosamente para esperar a Assíria. Senaquerib não se fez de rogado e já em 701 a.C. ele começou por Tiro, vencendo-a. Logo os reis de Biblos, Arvad, Ashdod, Moab, Edom e Amon se entregaram e pagaram tributo a Senaquerib. Somente Ascalon e Ekron, juntamente com Judá, resistiram. Senaquerib tomou primeiro Ascalon. Os egípcios tentaram socorrer Ekron e foram derrotados. E foi a vez de Judá. Senaquerib tomou 46 cidades fortificadas em Judá e cercou Jerusalém.
Testemunhos arqueológicos da devastação foram encontrados em várias escavações por todo o território. Especialmente significativos são a representação assíria da tomada de Laquis encontrada no palácio de Senaquerib em Nínive – hoje está no British Museum – e a escavação, feita pelos britânicos na década de 30 e por David Ussishkin, da Universidade de Tel Aviv, na década de 70 do século XX, da poderosa fortaleza, esta que era a segunda mais importante cidade do reino e protegia a entrada de Judá[4].
Entretanto, por motivos ainda hoje desconhecidos, talvez uma peste, Senaquerib levantou o cerco de Jerusalém e retornou à Assíria. A cidade voltou a respirar, no último minuto, mas teve que pagar forte tributo aos assírios. Não se sabe porque Jerusalém se salvou. 2Rs 19,35-37 diz que o Anjo de Iahweh atacou o acampamento assírio. Existe uma notícia de Heródoto, História II,141, segundo a qual num confronto com os egípcios os exércitos de Senaquerib foram atacados por ratos (peste bubônica?). Talvez Senaquerib tenha partido por causa de alguma rebelião na Mesopotâmia. Ou ainda: há autores que pensam que Jerusalém nem precisou ser sitiada para ser vencida. Nos Anais de Senaquerib se diz o seguinte:
“Quanto a Ezequias do país de Judá, que não se tinha submetido ao meu jugo, sitiei e conquistei 46 cidades que lhe pertenciam (…) Quanto a ele, encerrei-o em Jerusalém, sua cidade real, como um pássaro na gaiola…”.
Outra questão é se teria havido uma segunda campanha de Senaquerib na Palestina. De qualquer maneira, segundo os Anais de Senaquerib, o tributo pago por Ezequias ao rei assírio foi significativo:
“Quanto a ele, Ezequias, meu esplendor terrível de soberano o confundiu e ele enviou atrás de mim, em Nínive, minha cidade senhorial, os irregulares e os soldados de elite que ele tinha como tropa auxiliar, com 30 talentos de ouro, 800 talentos de prata, antimônio escolhido, grandes blocos de cornalina, leitos de marfim, poltronas de marfim, peles de elefante, marfim, ébano, buxo, toda sorte de coisas, um pesado tesouro, e suas filhas, mulheres de seu palácio, cantores, cantoras; e despachou um mensageiro seu a cavalo para entregar o tributo e fazer ato de submissão”[5].
Informação que concorda, em termos gerais, com a de 2Rs 18,13-16:
“No décimo quarto ano do rei Ezequias, Senaquerib, rei da Assíria, subiu contra todas as cidades fortificadas de Judá e apoderou-se delas. Então Ezequias, rei de Judá, mandou esta mensagem ao rei da Assíria, em Laquis: ‘Cometi um erro! Retira-te de mim e aceitarei as condições que me impuseres’. O rei da Assíria exigiu de Ezequias, rei de Judá, trezentos talentos de prata e trinta talentos de ouro, e Ezequias entregou toda a prata que se achava no Templo de Iahweh e nos tesouros do palácio real. Então Ezequias mandou retirar o revestimento dos batentes e dos umbrais das portas do santuário de Iahweh, que… rei de Judá, havia revestido de metal, e o entregou ao rei da Assíria”.
Manassés, filho e sucessor de Ezequias, para o Deuteronomista, é o oposto do pai: governou 55 anos como o pior rei de Judá, especialmente por ter restaurado os cultos não javistas. Por que teria Manassés feito isto? Acreditam Finkelstein e Silberman que a reorganização do território de Judá, agora sob a sombra da Assíria, implicou em alianças com lideranças clânicas que exigiram a volta aos cultos dos deuses da terra. Não foi a “maldade” de Manassés que implodiu o javismo, mas as suas necessidades econômicas é que trouxeram de volta o pluralismo cultual.
Colaborando com a Assíria e deslocando a população judaíta para outras regiões, depois de perder a fértil Shefelá, Manassés, como a arqueologia pode comprovar, desenvolveu significativa produção e exportação de óleo de oliva e explorou as rotas de comércio por onde passavam as caravanas que iam e vinham entre a Assíria e a Arábia. Importante, neste sentido, foram as escavações das instalações para a fabricação do óleo de oliva em Tel Miqne (= Ekron) – as maiores existentes em todo o Oriente Médio naquela época – e dos ossos de camelos adultos em Tell Jemmeh, uma localidade vizinha a Gaza. Entretanto, o filho de Manassés, Amon, ao sucedê-lo, foi assassinado, certamente por grupos prejudicados com o prosseguimento desta política. E Josias, com apenas oito anos, é declarado rei de Judá[6].
[1]. Cf. FINKELSTEIN, I. ; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão. São Paulo: A Girafa, 2003, p. 318; LIVERANI, M. Para além da Bíblia: História antiga de Israel. São Paulo: Loyola/Paulus, 2008, p. 199; DA SILVA, A. J. O Contexto da Obra Histórica Deuteronomista. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 88, p. 11-27, 2005.
[2]. A Inscrição de Siloé, em hebraico arcaico, do século VIII a.C., tem seis linhas. Foi descoberta em 1880 e, alguns anos depois, removida para o Museu de Istambul. Cf. foto, texto, tradução, explicação, bibliografia e links em HANSON, K. C. Siloam Inscription; BiblePlaces.com Hezekiah’s Tunnel. Também em FREEDMAN, D. N. (ed.) The Anchor Bible Dictionary on CD-ROM. New York: Doubleday & Logos Research Systems, [1992], 1997, verbete Siloam Inscription.
[3]. Neste ponto Finkelstein/Silberman e Liverani defendem, na esteira de Morton Smith, o nascimento do movimento só-Iahweh, fenômeno sobre o qual ainda não me convenci. Cf., para isso, DA SILVA, A. J. Resenha de FINKELSTEIN, I; SILBERMAN, N. A. The Bible Unearthed: Archaeology’s New Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York: The Free Press, 2001 (Tradução brasileira: A Bíblia não tinha razão).
[4]. Cf. as ruínas de Laquis ou Tell ed-Duweir em BiblePlaces.com Lachish. Links levam a fotos do relevo assírio da tomada da cidade. Texto e fotos podem ser vistos também em MAZAR, A. Arqueologia na terra da Bíblia: 10.000-586 a.C. São Paulo: Paulinas, 2009, p. 408-414. Cf. também os posts sobre a tomada de Laquis por Senaquerib em 701 a.C., publicados no Observatório Bíblico em 27.04.2020: 1, 2 e 3
[5]. BRIEND, J. (org.) Israel e Judá: Textos do Antigo Oriente Médio. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1997, p. 76.
[6]. Cf. FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia não tinha razão, p. 356-369.
Última atualização: 31.07.2023 – 07h22