O Codex Amiatinus 5

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O Codex Amiatinus 5

 

Fragmentos dos códices gêmeos do Amiatinus foram encontrados

No início de setembro de 1908 Cuthbert Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu, emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus.

Isso parece ter provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas por Ceolfrido, e, antesDE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. que mais investigações pudessem ser feitas, e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início de 1909. É geralmente conhecida pelo nome de “a Folha de Greenwell”. Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18.

Em retrospecto, Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de curiosidades antigas”.

Como Newcastle fica a menos de dez quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível, conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante quase vinte anos.

A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson (1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford, publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham, uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.

Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby, depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos de III-IV Reis.

A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow.

Em 1938, os fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico por mil libras.

Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo indeterminado na Biblioteca Britânica.

É possível que a folha de Greenwell também fosse proveniente do arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe enviado essas descobertas para que o assessorasse na identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua ajuda.

É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral de Worcester.

Evidência disso é que os arquivos de Willoughby também expeliram fragmentos semelhantes de um grande manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do século XI das escrituras de Worcester.

Sabemos que Offa, rei da Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia da sacra igreja”.

No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi saqueada pelos vikings em 794.

 

Como o Codex Amiatinus chegou à abadia de San Salvatore?

Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata. Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação pretendida por Ceolfrido.

O mosteiro dá para a Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma, e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade, essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca, Siena, Viterbo chegando enfim a Roma.

Qualquer um, em teoria até mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.

 

O relicário encontrado na abadia de San Salvatore

Um item interessante foi encontrado em San Salvatore na década de 1960. Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário. Isso foi publicado pela primeira vez em 1974.

O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil, um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros, muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do final do século VII.

Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês, exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais sobrevivem apenas em Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.

Christopher De Hamel (1950-)Um mosteiro numa estrada de peregrinação pode receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus, exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas chegaram juntas.

A comitiva de Ceolfrido devia sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua jornada.

Segundo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia.

A rota para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos nas encostas do monte Amiata.

Os monges ingleses estariam morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário.

Isso não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de 1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença.