Fim da guerra entre Roma e a Teologia da Libertação?

“O movimento eclesial e teológico da América Latina, conhecido como ‘teologia da libertação’, que depois do Vaticano II encontrou eco em todo o mundo, deve ser considerado, na minha opinião, entre as correntes mais significativas da teologia católica do século XX” (Gerhard Ludwig Müller, 2004).  

“Il movimento ecclesiale e teologico dell’America Latina, noto come ‘teologia della liberazione’, che dopo il Vaticano II ha trovato un’eco mondiale, è da annoverare, a mio giudizio, tra le correnti più significative della teologia cattolica del XX secolo” (Gerhard Ludwig Müller, 2004).

 

Roma e a Teologia da Libertação: fim da guerra – Gianni Valente: Vatican Insider. Traduzido para o português por Cepat e publicado por Notícias: IHU On-Line em 23/06/2013

“O movimento eclesial e teológico da América Latina, conhecido como ‘teologia da libertação’, que depois do Vaticano II encontrou eco em todo o mundo, deve ser considerado, na minha opinião, entre as correntes mais significativas da teologia católica do século XX”. Quem consagra a Teologia da Libertação com esta elogiosa e peremptória avaliação histórica não é nenhum representante sul-americano de tempos eclesiais do passado. O “certificado” de validade chega diretamente do arcebispo Gerhard Ludwig Müller, atual Prefeito do mesmo dicastério vaticano – a Congregação para a Doutrina da Fé – que durante os anos 1980, seguindo o impulso do Papa polonês e sob a direção do então cardeal Ratzinger, interveio com duas instruções para indicar os desvios pastorais e doutrinais que também incluíam os caminhos que as teologias latino-americanas haviam tomado.

A avaliação sobre a Teologia da Libertação não é uma declaração que escapou acidentalmente ao atual guardião da ortodoxia católica. O juízo, meditado, aparece nas densas páginas do volume do qual foi tirada a frase: uma antologia de ensaios escrita a quatro mãos, impressa na Alemanha, em 2004, e que agora está sendo publicada na Itália com o título “Da parte dos pobres, Teologia da Libertação, Teologia da Igreja” (Edizioni Messaggero Padova).

Atualmente, o livro aparece como um ato de encerramento das guerras teológicas do passado e dos resíduos bélicos que de tempos em tempos explodem para espalhar alarmes que representam ora interesses, ora pretextos. O livro é escrito pelo atual responsável pelo ex-Santo Ofício e pelo teólogo peruano Gustavo Gutiérrez, pai da Teologia da Libertação e inventor da fórmula utilizada para definir essa corrente teológica, cujas obras foram submetidas a exames rigorosos durante muito tempo pela Congregação para a Doutrina da Fé em sua longa temporada ratzingeriana, embora nunca tenha sido condenado.

O livro representa o resultado de um longo caminho comum. Müller nunca ocultou sua proximidade com Gustavo Gutiérrez, que conheceu em 1998 em Lima durante um seminário de estudos. Em 2008, durante a cerimônia para o doutorado honoris causa concedido ao teólogo Müller pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, o então bispo de Regensburg definiu como absolutamente ortodoxa a teologia de seu mestre e amigo peruano. Nos meses anteriores à nomeação de Müller como presidente do dicastério doutrinal, foi exatamente sua relação com Gutiérrez que foi evocada por alguns como prova da não idoneidade do bispo teólogo alemão para o posto que ocupou (durante 24 anos) o então cardeal Ratzinger.

Nos ensaios da antologia, os dois autores-amigos se complementam reciprocamente. Segundo Müller, os méritos da Teologia da Libertação vão além do âmbito do catolicismo latino-americano. O Prefeito indica que a Teologia da Libertação expressou no contexto real da América Latina das últimas décadas a orientação para Jesus Cristo redentor e libertador que marca qualquer teologia autenticamente cristã, justamente a partir da insistente predileção evangélica pelos pobres. “Neste continente”, reconhece Müller, “a pobreza oprime as crianças, os idosos e os doentes”, e induz muitos a “considerar a morte como uma escapatória”. Desde as suas primeiras manifestações, a Teologia da Libertação ‘obrigava’ as teologias de outras partes a não criar abstrações sobre as condições reais da vida dos povos ou dos indivíduos. E reconhecia nos pobres a “própria carne de Cristo”, como agora repete o Papa Francisco.

Justamente com a chegada do primeiro Papa latino-americano surge com maior força a oportunidade para considerar esses anos e essas experiências sem os condicionamentos dos furores e das polêmicas daquela época. Mesmo afastando-se dos ritualismos dos “mea culpa” postiços ou das aparentes “reabilitações”, hoje é muito mais fácil reconhecer que certas veementes mobilizações de alguns setores eclesiais contra a Teologia da Libertação eram motivadas por certas preferências de orientação política mais que pelo desejo de guardar e afirmar a fé dos apóstolos. Os que pagaram a fatura foram os teólogos peruanos e os pastores que estavam completamente submergidos na fé evangélica do próprio povo, que acabaram “triturados” ou na sombra mais absoluta. Durante um longo período, a hostilidade demonstrada para com a Teologia da Libertação foi um importante fator para favorecer brilhantes carreiras eclesiásticas.

Em um dos textos, Müller (que numa entrevista de 27 de dezembro de 2012 havia expressado a hipótese do cenário de um Papa latino-americano depois de Ratzinger) descreve sem meias palavras os fatores político-religiosos e geopolíticos que condicionaram certas “cruzadas” contra a Teologia da Libertação: “Com o sentimento triunfalista de um capitalismo que, provavelmente, se considerava definitivamente vitorioso”, refere o Prefeito do dicastério doutrinal vaticano, “misturou-se também a satisfação de ter negado desta maneira qualquer fundamento ou justificação da Teologia da Libertação. Acreditava-se que o jogo com ela era muito simples, lançando-a no mesmo conjunto da violência revolucionária e do terrorismo dos grupos marxistas”. Müller também cita o documento secreto, preparado para o presidente Reagan pelo Comitê de Santa Fé, em 1980 (ou seja, quatro anos antes da primeira Instrução sobre a Teologia da Libertação), no qual se solicitava ao governo dos Estados Unidos da América que agisse com agressividade contra a “Teologia da Libertação”, culpada por ter transformado a Igreja Católica em “arma política contra a propriedade privada e o sistema da produção capitalista”. “É desconcertante neste documento”, destaca Müller, “a desfaçatez com que seus autores, responsáveis por ditaduras militares brutais e por poderosas oligarquias, fazem de seus interesses pela propriedade privada e pelo sistema produtivo capitalista o parâmetro do que deve valer como critério cristão”.

Após terem passado décadas de batalhas e contraposições, justamente a amizade entre os dois teólogos (o Prefeito da Doutrina da Fé e aquele que durante um tempo foi perseguido pelo mesmo dicastério doutrinal) alimenta finalmente uma ótica capaz de distinguir as obsoletas armações ideológicas do passado da genuína fonte evangélica que impulsionava muitas das rotas do catolicismo latino-americano depois do Concílio. Segundo Müller, Gutiérrez, com seus 85 anos (e que pretende viajar à Itália e passar por Roma em setembro), expressou uma reflexão teológica que não se limitava às conferências nem aos cenáculos universitários, mas que se nutria da seiva das liturgias celebradas pelo sacerdote com os pobres, nas periferias de Lima. Ou seja, essa experiência básica graças à qual – como disse sempre simples e biblicamente o próprio Gutiérrez – “ser cristão significa seguir a Jesus”. É o próprio Senhor, acrescenta Müller ao comentar a frase de seu amigo peruano, quem “nos dá a indicação de nos comprometermos diretamente com os pobres. Fazer prevalecer a verdade nos leva a estar do lado dos pobres”.

 

Sobre o livro:

MÜLLER, G. L.; GUTIÉRREZ, G. Dalla parte dei poveri: Teologia della liberazione, teologia della Chiesa. Padova: EMP, 2013, 208 p. – ISBN 9788825036022 (publicação prevista para julho de 2013).

O original em alemão: An der Seite der Armen: Theologie der Befreiung. Augsburg: Sankt Ulrich Verlag, 2004, 184 p. – ISBN 9783936484403.

 

O texto original, em italiano:

Teologia della liberazione e Roma, la guerra è finita – Gianni Valente: Vatican Insider 21/06/2013

«Il movimento ecclesiale e teologico dell’America Latina, noto come “teologia della liberazione”, che dopo il Vaticano II ha trovato un’eco mondiale, è da annoverare, a mio giudizio, tra le correnti più significative della teologia cattolica del XX secolo». A consacrare la teologia “liberazionista” con questa lusinghiera e perentoria valutazione storica non è qualche attempato reduce sudamericano di stagioni ecclesiali tramontate. L’attestato di merito arriva direttamente dall’arcivescovo Gerhard Ludwig Müller, Prefetto in carica dello stesso dicastero vaticano – la Congregazione per la dottrina della fede (CdF) – che negli anni Ottanta, su impulso del Papa polacco e sotto la guida dell’allora cardinale Ratzinger,  intervenne con ben due istruzioni per segnalare le deviazioni pastorali e dottrinali che pure incombevano sui cammini imboccati dalle teologie latino-americane.

La decisa valorizzazione della Tdl non è una boutade sfuggita per incidente all’attuale custode dell’ortodossia cattolica. Lo stesso, soppesato giudizio pervade le dense pagine dell’intero volume da cui la frase è tratta: una raccolta di saggi scritta a quattro mani, già stampata in Germania nel 2004, che ora sta per essere pubblicato anche in Italia con il titolo Dalla parte dei poveri. Teologia della liberazione, teologia della Chiesa (Edizioni Messaggero Padova/Emp).

Il volume oggi appare quasi come un atto di congedo dalle guerre teologiche del passato e dai residuati bellici che di tanto in tanto vengono fatti brillare per spargere allarmi interessati quanto pretestuosi. A firmarlo, insieme all’attuale responsabile dell’ex Sant’Uffizio, è il teologo peruviano Gustavo Gutiérrez,  padre nobile della Teologia della liberazione, inventore della formula stessa usata per definire quella corrente teologica, le cui opere furono sottoposte per lungo tempo all’esame rigoroso della CdF nella sua lunga stagione ratzingeriana, senza mai subire alcuna condanna.

Il libro a due firme rappresenta il sigillo di un lungo cammino comune. Müller non ha mai nascosto la sua prossimità con Gustavo Gutièrrez, che ha conosciuto nel 1988 a Lima nel corso di un seminario di studio. Nel 2008, durante la cerimonia per la laurea honoris causa concessa al teologo Müller dalla Pontificia Università cattolica del Perú, l’allora vescovo di Ratisbona aveva definito come pienamente ortodossa la teologia del suo maestro e amico peruviano. Nei mesi che hanno preceduto la nomina di Müller alla guida del Dicastero dottrinale, proprio la sua vicinanza a Gutiérrez era stata evocata da alcuni come prova della non idoneità del vescovo-teologo tedesco al ruolo occupato in precedenza – per 24 lunghi anni  – dal cardinale Ratzinger.

Nei saggi contenuti nel volume, i due autori-amici si forniscono assist a vicenda. Secondo Müller i meriti della Teologia della liberazione travalicano l’ambito del cattolicesimo latinoamericano. Il Prefetto ripete che la Tdl ha espresso nel contesto reale dell’America Latina degli ultimi decenni l’orientamento a Gesù Cristo redentore e liberatore che segna ogni teologia autenticamente cristiana, proprio a partire dalla riaffermata predilezione evangelica per i poveri. «In quel Continente» riconosce Müller «la povertà opprime bambini, vecchi, malati», inducendo molti a «considerare la morte come una via d’uscita». Già al suo primo apparire, la Tdl “costringeva” le teologie elaborate altrove a non fare astrazione delle condizioni reali di vita dei popoli e dei singoli. E riconosceva nei poveri la «carne stessa di Cristo», come adesso ripete Papa Francesco.

Proprio con l’avvento del primo Papa latinoamericano emerge con più forza la chance di guardare a quegli anni e a quelle esperienze senza essere condizionati dai furori polemici di allora. Pur sottraendosi al ritualismo dei mea culpa posticci o delle  riabilitazioni di facciata, oggi è più facile riconoscere che certe veementi mobilitazioni di settori ecclesiali contro la Tdl erano mosse da preferenze di orientamento politico più che dal desiderio di custodire e affermare la fede degli apostoli. A farne le spese furono anche teologi e pastori totalmente immersi nella fede evangelica del proprio popolo, finiti nel tritacarne o nel cono d’ombra. Per un lungo periodo, l’ostilità ostentata alla Tdl è stato un fattore prezioso per favorire brillanti ascese di carriera ecclesiastica.

In uno dei suoi interventi, Müller (che in un’intervista del 27 dicembre 2012 aveva ipotizzato lo scenario di un Papa latinoamericano dopo Ratzinger) descrive senza indugi i fattori politici e geo-politici che condizionarono certe “crociate” contro la Tdl: «Al sentimento trionfalistico di un capitalismo, che probabilmente si riteneva definitivamente vittorioso» riferisce il Prefetto del dicastero dottrinale vaticano «si mescolò anche la soddisfazione di aver così tolto qualsiasi fondamento e giustificazione alla tdl. Si pensò di aver gioco facile con essa, buttandola nello stesso fascio della violenza rivoluzionaria e del terrorismo di gruppi marxisti». Müller  fa riferimento anche al documento segreto, allestito per il presidente Reagan dal Comitato di Santa Fé nell’anno 1980 (cioè 4 anni prima della prima Istruzione vaticana sulla Tdl), dove si sollecitava il governo degli Stati Uniti d’America a procedere in maniera aggressiva contro la «Teologia della liberazione», rea di aver trasformato la Chiesa cattolica in  «arma politica contro la proprietà privata e il sistema della produzione capitalista». «È sconvolgente in questo documento» sottolinea Müller «la sfrontatezza con la quale i suoi estensori, responsabili di dittature militari brutali e di potenti oligarchie, fanno del loro interesse per la proprietà privata e per il sistema produttivo capitalistico il parametro di ciò che deve valere come criterio cristiano».

Dopo aver attraversato i decenni concitati delle battaglie e delle contrapposizioni, proprio l’amicizia tra i due teologi – il Prefetto dell’ex sant’Uffizio e quello un tempo inquisito dallo stesso dicastero dottrinale – alimenta uno sguardo finalmente in grado di discernere le caduche impalcature ideologiche del passato dalla genuina sorgente evangelica che animava tanti percorsi del cattolicesimo latinoamericano dopo il Concilio. Agli occhi di Müller, proprio l’85enne Gutièrrez – che ha in programma di venire in Italia e passare anche a Roma il prossimo settembre – ha espresso una riflessione teologica che non si estenuava nelle conferenze e nei cenacoli universitari, ma traeva la sua linfa dalle liturgie celebrate dal sacerdote con i poveri, nelle periferie degradate di Lima. Cioè da quella esperienza elementare per cui – come dice in maniera semplice e biblica lo stesso Gutiérrez – «Essere cristiani significa seguire Gesù». È il Signore stesso – aggiunge Müller, commentando quella frase del suo amico peruviano – che «ci dà l’indicazione di impegnarci in modo diretto per i poveri. Fare la verità ci porta a stare dalla parte dei poveri».

 

Sobre o Documento de Santa Fé: conferir o texto aqui e informações aqui. Em espanhol.

 

E leia também:

(…) os conselheiros de Ronald Reagan recorriam, no documento de Santa Fé de maio de 1980, ao clássico paradigma explicativo policial – a “infiltração”: “A política exterior dos Estados Unidos deve começar a afrontar (e não somente reagir a posteriori) a teologia da libertação… Na América Latina o papel da Igreja é vital para o conceito de liberdade política. Infelizmente, as forças marxistas-leninistas utilizaram a Igreja como arma política contra a propriedade privada e o sistema capitalista de produção, infiltrando a comunidade religiosa de idéias mais comunistas que cristãs” (Michael Löwy, Marxismo e cristianismo na América Latina, Lua Nova, no.19, São Paulo, Nov. 1989).