Mais interpretações sobre as religiões dos brasileiros

Os dados do Censo 2010 sobre o perfil religioso dos brasileiros, divulgados no dia 29 de junho pelo IBGE, continuam produzindo múltiplas interpretações.

Em Bênçãos traduzidas em consumo, reproduzido em Notícias: IHU de 23/07/2012, temos algumas interpretações de professores da USP, como José Reginaldo Prandi, João Baptista Borges Pereira e Lísias Nogueira Negrão.

 

Professores da USP comentam dados divulgados em junho pelo IBGE, que confirmam a queda do número de católicos e o crescimento dos evangélicos no Brasil.

A reportagem é de Sylvia Miguel e publicada pelo Jornal da Usp, 18-07-2012.

Nenhuma religião é estática. Ao passo que o catolicismo das Comunidades Eclesiais de Base se preocupava com questões sociais como direitos humanos e direito do trabalho, a Renovação Carismática foca o indivíduo e questões de foro íntimo, como liberdade sexual e direitos reprodutivos. Baseado na premissa de que as religiões se transformam de acordo com as demandas sociais em curso, não se pode pensar que a mudança do perfil religioso que se espera ocorrer no Brasil nas próximas décadas de fato resultará na extinção de algumas manifestações populares, tais como Carnaval, bumba-meu-boi, festas juninas e tantas outras que integram o calendário nacional há séculos.

As análises dos dados do Censo 2010 sobre religião, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no dia 29 de junho, mostram que o novo perfil religioso que se delineia revela uma infidelidade religiosa maior do que a fidelidade religiosa, reflexo da busca por realização pessoal.

“As religiões mudam na mesma proporção das transformações sociais. Uma coisa é se tornar evangélico. Outra coisa é sabermos que tipo de evangelismo teremos nos próximos 20 anos. Todas as religiões mudam com o passar do tempo. Não dá para saber se as religiões predominantes no futuro irão ou não incorporar a cultura atual”, diz o professor José Reginaldo Prandi, do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Prandi usa uma mudança recente significativa na igreja Episcopal norte-americana como exemplar dessa premissa. “Nos Estados Unidos, a igreja Episcopal, uma das mais tradicionais e representativas daquele país, há pouco anunciou que oficializará casamentos homossexuais”, compara.

De acordo com dados divulgados pelo IBGE, o número de católicos caiu 12,2%, para 64,6%, entre 2000 e 2010. No mesmo período, a população evangélica cresceu 44,1%, totalizando 22,2%. A diminuição de católicos ocorreu inclusive em números absolutos, mesmo com o aumento da população. Em 2010, o total era de 123,4 milhões, ante os 125 milhões de 2000.

O crescimento dos evangélicos foi impulsionado pelas igrejas de origem pentecostal, como Assembleia de Deus, Igreja Universal do Reino de Deus (Iurd), Nova Vida e outras. Nessa categoria, a Assembleia de Deus foi a que mais cresceu na década, passando de 8,4 milhões para 12,3 milhões de adeptos. A igreja fundada pelo bispo Edir Macedo, a Iurd, perdeu 229 mil fiéis, passando de 2,1 milhões para 1,8 milhão, segundo o Censo.

Os evangélicos pentecostais representam 13,3% do total de evangélicos no País, enquanto 4,8% são de evangélicos não determinados, ou seja, aqueles que não especificaram uma igreja na hora de responder ao Censo.

Os outros 4% são os evangélicos de missão ou protestantes históricos, como luteranos, presbiterianos e batistas. Essa categoria também perdeu adeptos, num movimento semelhante ao ocorrido entre católicos.

“As religiões mais tradicionais estão perdendo fiéis. Em algumas, como na Congregação Cristã do Brasil e também na luterana, isso se explica pela origem etnicizada. A primeira foi fundada por italianos. A luterana foi trazida por alemães. A mistura étnica acabou refletindo na perda de interesse pela igreja”, diz o professor João Baptista Borges Pereira, Professor Emérito do Departamento de Antropologia da FFLCH.

Cultura e lingeries

Na opinião do professor Borges Pereira, alguns aspectos da cultura popular brasileira poderão se modificar caso continue no mesmo ritmo o aumento do número de adeptos das religiões evangélicas pentecostais. Por outro lado, o professor não acredita no desaparecimento completo dessas manifestações culturais.

“O aspecto cultural e lúdico no Brasil nasceu dentro de um contexto de catolicismo popular e, portanto, havia uma perfeita harmonia entre o catolicismo e as manifestações culturais. Quanto disso irá se modificar não sabemos, porque há elementos não lineares que permitem diferentes leituras”, diz Borges Pereira.

Os elementos não lineares citados pelo antropólogo estão ligados à questão do puritanismo das religiões protestantes. “A proposta do puritanismo distingue dois elementos fundamentais, que são ‘o mundo’ e ‘nós, os eleitos e purificados’. Por esse aspecto, o crente tenderá a deixar de lado o que ele considera ser mundano, como carnaval e outros atos que destoem da sua crença”, diz.

Por outro lado, de alguma forma os pentecostais aderem a coisas do mundo, escamoteando o comportamento puritano, diz Borges Pereira. “Eles são sem ser. Por exemplo, há estudos sobre a mulher evangélica de fora para dentro, ou seja, comparando a dicotomia entre a sobriedade de seu corte de cabelo e vestuário e suas roupas íntimas. Embora seus trajes sejam sóbrios, usam lingeries escandalosas como um tipo de compensação”, compara o professor.

A não linearidade também vale para a análise feita pelo professor Lísias Nogueira Negrão, também da FFLCH. “A tendência do protestantismo mais tradicional e também dos pentecostais mais tradicionais é se afastar dessas festas. Por outro lado, os neopentecostais teriam uma tendência maior à abertura, no sentido de não rejeição. Ou seja, tenderiam a abarcar essas festas de forma a sacralizar o profano. Fazem o “carnaval de Cristo” e outros atos, até como tentativa evidente de catequizar”, afirma Negrão.

Segundo o professor Negrão, há correntes de pensamento que teorizam que alguns aspectos positivos da mudança de perfil religioso do Brasil poderá ser a melhoria na relação familiar e de gênero, já que o homem protestante é tido como mais preocupado com o atendimento familiar e tende a respeitar mais as suas esposas, afirma o sociólogo.

Há autores que vislumbram um retrocesso em questões de sexualidade, diz Negrão. “Tendo em vista a maior participação política desses grupos e inclusive com o aumento da bancada protestante na Câmara, poderia haver um retrocesso na vida sexual da sociedade em função da alta preocupação desses grupos, contrários à liberdade dos costumes. Os neopentecostais podem ser mais tolerantes quanto à questão da moral sexual, mas não formam a maioria”, afirma.

Ética do consumo

“A sociedade está enriquecendo e isso traz aspirações de consumo. As camadas que antes estavam fora do consumo agora têm condições de aumentar sua fruição de bens materiais e culturais e isso é inerente à mecânica da sociedade e do próprio capitalismo. O governo estimula o consumo, o capitalismo estimula o consumo. O consumo é a característica de uma sociedade que criou a possibilidade do surgimento de uma religião adequada à sociedade do consumo. É o que Max Weber chama de afinidade eletiva”, diz o professor Negrão, sobre a nova ética predominante entre os evangélicos pentecostais.

Segundo o professor Borges Pereira, entre os protestantes existe a valorização do trabalho, mas não no sentido weberiano. Os protestantes e sua conduta de valorização do trabalho, que permitiu o desenvolvimento do capitalismo, foi objeto da reflexão de Weber em A ética protestante e o espírito do capitalismo, um dos estudos fundadores da moderna sociologia.

O que os atuais protestantes valorizam, segundo Borges Pereira, é “o trabalho como meio de acumulação de prestígio, através do consumo”. Para ele, o atual protestante busca “bênçãos”, o que na opinião desses religiosos pode se dar através de objetos tão cobiçados. Sendo assim, o trabalho ganha um sentido diferente, afirma.

Negrão lembra que a ética do protestante histórico buscava uma rotinização do comportamento, tendo como consequência o enriquecimento. “O objetivo era buscar a santificação da vida. Para os protestantes atuais, em que predomina a chamada teologia da prosperidade, a igreja se torna um instrumento mágico de consecução de bens e fins materiais. Novamente, há vertentes distintas. Uma é a puritana, em que o progresso material é consequência da rotinização da vida. A outra é uma tendência mágica de instrumentalização religiosa para conseguir bens materiais”, afirma o sociólogo.

Ascensão social

Para o professor Borges Pereira, “não é possível explicar o crescimento do protestantismo no Brasil sem que isso seja associado a uma ascensão da classe E. Foi nessa faixa que ocorreu o maior aumento das vertentes pentecostais”, afirma.

O mesmo movimento social explicaria a queda expressiva dos adeptos das religiões afros, diz Borges Pereira. “O número de adeptos do candomblé e outras seitas afros caiu verticalmente. Esse fenômeno pode estar relacionado à ascensão da classe E, preocupada em escapar de estereótipos de que só pobre frequenta seitas afros. As igrejas evangélicas, então, lhes ofereceria a possibilidade de subir de classe”, analisa.

O uso da mídia entre as religiões é um fenômeno que insere a religião no contexto de mercadoria, ou seja, a religião e a fé tornaram-se parte da sociedade de consumo, diz Borges Pereira. “O indivíduo vive de símbolos e não só de essência e a religião seria então um simbolismo expressivo de classe. Sendo assim, as pessoas mudam comportamento como mudam vestuário.”

O que ainda precisa ser mais bem estudado, segundo o antropólogo, é a dinâmica refletida nos números do IBGE. “Atualmente, a infidelidade religiosa é maior que a fidelidade religiosa. É grande o número dos que se declaram sem religião. Por outro lado, já é considerada normal a movimentação dos pentecostais entre as igrejas dessa linha. Isso reflete uma dinâmica de busca pessoal que ainda precisa ser mais bem estudada”, afirma.

“Não é coincidência o fato de o maior número de adeptos do pentecostalismo estar entre as classes mais pobres e menos escolarizadas. O evangélico aprendeu que ele também tem direito de consumir e, nesse sentido, seu comportamento está mais parecido com o brasileiro comum. É uma ética que há 20 anos não se via nessa religião”, finaliza Prandi.

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