DA SILVA, V. Deus ouve o clamor do povo: teologia do êxodo. São Paulo: Paulinas, [2004] 2010, 113 p. – ISBN 8535614435
Há vários anos a Igreja dedica o mês de setembro para refletir sobre a Palavra Deus, já que este mês é dedicado à Bíblia. Este ano refletiremos o livro do Êxodo, mais especificamente os capítulos que se referem à travessia do mar dos juncos e a marcha no deserto.
Para nos ajudar na compreensão de tão importante texto e o que significa para nossa fé este episodio, nos apoiaremos na reflexão feita por Valmor da Silva no seu livro, de 11 capítulos, “Deus ouve o clamor do povo: Teologia do êxodo”, publicado pelas Paulinas.
Valmor da Silva nasceu em Santa Catarina na cidade de Laurentino, no dia 13 de novembro de 1951. Cursou Filosofia e Teologia em Ponta Grossa, PR, fez mestrado em exegese bíblica em Roma, e doutorou-se em Ciências da Religião na Universidade Metodista em São Paulo. Atualmente é Professor de Ciências da Religião na Universidade Católica de Goiás, em Goiânia, GO.
Valmor inicia seu livro nos explicando que, para compreendermos o que se passou a mais de três mil anos atrás, quando o povo de Deus saiu da terra do Egito, é preciso entender quem era este povo.
O autor começa definindo que êxodo é: saída, passagem, libertação, fuga, mudança de uma situação para outra. No caso do êxodo do Egito, é a saída de um grupo de escravos da opressão faraônica em direção à terra prometida.
Este evento se tornou modelo para vários momentos da história. E ficou na lembrança de tal modo que passou de geração em geração e se tornou profissão de fé daquela nação, conforme vemos em Dt 26,5-9.
A história de José do Egito, como nós a conhecemos, é a ponte que liga o Gênesis ao Êxodo. Contando a história de José, o autor bíblico quer fazer uma crítica ao modelo agrário imposto pelos faraós, ou seja, na política faraônica havia uma grande concentração de riqueza, justamente o oposto da forma tribal na qual viviam os israelitas. Este sistema imposto pelo Egito é chamado pelos estudiosos de modo de produção asiático.
Se faz necessário conhecer o Egito nesse período, que corresponde ao século XIII a.E.C. O Egito era governado neste período por um regime de dinastias e o Faraó da época era Ramsés II que fazia parte da XIX dinastia. A saída dos hebreus deste país pode ter acontecido neste período. Mas pode ter acontecido no período do sucessor de Ramsés II, Merneptá. Isso porque um documento chamado “estela de Merneptá”, gravado em pedra por volta de 1219 a.E.C. menciona um grupo chamado “Israel” presente em Canaã.
A forma de dominação dos egípcios em Canaã era a de cidades-Estados, ou seja, o território era dividido entre vários grupos e as famílias ricas que governavam estas cidades tinham autonomia, usando seu chefe o título de rei. Este sistema era frágil e sem muita segurança, o que facilitava a entrada de estrangeiros e povos marginalizados. Surge aí um novo grupo social, denominado hapiru. Os hapirus eram pessoas que viviam nas montanhas e perturbavam a paz nas cidades, saqueando-as e influenciando outras pessoas. Não constituíam um povo, mas, pelas lutas e atribulações que sofriam, faziam da sua vida uma luta revolucionária. Muitos historiadores asseguram que o termo bíblico hebreu tem sua raiz nos hapirus.
Mas uma pergunta intriga os estudiosos: o que foi o êxodo? Sabe-se que o evento aconteceu por volta do século XIII a.E.C. mas o que se questiona é como isso aconteceu. Com o surgimento de muitas guerras os reinos ficaram enfraquecidos e com o Egito não foi diferente. Com as quedas da vários reinos, surge um novo sistema político, recuperando a união tribal, a partir dos laços de sangue, ou seja, a família era a base desse novo sistema. A união desses vários grupos deu origem a um Estado, mas não governado por um rei. É provável que nessa época tenham surgido vários movimentos deste tipo, sendo o mais importante o de Moisés. “Os demais grupos assumiram a mesma história e comemoraram juntos como uma tradição tribal” (p. 24).
Como aconteceu a passagem do mar? O livro do Êxodo trás umas nuances interessantes. Primeiro diz que foi uma marcha popular dos filhos de Israel, mas não foi uma passagem milagrosa. Depois diz que pode ter sido uma perseguição por parte dos egípcios, ou ainda uma intervenção miraculosa por parte de Deus. Também não se descarta a possibilidade de ter havido um desentendimento no comando do exército do Faraó. Não é possível saber ao certo a história do êxodo, pois a narrativa bíblica não tem intenção de contar uma história, mas de transmitir um testemunho de fé.
Naturalmente a história de cada grupo contribuiu para que a liberdade acontecesse. Dentre eles se destaca o grupo de Moisés, que de acordo com a Bíblia, fugiu, ou foi expulso, ou ainda teve a permissão para sua saída do Egito. Isto talvez reflita experiências vividas por diferentes grupos em processo de libertação. O grupo do Sinai foi o que viveu a experiência do êxodo do deserto, que mais tarde se juntou ao grupo de Moisés. Há também o grupo abraâmico, assim chamado porque associado à Abraão. Possivelmente eram vários grupos seminômades, possuíam divindades familiares, nomeadas na Bíblia como o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó ou, ainda, o Deus dos pais. E havia os hapirus, que podem ser identificados com os camponeses oprimidos e revoltados das cidades-Estados de Canaã e de outros lugares… “Enfim, muitos êxodos estão na origem histórica de Israel. Vários grupos viveram a libertação. Muitas experiências animaram sua vida” (p. 29).
Mas, ainda no Egito, os hebreus, de acordo com a Bíblia, foram fecundos e se multiplicaram, tornando-se cada vez mais numerosos e poderosos. Em Ex 1,8-14 percebe-se um quadro com cores bastantes carregadas, para mostrar a opressão dos hebreus no Egito. Esse período pode ser o de Ramsés II, que não conheceu José, “mas não há nenhum traço, no texto bíblico, de sua identidade” (p. 32). Por medo de perder o poder, em virtude de o povo israelita ser numeroso e poderoso, constitui-se assim o trabalho escravo. Na verdade, um recrutamento forçado para trabalhos pesados que provocavam uma situação humilhante e um controle piramidal da população, típico da disciplina organizacional egípcia. Mas, diz o texto bíblico, uma situação interessante acontecia: quanto mais o povo era oprimido, mais crescia e se multiplicava, fato que fez o Faraó tomar medidas drásticas, como a matança de crianças do sexo masculino (Ex 1,15-22).
É digno de nota que as mulheres tiveram um papel fundamental dentro do processo de libertação: primeiro as parteiras, uma mãe astuciosa, uma irmã cúmplice, depois a filha do Faraó, que, com suas servas, apanharam o menino no Nilo. Mais tarde, no processo de libertação, a mulher de Moisés, Séfora. “O fato realça, sobretudo, a articulação das mulheres em todo o processo revolucionário da saída do Egito. Que Moisés, que nada! O êxodo é resultado da articulação de mulheres” (p. 35).
Entretanto, para compreendermos o êxodo precisamos olhar o grito de angústia e desespero dos oprimidos pelo sistema faraônico por três ângulos diferentes, pois este é um grito a três vozes:
. Primeiro, o Sacerdotal, escrito pelo sacerdotes no tempo do exilio da Babilônia, que quer recordar a presença de um Deus que se lembra da aliança, resgatando e libertando em vista do clamor dos pobres
. Segundo, o olhar Javista: para ele Deus conhece a aflição do povo e age para o libertar. Nesse caso, a opressão egípcia é trazida à memória para permitir uma crítica ao sistema salomônico, época deste escrito
. E terceiro, o olhar Eloísta, que tem como ponto de partida a missão de Moisés de libertar o povo da escravidão. Nota-se aqui uma evidente ligação com as narrativas de vocação profética.
A missão de Moisés, trilha caminhos de certo modo tortuosos, pois o líder tenta se livrar da missão com várias objeções:
. Primeiro não quer aceitar o chamado, fingindo humildade, respondendo ao Senhor: “Quem sou eu?” (Ex 3,11). Ora, quem poderia estar mais preparado do que Moisés, ele que morava com o Faraó até bem pouco tempo?
. Segundo, simulando falta de conhecimento, ele vai perguntar pelo nome de Deus (Ex 3,13). Tendo passado algum tempo pastoreando ovelhas na região, certamente já tinha ouvido falar do Deus daquela região…
. Outra objeção é o pretexto da falta de fé do povo que não acreditaria nele (Ex 4,1).
. Ainda outra objeção é dizer que não sabe falar direito (Ex 4,10).
. Mais uma objeção: o reconhecimento da falta de coragem (Ex 4,13)
Podemos dizer que é como nos sentimos quando estamos diante de uma grande missão. Às vezes nos colocamos como frágeis para justificar o nosso medo.
De acordo com o livro do Êxodo, foram várias as tentativas para tirar o povo do Egito: reuniu os anciãos, contou com a solidariedade, usou astúcia e conhecimento, dividiu as tarefas, fez articulação com as famílias, enfrentou o Faraó e por fim fez o que era mais importante, manteve sempre o diálogo com Deus.
O processo de libertação passa por muitos caminhos, desde a apresentação de Moisés e Aarão diante do Faraó, e a sua negativa quanto à saída do povo, até as chamadas “dez pragas” – na verdade apenas a morte dos primogênitos é chamada de “praga’, todas as outras são chamadas de “prodígios” ou “sinais”. E são prodígios porque têm a função de forçar a saída dos hebreus do Egito, que como citado acima, tem três diferentes versões. Os prodígios estão ligados a fenômenos naturais. Assim como as águas do Nilo com cor avermelhada, como se fosse de sangue, todas os outros sinais e prodígios estão ligados a fenômenos naturais.
As três tradições que relatam a saída dos hebreus são cercadas de símbolismos: “originalmente, deviam circular dois relatos, um Javista-Eloísta, de sete pragas, e outro Sacerdotal, de dez” (p. 65). Ora, sete indica totalidade e o número dez significa a realização plena da obra de Deus, refletida nas dez palavras ou dez mandamentos. Mas as “pragas do Egito” são um paradigma: valem como referência ou espelho, onde acontecimentos semelhantes na história do povo se refletem.
Outro símbolo é o número dos que saíram do Egito: “cerca de seiscentos mil homens” (Ex 12,37), número exagerado! Somadas as mulheres e crianças, vamos para milhões… Mas “mil”, na língua hebraica, pode simbolizar “chefe” ou “cabeça”. “Cálculos mais recentes, com base nas condições de vida e na densidade populacional da época, derrubam essa estatística para 50 ou 150 pessoas” (p. 66).
A partir de Ex, 15,22, terminadas as tradições da saída do Egito, começa a caminhada do povo no deserto, também chamada de tradição do deserto e do Sinai. Isto porque todos os acontecimentos giram em torno do Monte Sinai. Mas o interessante é que no processo de libertação do Egito não se faz menção nenhuma ao Sinai. O que fica claro é que o Deus do êxodo é um Deus que caminha com seu povo, enquanto o Deus do Sinai é mais distante. Pode se concluir que o texto foi composto por duas tradições diferentes no começo, e que foram agrupadas posteriormente.
Dada a importância dos acontecimentos do Êxodo, toda a Bíblia recorre a ele para nos situarmos dentro da história da salvação. No livro do Deuteronômio encontra-se o que os autores chamam de credo histórico, que está contextualizado na festa das primícias, no ambiente familiar, que relembra a páscoa dos hebreus, quando da sua saída do Egito (Dt 26,5-9; cf. também Dt 6,20-23). Também os profetas, os Salmos e a tradição sapiencial voltam ao Êxodo para admoestar e ensinar às pessoas de sua época.
O Novo Testamento, a exemplo do Antigo, também volta ao Êxodo para ensinar e anunciar a Boa Nova. Isto fica claro, por exemplo, no Evangelho de Mateus, que apresenta Jesus como o novo Moisés. Mas há mais: na Primeira Carta aos Coríntios, no Evangelho de João, em Hebreus, no Apocalipse…
Finalmente, Valmor, no capítulo 11, nos lembra que a comunidade cristã muitas vezes aplicou o tema do êxodo a diferentes situações de sua vivência, sendo a mais intensa a desenvolvida na América Latina pela Teologia da Libertação.
Podemos concluir que o livro do Êxodo nos ensina que a marcha no deserto, a travessia do mar dos juncos, os prodígios e sinais são para nós a presença de um Deus que jamais abandona o seu povo.