Saber x ideologia: ainda o discurso competente

Creio que o post anterior possa ter gerado alguma confusão. Talvez os leitores sejam levados a tomar a categoria “competência” como sinônimo de “saber”, como se eu estivesse negando a necessidade da ciência e defendendo o senso comum. Não é bem isso o que quero dizer.

Nehemias, um leitor do blog – a quem agradeço – fez, no comentário, algumas ressalvas ao post O discurso competente: dissimulador da dominação. Tentei esclarecer o que quis dizer, também no comentário, mas acho que ainda não ficou bom. Vou tentar explicar melhor.

O já citado filósofo francês da ciência, Gaston Bachelard, compõe a sua obra a partir de uma dupla vertente: a científica e a poética. Para Bachelard, o tempo só tem a realidade do instante, daí ser o conhecimento uma obra temporal. Se para Bergson o instante é duração, gerando um processo de continuidade, e nos transformando na condensação da história que vivemos, para Bachelard, ao contrário, o instante é trágico, pois ele é a solidão que nos isola de nós mesmos e dos outros. Como vencer esta solidão? Com a ciência e a poesia.

Passo a citar Hilton Japiassú, Para ler Bachelard. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976, p. 22-23: O tempo é a consciência dessa solidão. A coragem aparece como a necessidade de se lutar contra a solidão. É assim que teremos acesso a nós mesmos, aos homens e às coisas. Nós somos nossa decisão. Nossos valores se inscrevem no término de uma ação através da qual fazemos os instantes que vivemos, quer dizer, nosso tempo. Devemos nos definir pela tendência que tivermos de nos ultrapassar e de nos transformar. Para tanto, dois caminhos se apresentam: de um lado, a ciência e a técnica vencem a solidão criando um prolongamento de nós mesmos e uma sociedade; de outro, a poesia e a imaginação libertam-nos da servidão da história e das referências da memória, para nos fazer descobrir homens e coisas. O homem é ao ao mesmo tempo Razão e Imaginação.

Limitando-me aqui à vertente científica, quero dizer que, segundo Bachelard, o conhecimento é uma operação na qual a ciência cria seus próprios objetos pela destruição dos objetos da percepção comum, dos conhecimentos imediatos. A ciência é uma ação eficaz e devemos utilizá-la para agir sobre o mundo e transformá-lo. Portanto, o progresso científico se faz por rupturas com o senso comum, com as opiniões primeiras e com as pré-noções da filosofia espontânea (cf. BACHELARD, G. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, 314 p. ISBN 8585910117).

Mas gostaria de ir além, voltando a Marilena Chauí, na citada obra Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas. 12. ed. São Paulo: Cortez, 2006, 367 p. ISBN 9788524911903.

Falando da diferença entre saber e ideologia, Chauí nos mostra que o saber é um trabalho. Trabalho para elevar à dimensão do conceito uma situação de não-saber. Situação gerada por uma experiência imediata obscura que pede clarificação. Obscuridade que é o caráter indeterminado da experiência. O saber é, portanto, o trabalho para determinar esta indeterminação, tornando-a inteligível. Daí, só há saber quando se aceita o risco da indeterminação que faz nascer a reflexão. Por outro lado, a ideologia recusa a indeterminação que habita a experiência. Ela neutraliza a história, abole as diferenças, oculta as contradições e desarma as interrogações. No saber as idéias são produto de um trabalho, são históricas. Na ideologia, o conhecimento se transforma em ideia instituída.

Bom, daqui para a frente é só reler o post anterior para clarear o que são discursos instituídos e competentes.

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