Toma conta da imprensa nestes dias, com tremendo sensacionalismo, a notícia da descoberta de um pequeno pedaço de cerâmica nas escavações de Tell es-Safi, ruínas da antiga cidade de Gat, no qual estão escritas duas palavras אלות = ‘lvth e ולת = vlth que teriam semelhança com o nome גלית = glyth, ou seja, “Golias”. Os nomes podem ser igualmente transliterados como ‘lwt e wlt ou )lwt e wlt, dependendo da convenção que se adote.
O óstracon (do grego, ostrakon, plural ostraka: um caco de cerâmica utilizado para se escrever alguma coisa) foi datado entre os séculos X e IX a.C. e as duas palavras estão escritas em um “proto-cananeu” arcaico. Tudo o que se sabe, por enquanto, é que existe a possibilidade destas palavras serem semelhantes a Goliath, ou Golias, nome que muitos especialistas acreditam ser de origem não-semítica, etimologicamente relacionado com vários nomes indo-europeus, como, por exemplo, o nome lídio Aliates. A escavação é dirigida pelo Dr. Aren Maeir, professor da Universidade Bar Ilan, em Ramat Gan, Israel.
Todo o sensacionalismo decorre da existência da narrativa de 1Sm 17, onde se conta que o jovem Davi, de Belém, no contexto das guerras entre o exército de Saul e os filisteus, enfrentou e matou um terrível guerreiro filisteu chamado Golias, originário de Gat (v. 4: “Saiu do acampamento filisteu um grande guerreiro. Chamava-se Golias, de Gat. A sua estatura era de seis côvados e um palmo“; v. 23: “Enquanto conversava com eles, o grande guerreiro – chamado Golias, o filisteu de Gat – apareceu, vindo da linha inimiga…”). Segundo esta narrativa, o estatura do Golias era de 2 metros e meio, mais ou menos!
A imprensa não especializada já está identificando, precipitadamente, os nomes encontrados em Tell es-Safi com o nome Golias e este com o personagem da narrativa bíblica, em tom bastante apologético, no estilo “a Bíblia tinha razão”. Sobretudo porque há, no mundo acadêmico, entre os chamados “minimalistas” e os “maximalistas”, uma acirrada disputa sobre o valor histórico das narrativas bíblicas, que pode ser vista aqui, e porque há um contexto político em Israel – na complexa luta entre israelenses e palestinos pelo território – que favorece este tipo de coisa. Os especialistas são mais prudentes, embora também neste meio não faltem conclusões apressadas.
A prudência, entretanto, se impõe, pois esta narrativa do livro de Samuel é considerada, nos meios acadêmicos, uma tradição deuteronomista bastante controvertida. Apresento, das muitas existentes, duas razões:
. a Obra Histórica Deuteronomista (OHDtr) foi escrita possivelmente no século VI a.C., em um gênero literário que não corresponde de modo algum ao nosso modo de escrever “história” hoje, herdado da tradição alemã
. por outro lado, o gigante Golias acaba morrendo duas vezes, pois segundo a mesma OHDtr, em 2Sm 21,19 se diz que “A guerra continuou ainda em Gob com os filisteus, e Elcanã, filho de Iari, de Belém, matou Golias de Gat; a madeira de sua lança era como cilindro de tecedeira“. Tentando conciliar as duas tradições, 1Cr 20,5, obra posterior à deuteronomista, diz: “Houve ainda outra batalha contra os filisteus. Elcanã, filho de Jair, matou Lami, irmão de Golias de Gat; a haste de sua lança era como um cilindro de tecelão” (estou utilizando a tradução da Bíblia de Jerusalém, nova edição, revista e ampliada, São Paulo, Paulus, 2a. impressão, 2003 – que, por sinal, erra, ao traduzir, em 1Cr 20,5, a palavra hebraica ‘ah por “filho” e não por “irmão”).