As reformas de Ezequias e Josias podem não ter acontecido

Na semana passada li um texto de Juha Pakkala, biblista finlandês, professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Helsinque, sobre a possibilidade das reformas de Ezequias e de Josias, reis de Judá em 716/15-699/8 e 640-609 a.C., respectivamente, não terem acontecido. Segundo o autor, é mais provável que os textos de 2 Reis 18 e 22-23 sejam invenções literárias e projeções de ideais pós-exílicos no período monárquico.KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010

O texto pode ser acessado em Academia.edu: Why the Cult Reforms In Judah Probably Did Not Happen. Pode ser acessado, gratuitamente, também aqui.

Foi publicado em KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 201-235.

Apresento aqui apenas a introdução e recomendo a leitura do texto completo. Especialmente para quem estuda História de Israel e Literatura Deuteronomista.

Os autores citados nas notas podem ser conferidos na bibliografia no final do texto.

As reformas de Ezequias (2 Reis 18,4) e Josias (2 Reis 22–23) tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos. Especialmente a reforma de Josias foi amplamente entendida como um momento crucial e um ponto de virada no desenvolvimento da religião[1] de Israel[2]. Consequentemente, os relatos bíblicos foram assumidos como preservando informações históricas importantes da época de Ezequias e Josias.

Por exemplo, no século passado, Hölscher argumentou que 2 Reis 22–23 é um excelente exemplo de escrita histórica autêntica[3]. Noth assumiu que 2 Reis 23,4–20 foi retirado dos anais reais[4]. Embora a maioria dos estudiosos hoje em dia reconheça que os relatos bíblicos não são fontes históricas imparciais, geralmente se presume que os reis tomaram pelo menos algumas medidas para renovar o culto[5]. Alguns estudiosos presumem que eles purificaram o culto de elementos estrangeiros, enquanto outros argumentam que apenas a localização do culto estava em questão[6]. Há também algumas vozes críticas que questionaram totalmente a historicidade das reformas, mas elas ainda representam a minoria[7]. No entanto, é evidente que o ceticismo sobre a historicidade das reformas cresceu nas últimas décadas[8]. Deve-se acrescentar também que a historicidade da reforma de Ezequias foi desafiada com mais frequência do que a de Josias[9].

Os relatos da reforma tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos e no estudo do antigo Israel, sua história e religião. Muitas histórias de Israel e introduções à Bíblia hebraica se referem às reformas como eventos importantes que ocorreram no final do século VIII e no final do século VII a.C.[10]. Muitos conceitos centrais ou mesmo definidores do judaísmo posterior, como centralização do culto, adoração exclusiva a Iahweh, crítica de ídolos e religião baseada na Lei, teriam sido introduzidos por um dos reis reformadores. As reformas também tiveram impacto considerável no estudo dos livros bíblicos. Por exemplo, devido às semelhanças evidentes entre o Deuteronômio e 2 Reis 22–23, a datação do Deuteronômio é frequentemente conectada com a reforma de Josias[11]. Alguns estudiosos que questionaram a historicidade da maioria dos eventos em 2 Reis 22–23 ainda conectaram o Deuteronômio com o rei Josias ou com o final do século VII a.C.[12]. O Deuteronômio seria então uma testemunha das mudanças religiosas que ocorreram durante esse período.

As reformas também influenciaram a datação da Obra Histórica Deuteronomista. Muitos estudiosos, especialmente no mundo anglo-saxônico, vincularam o desenvolvimento editorial de sua composição com as reformas. De acordo com o ‘Modelo de Dupla Redação’, uma das principais fases editoriais da composição foi escrita durante o tempo de Josias[13]. Também se tentou correlacionar dados arqueológicos com as reformas do culto. Especialmente em pesquisas anteriores, a destruição dos locais de culto em Arad Tel Berseba foi vista como um resultado ou prova das reformas do culto bíblico[14]. Também foi discutido se as estatuetas [de divindades] da Idade do Ferro de Judá mostram quaisquer sinais de destruição intencional, o que poderia então ser usado como evidência para a reforma de Josias[15]. Em discussões acadêmicas mais recentes, a diminuição dos motivos iconográficos do século VIII a.C. em diante tem sido conectada com as reformas[16].

A confiança nos textos bíblicos em questão como fontes históricas confiáveis é problemática, porque é evidente que 2 Reis 18 e 2 Reis 22–23 foram extensivamente editados. 2 Reis 23, onde toda a discussão sobre as reformas culmina, pode ser o capítulo mais editado de 1–2 Reis, se não de toda a Bíblia Hebraica, e sua complicada história editorial também é geralmente reconhecida. Um indicativo dos problemas é o fato de que as visões acadêmicas sobre seu desenvolvimento diferem em grande medida, com muito pouco consenso à vista[17]. Quase todas e quaisquer partes do capítulo foram atribuídas de forma variável ao texto básico e a vários editores posteriores ou aos anais reais. Consequentemente, o texto é, na melhor das hipóteses, uma fonte histórica problemática e, portanto, uma base pobre para reconstruções da história de Israel e teorias sobre o desenvolvimento de livros bíblicos.

Juha Pakkala (1968-)Mesmo sem os problemas causados pela edição, os textos em questão foram evidentemente escritos de uma perspectiva fortemente teológica, o que significa que sua confiabilidade histórica como fonte deve ser cuidadosamente examinada. É quase impossível usá-los como tal para qualquer reconstrução histórica do período monárquico. O perfil teológico dos diferentes autores tem que ser compreendido antes mesmo de começarmos a ver por trás da teologia e possivelmente obter informações sobre eventos históricos. Seria arriscado negligenciar a análise meticulosa dos textos-fonte e assumir que, apesar dos problemas evidentes, eles de alguma forma refletem realidades históricas durante a monarquia. Tal abordagem dos textos não é incomum, mas dificilmente pode fornecer uma base histórica sólida.

Neste artigo, tentarei mostrar que os textos disponíveis não são fontes históricas tão sólidas que deveríamos usá-los como pedras angulares de teorias sobre a religião de Israel e o nascimento dos livros bíblicos. A possibilidade de que as reformas sejam projeções de ideais posteriores ao período monárquico e, portanto, não tenham qualquer base histórica também tem que ser levada em consideração ou pelo menos discutida. Algumas características podem até indicar que nunca aconteceram.

 

Notas
1. Neste artigo, a religião de Israel indica a religião de Judá e Israel, praticada durante a monarquia.
2. De acordo com Albertz (1994) “[a] decisão mais importante na história da religião israelita é tomada com a datação de uma parte essencial do Deuteronômio no tempo de Josias.” (199). Cf. a discussão posterior sobre esta declaração por Albertz em Davies (2007), 65–77, e Albertz (2007), 27–36.
3. Hölscher (1923), 208.
4. Noth (1967), 86. Assim também Gray (1963), 663.
5. Por exemplo, Lohfink (1987), 459–475; Collins (2007), 86, 150–151; Sweeney (2007), 402–403, 446–449, e Petry (2008), 395 n. 19. Römer (2005), 55, escreve: “A apresentação bíblica de Josias e seu reinado não pode ser tomada como um documento de evidência primária. Por outro lado, alguns indicadores sugerem, no entanto, que algumas tentativas de introduzir mudanças políticas e de culto ocorreram sob Josias.”
6. Hoffmann (1980), 269, concluiu que em quase todos os detalhes o autor de 2 Reis 22–23 apresenta uma imagem idealista da reforma, mas que os eventos têm uma base histórica na época de Josias.
7. Por exemplo, Levin (1984), 351–371; Davies (2007), 65–77.
8. Este desenvolvimento pode ser observado, por exemplo, em comentários e histórias recentes de Israel; por exemplo, Werlitz (2002), 305–311; Grabbe (2007), 204–207.
9. Para uma revisão, veja Hoffmann (1980), 151–154, onde ele mesmo assume que 2 Reis 18,4 contém uma memória de um evento histórico. Similarmente também Collins (2007), 148. Estudos anteriores assumiram que 2 Reis 18,4 contém um trecho dos anais reais, por exemplo, Benzinger (1899), 177.
10. Ver, por exemplo, Liverani (2005), 175–182; Miller/Hayes (2006), 413–414 (a historicidade da reforma de Ezequias é deixada em aberto; ver n. 28), 457–460.
11. Assim, muitos estudiosos, por exemplo, Driver (1902), xliii–lxvi; Veijola (2004), 2–3; Römer (2005), 55. Em pesquisas anteriores e já desde De Wette (1805), Dissertatio critico-exegetica, o livro encontrado no Templo (2 Reis 22,8) foi assumido como tendo sido o Deuteronômio ou sua edição inicial.
12. Assim, por exemplo, Levin (2005), 91. De acordo com Schmid (2008), 106, a argumentação sobre a relação entre 2 Reis 22–23 e o Deuteronômio corre o risco de raciocínio circular, mas ele data a versão mais antiga do Deuteronômio no século VII a.C.
13. Cf. Cross (1973), 274–289, e muitos que o seguiram. Similarmente também Lohfink (1987), 459–475. Provan (1988), 172–173, conectou a primeira edição da composição com o reinado de Ezequias.
14. Ver Aharoni (1968), 233–234; Mazar (1992), 495–498.
15.Kletter (1993), 54–56, demonstrou que não há evidências de uma destruição intencional de estatuetas [de divindades] na Judeia.
16. Ver Uehlinger (2007), 292–295.
17. Ver, por exemplo, Benzinger (1899), 189–196; Hoffmann (1980), 169–270; Würthwein (1984), 452–466; Levin (1984), 351–371; Kratz (2000), 173, 193; Hardmeier (2007), 123–163.

O Codex Amiatinus 5

Leia nesta ordem:

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Fragmentos dos códices gêmeos do Amiatinus foram encontrados

No início de setembro de 1908 Cuthbert Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu, emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus.

Isso parece ter provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas por Ceolfrido, e, antesDE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. que mais investigações pudessem ser feitas, e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início de 1909. É geralmente conhecida pelo nome de “a Folha de Greenwell”. Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18.

Em retrospecto, Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de curiosidades antigas”.

Como Newcastle fica a menos de dez quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível, conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante quase vinte anos.

A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson (1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford, publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham, uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.

Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby, depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos de III-IV Reis.

A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow.

Em 1938, os fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico por mil libras.

Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo indeterminado na Biblioteca Britânica.

É possível que a folha de Greenwell também fosse proveniente do arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe enviado essas descobertas para que o assessorasse na identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua ajuda.

É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral de Worcester.

Evidência disso é que os arquivos de Willoughby também expeliram fragmentos semelhantes de um grande manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do século XI das escrituras de Worcester.

Sabemos que Offa, rei da Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia da sacra igreja”.

No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi saqueada pelos vikings em 794.

 

Como o Codex Amiatinus chegou à abadia de San Salvatore?

Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata. Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação pretendida por Ceolfrido.

O mosteiro dá para a Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma, e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade, essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca, Siena, Viterbo chegando enfim a Roma.

Qualquer um, em teoria até mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.

 

O relicário encontrado na abadia de San Salvatore

Um item interessante foi encontrado em San Salvatore na década de 1960. Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário. Isso foi publicado pela primeira vez em 1974.

O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil, um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros, muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do final do século VII.

Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês, exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais sobrevivem apenas em Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.

Christopher De Hamel (1950-)Um mosteiro numa estrada de peregrinação pode receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus, exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas chegaram juntas.

A comitiva de Ceolfrido devia sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua jornada.

Segundo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia.

A rota para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos nas encostas do monte Amiata.

Os monges ingleses estariam morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário.

Isso não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de 1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença.

O Codex Amiatinus 4

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

A escrita do Codex Amiatinus

Do escriba, passemos para a escrita. O texto do Codex Amiatinus está escrito em unciais, a quintessencial “romana scriptura”, disposta em colunas duplas com linhas longas e curtas, adequadas a uma fácil leitura em voz alta, “per cola et commata”. A uncial é totalmente diferente das maiúsculas e minúsculas nativas dos livrosCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia irlandeses, conhecidas por historiadores de manuscritos como de estilo “insular”, o qual compreende todo o âmbito celta das Ilhas Britânicas.

O contraste com as unciais mediterrâneas é mais uma evidência gráfica de que as comunidades de Wearmouth e Jarrow estavam se distanciando da Irlanda e conscientemente imitando as práticas de escrita romanas.

Deve haver a possibilidade de que Bento Biscop e Ceolfrido tenham trazido consigo da Itália escribas treinados, para que ensinassem a escrita uncial aos ingleses. No fólio 86v do Codex Amiatinus no material preambular ao Levítico, há várias palavras canhestramente escritas em grego a afirmar que fora um tal de lorde Servandos quem fizera o livro. Este não é nem de longe um nome anglo-saxão, e a sentença deve ter sido copiada incompreensivelmente do exemplar por alguém que sabia latim, mas não grego.06

Embora os escribas modelassem com atenção seu trabalho segundo protótipos italianos, eles mesmos eram sem dúvida ingleses. São traídos por marcas distintivamente insulares de abreviações e outras peculiaridades que só se encontram em manuscritos em uncial que sabemos com certeza terem sido copiados na Nortúmbria.

Tem-se observado com frequência que só a partir do estilo da escrita já se pode deduzir total diferença no aspecto cultural entre Wearmouth-Jarrow, com modelo em Roma, e Lindisfarne, fundação da ilha irlandesa cerca de oitenta quilômetros ao norte, onde os manuscritos eram de hábito copiados na contrastante caligrafia insular. Na realidade, segundo um provável senso comum, essas comunidades se influenciavam reciprocamente.

Com toda a sua escrita romana, o Codex Amiatinus apresenta traços de uma prática distintamente insular nas palavras de abertura de alguns textos, usando o que se conhece como “diminuendo”, começando com uma letra grande e diminuindo o tamanho letra a letra. Exemplo disso é a abertura do Gênesis. As primeiras palavras são “In principio” (fólio 11r). O “I” é grande, com sete vezes a altura de uma letra do texto normal, o “n” não é tão grande, e o “p” é ainda menor, à medida que a escala se reduz até chegar ao tamanho da escrita normal. Essa é uma característica de manuscritos irlandeses. Os escribas do Codex Amiatinus devem ter visto isso em Lindisfarne.

Em compensação os monges de Lindisfarne derivaram seu padrão para são Mateus do Codex Grandior em Jarrow, e pequenas unciais foram usadas em seu encantador “Evangelho de São Cuteberto” do início do século VIII, hoje na Biblioteca Britânica, tão delicado e leve quanto Amiatinus é vasto e volumoso, e que aparentemente foi enterrado numa data remota junto com o corpo de são Cuteberto, sepultado em seu santuário em 698.

 

De sete a nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus

Uma medida da ordem de grandeza do scriptorium e da rigidez de sua organização nos advém do fato de que parece que pelo menos sete e talvez até mesmo nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus.

Algumas caligrafias são maiores que outras, e isso é muito aparente nas quebras entre os livros bíblicos. Sua incidência está claramente repartida em distintos grupos de texto. Como o demonstra o volume alceado, vários cadernos são formados por um número incomum de folhas, todos eles correspondendo aos finais dos livros: xlviii (9 folhas, fim de Crônicas, fólio 378v), lxviii (5 folhas, fim de Isaías, fólio 535v), e xc (5 folhas, fim de Tobias, fólio 708v).

Cada um deles representa também uma mudança de escriba. Um caderno com número ímpar de folhas só parece ter sido necessário quando já se tinha começado a escrever o texto seguinte. Desse modo, muitos escribas trabalhavam simultaneamente.

 

515 bezerros forneceram o material do Codex Amiatinus

Para suprir o pergaminho de manuscritos tão grandes e tão extensos quanto pandectas inteiras deve ter sido necessário dispor da pele de uma quantidade enorme de animais. Da pele de cada um se preparava não mais do que um simples par de folhas.

Para as 1030 folhas do Codex Amiatinus deve ter sido utilizada a pele de 515 bezerros. Para todas as três pandectas encomendadas por Ceolfrido, deve-se multiplicar isso por três.

Às vezes se afirma, sem evidências, que a concessão de terras a Wearmouth-Jarrow em 692 visava prover pasto suficiente a um rebanho que fora aumentado para a feitura de Bíblias.

Na realidade, a criação de alguns milhares de animais não deve ter sido anormal para uma comunidade rural grande e bem organizada durante os trinta anos do abadado de Ceolfrido, especialmente dado que o gado fornecia muitos produtos necessários além de sua pele. Isso incluía a carne para os jantares diários de muitos monges ativos e também os chifres, cola, ossos e até fertilizantes (providos por seu sangue) para a agricultura.

O Codex Amiatinus 3

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Características do Codex Amiatinus

Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada — tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura. O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral.

O manuscrito está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro penduradas na borda inferior,Página do Codex Amiatinus - Evangelho de Marcos, capítulo 1 costuradas com fio amarelo e dotadas de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma grande e cara maleta de couro italiana.

São mais de 34 quilos, ou, com a encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de mais de quarenta quilos.

As primeiras oito folhas são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas em ornamentos.

Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a escrita que não foi alterada.

Na página adjacente está o soberbo e famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).

A maior parte do restante do enorme manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero, mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação insignificante.

Impressiona o espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores, anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e referências durante séculos. Afora algumas correções contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático.

Os Salmos agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590.

O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com oito folhas cada um. Em certo momento, os estudiosos do Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana, por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que essas páginas são componentes integrais, se bem que muito incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.

 

A biblioteca de Cassiodoro na Vivarium

A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.

Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da Itália, chamada Vivarium à qual ele doou sua biblioteca particular.

Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos.

Os detalhes apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado.

Como acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos ou vendidos.

Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto, talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em pessoa.

 

Cassiodoro e o Codex Grandior

Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu “Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.

Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.

 

O Codex Grandior e o Codex Amiatinus

Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus (fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de Amiatinus.

A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos, penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até o século XV.

É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia medieval, mas decerto não passa da forma como o artista representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas: “Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras, comprometido com Deus, restaurou esta obra”.

Isso alude à ocasião, após o exílio dos judeus na Babilônia, por volta de 457 a.C., em que Esdras foi enviado de volta a Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como Esdras.

Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica.

Esdras não era propriamente um autor. Sua contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro, toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data de muito depois da época em que ele viveu.

De muitas maneiras, um frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais mais tardias.

O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é, presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro não mencione nele a presença de uma figura assim.

Com frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos. Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da apostasia.

Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu Codex Grandior como também o que ele chama de “novem codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos na lombada.

Nas reproduções da página esses nomes são quase impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse.

No melhor dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito de seu falecido patrão.

O Codex Amiatinus 2

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Uma Bíblia Vulgata é levada para Roma

Uma nova Bíblia Vulgata para cada igreja, a de Wearmouth e a de Jarrow, é um fato compreensível, conquanto impressionante, mas uma terceira cópia? Quanto a isso só podemos especular.

Talvez houvesse planos que nunca se materializaram para a criação de uma terceira casa nortumbriana, tão distinta e tão indivisível quanto a Trindade (conceito do qualCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia eles gostariam); ou talvez — e ele não seria o único no que concerne a isso — Ceolfrido se perguntasse secretamente se sua carreira não o levaria ainda mais longe, talvez como arcebispo da Cantuária com a morte de Teodoro, ou mesmo como papa, e talvez guardasse um volume de reserva para qualquer promoção que lhe fosse oferecida em outro lugar.

Mas o anônimo Vita Ceolfridi e Beda nos contam o que aconteceu depois. Com a avançada idade de 74 anos, Ceolfrido decidiu ir de novo a Roma e levar consigo a terceira pandecta, a reserva, como um presente para São Pedro, o príncipe dos apóstolos. (Era comum a prática medieval de se referir a uma igreja com o nome de seu santo padroeiro, como se ainda estivesse vivo: isso significava, é claro, a corte papal.) A implicação é que esse anúncio veio como uma surpresa para a comunidade de Wearmouth-Jarrow.

Não sabemos qual foi seu motivo, não mais do que sabia Beda. Será que Ceolfrido ainda esperava, em seu íntimo, uma nomeação em Roma, caso em que poderia precisar da Bíblia para facilitar as negociações? O papa Constantino tinha morrido em 9 de abril de 715, e provavelmente a decisão de viajar foi tomada por Ceolfrido mais ou menos quando a notícia chegou à Inglaterra. Ou teria havido em 679 algum tácito entendimento de que ele podia levar livros de Roma para a Nortúmbria em troca de transcrições posteriores? Ambas as hipóteses são possíveis.

A Vita Ceolfridi registra as palavras exatas de uma inscrição que foi inserida no início do tomo, dedicatória a São Pedro da parte de Ceolfrido, abade dos ingleses dos mais distantes confins da Terra (“extremis de finibus”).

Portanto, em junho de 716, como nos diz o relato, essa terceira pandecta, convenientemente já com a dedicatória, foi levada declive abaixo, da igreja de Jarrow para um navio no rio Don, para o Tyne e para o mar, acompanhada de Ceolfrido e um séquito de monges. Foi a primeira exportação documentada de uma obra de arte da Inglaterra.

Mas para nossa lástima, Ceolfrido morreu durante a viagem, em Langres, França central, em setembro, e isso, por mais de mil anos, representou o fim da história.

 

O Codex Amiatinus na abadia de San Salvatore

Há um famoso manuscrito antigo da Bíblia na Itália conhecido como Codex Amiatinus. Era um antigo tesouro do mosteiro de San Salvatore, no monte Amiata, no sul da Toscana, de onde tirou seu nome. Está registrado na lista das relíquias da abadia, datada de 1036, que o descreve como sendo o Antigo e o Novo Testamento “escritos pela mão do abençoado papa Gregório”. Essa atribuição a são Gregório, o Grande (c. 540-604), não era desarrazoada, uma vez que fora escrito em unciais italianizadas, muito parecidas com as do Livro dos Evangelhos de Santo Agostinho, e nunca se duvidou de que tinha sido feito na Itália.

Ele abre com uma dedicatória de página inteira, na qual o livro é presenteado ao mosteiro do Salvador (Salvator) por um certo Pedro, abade dos lombardos, “dos mais distantes confins da Terra”. Mesmo hoje em dia, os toscanos consideram todos os lombardos pessoas de um reino alienígena que fica além das mais afastadas fronteiras da civilização (e vice-versa), e essa inscrição de redação estranha foi aceita com satisfação em San Salvatore em seu valor nominal.

O livro é o mais antigo manuscrito completo sobrevivente da Vulgata e ainda é a principal referência para o estabelecimento do texto da Bíblia latina.

Constantin Tischendorf editou o texto em latim do Novo Testamento no Codex Amiatinus em 1854. Ele anunciou que tinha havido pequenas alterações na dedicatória inserida, e que os nomes de Pedro, abade dos lombardos, e do mosteiro ao qual era dedicado pareciam ter sido escritos cobrindo rasuras.

Trinta anos depois, o epigrafista Giovanni Battista de Rossi (1822-94) por fim decifrou os nomes que estavam por trás e revelou que o manuscrito tinha sido originalmente dedicado a São Pedro por um chamado Ceolfrido, “abade dos ingleses”.

Logo depois, um professor de teologia em Cambridge, F. J. A. Hort (1828-92), relembrou que essas palavras batiam com a transcrição na Vita Ceolfridi e se constatou pela primeira vez que devia ser na realidade a pandecta de Wearmouth-Jarrow, da qual se perdera a pista desde que deixara a Nortúmbria, em 716.

Quando estourou a notícia, em fevereiro de 1887, ela causou sensação, especialmente na Grã-Bretanha. Foi uma década excitante de descobertas bíblicas no Oriente Médio e em Oxirrinco, no Egito, mas poucos anúncios tinham sido tão inesperados quanto a revelação de que a mais antiga cópia completa da Bíblia latina fora na verdade feita na Inglaterra.

Em 1890, H. J. White, mais tarde deão da Igreja de Cristo, em Oxford, disse, com um toque de exagero patriótico, que ela era “talvez o mais belo livro no mundo”.

 

A abadia de San Salvatore

O mosteiro de San Salvatore não fica no cume, mas num platô na encosta leste do monte Amiata, na Toscana, Itália. Em torno dele há uma cidade medieval, e o conjunto é conhecido como Abadia de San Salvatore, pois se desenvolveu como um adjunto à vida do mosteiro, o qual ele cerca e protege.

A história documentada da abadia remonta a 742. Ela se incorporou à Ordem Cisterciense em 1228. Consta que Carlos Magno esteve aqui em 800, em seu caminho em direção ao sul para sua coroação como imperador em Roma. O papa Pio II — Enea Silvio Piccolomini, o erudito humanista — morou aqui durante os meses de verão de 1462. É bem possível que o precioso códex tenha sido mostrado ao imperador e, com certeza, ao papa.

Como o manuscrito era (e ainda é) a referência primordial para o texto em latim da Vulgata, ele assumiu grande importância durante a Contrarreforma. Os assediados católicos do século XVI sentiam-se ameaçados pelas traduções protestantes da Bíblia, que agora eram feitas diretamente das línguas originais das Escrituras, enquanto eles só tinham os textos em latim. O Codex Amiatinus, no entanto, dava a isso uma resposta, ao que parecia, incontestável. Essa “Bíblia de são Gregório” em latim, reputada como do século VI, era substancialmente mais antiga do que qualquer manuscrito em hebraico conhecido e na época só era igualada por um em grego (no Vaticano). Era, portanto, uma grande peça de propaganda na batalha pela precedência de texto.

Em 1572, o capítulo geral dos cistercienses mandou buscá-lo, para consulta; o mesmo fizeram os conselheiros de Gregório XIII. O mosteiro recusou-se a emprestá-lo.

Mais tarde ele foi sumariamente requisitado pelo papa Sisto V, para ser usado como principal fonte na preparação de uma nova edição papal da Bíblia, e o mosteiro não teve escolha. O livro foi para Roma em 12 de julho de 1587 e foi devolvido a San Salvatore em 19 de janeiro de 1590. A Vulgata sistina, nele baseada, foi publicada em 1590 e depois revista como a monumental edição clementina de 1592, a resposta católica a Lutero; é publicada até hoje.

Assim como muitos mosteiros italianos atingidos pela política secular de modernização do Sacro Império Romano no final do século XVIII, a Abadia de San Salvatore foi extinta por completo em junho de 1782.

O Codex Amiatinus na Biblioteca Medicea Laurenziana, em Florença

A existência do Codex Amiatinus foi informada em 1789 ao grão-duque da Toscana, Pedro Leopoldo (1747-92, mais tarde imperador Leopoldo II), como tendo estado “entre as sombras e sob o pó, desconhecido como que perdido”. Ele ordenou que fosse levado do monte Amiata para Florença, primeiro sob a custódia de um seminário, e logo depois para a Biblioteca Laurenziana, onde está agora como Cod. Amiat. 1, provavelmente o mais famoso manuscrito da biblioteca.

A Biblioteca Laurenziana está entre as glórias arquitetônicas e literárias de Florença, uma das mais extasiantes cidades do mundo. Seu cerne é o acervo humanista a princípio reunido por Cosimo de’ Medici, “il Vecchio” (1389-1464), que foi suplementado sobretudo com as aquisições de seu neto Lorenzo, “o Magnífico” (1449-92).

Após a morte de Lorenzo os livros foram saqueados, vendidos e readquiridos pelos Medici, que agora viviam em Roma. Posteriormente as coleções foram devolvidas a Florença por Clemente VII (Giulio di Giuliano de’ Medici, 1478-1534), que encomendou ao próprio Michelangelo o projeto de uma biblioteca nobre para eles acima do claustro da basílica de San Lorenzo, a igreja da família Medici desde 1419. Foi completada em 1571 por Cosimo I de’ Medici (1519-74), grão-duque da Toscana e parente não consanguíneo do papa, e tinha então cerca de 3 mil manuscritos. Ela ainda mantinha algo do caráter de uma biblioteca dinástica quando o grão-duque Pedro Leopoldo ordenou que o Amiatinus fosse levado para lá do extremis finibus de seu ducado, na década de 1780.

O Codex Amiatinus 1

No começo deste ano li um livro de Christopher De Hamel, Manuscritos Notáveis. Fiquei impressionado.

Estava procurando mais informações sobre manuscritos da Vulgata. O capítulo 2 trata do Codex Amiatinus, considerado o manuscrito mais bem preservado da versão latina da Bíblia feita por Jerônimo, conhecida como Vulgata. DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p.

Publiquei no Observatório Bíblico, em 02.02.2024, um post sobre o Codex Amiatinus. Entre as obras indicadas está o livro de Christopher De Hamel. E um link para um resumo que fiz do capítulo 2.

Agora decidi colocar aqui em 5 posts o resumo, ali disponível em pdf, mas pouco visível.

O livro é: DE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. – ISBN ‎ 9788535929867. Em inglês é: Meetings with Remarkable Manuscripts: Twelve Journeys Into the Medieval World. New York: Penguin Press, 2017.

 

O Codex Amiatinus 1
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Os mosteiros de Wearmouth-Jarrow e o abade Bento Biscop

Da Inglaterra do século VII, muito pouca coisa restou sobre o solo. Vestígios da arquitetura do período ainda podem ser vistos na extremidade oeste da igreja paroquial de São Pedro em Monk Wearmouth, no moderno condado de Tyne and Wear, extremo nordeste da Inglaterra, onde era a antiga Nortúmbria.

Há claras marcações no gramado ao sul da igreja indicando o perímetro de escavações arqueológicas recentes, mas é preciso muita imaginação para conceber isso como uma paisagem selvagem da Idade das Trevas, perto de onde o grande rio Wear desemboca no mar do Norte (nenhum dos quais se avista hoje da igreja), num terreno ofertado em 674 por Egfrido, rei da Nortúmbria, para a fundação de um grande mosteiro no modelo dos da Roma clássica tardia.

O primeiro abade e fundador dessa nova abadia do norte foi Bento Biscop (c. 628-90), um nobre local que visitou Roma nada menos que cinco vezes em sua vida. Essas experiências tiveram claramente um enorme impacto em sua percepção cultural. Ele decidiu tornar-se um monge. Em sua terceira viagem, em 669, acompanhou na volta à Inglaterra o sétimo arcebispo da Cantuária, na sucessão a Santo Agostinho, Teodoro de Tarso (602-90), a quem se credita ter instituído o ensino de grego no sul da Inglaterra. Em troca, Teodoro nomeou Bento abade efetivo do mosteiro vizinho na Cantuária, depois conhecido como Abadia de Santo Agostinho.

Quando, vários anos depois, em 674, o rei Egfrido ofereceu o terreno à margem do Wear para um mosteiro, Bento foi o candidato óbvio a ser enviado de volta à Nortúmbria. Conhecemos os detalhes disso a partir das incomparáveis histórias de Beda (c. 672-735), gênio preeminente entre os escritores anglo-saxões.

 

Bento Biscop e Ceolfrido em Roma e as Bíblias levadas para a Nortúmbria

Após estabelecer a nova casa em Wearmouth, Bento viajou de novo para Roma em 679, acompanhado pelo jovem monge Ceolfrido (c. 642-716). Os dois viajantes compraram lá, ou de algum modo obtiveram, “uma imensurável quantidade de livros de todos os tipos”, como expressou Beda, fato que terá destaque na história que se segue. Beda, que conhecia os dois, deixa implícito que foi Ceolfrido e não Bento quem adquiriu em Roma o texto da nova tradução da Bíblia (isto é, a Vulgata de Jerônimo) em três manuscritos, junto com uma vasta pandecta — ou seja, um volume abrangente — da Bíblia inteira, descrita como uma “antiga” versão das Escrituras. Esses e outros livros, bem como relíquias e objetos sacros, foram todos enviados e vieram junto com Bento e Ceolfrido para Wearmouth.

Os monges ingleses também cooptaram pessoas em Roma, inclusive um chantre chamado João, que veio para ensinar a prática de canto romana, e provavelmente artífices praticantes. As informações para visitantes no exterior da igreja em Monk Wearmouth hoje registram como as escavações no sítio revelaram vestígios de vidro e argamassa romana, técnicas que não eram conhecidas no norte da Europa naquele tempo.

Christopher De Hamel (1950-)Os livros trazidos de Roma, muito valorizados na época de Beda, há muito desapareceram, exceto (talvez) um pequeno fragmento italiano do século VI, tradução feita por Jerônimo do livro dos Macabeus para o latim, que sobreviveu por sorte, ao ser reutilizado como folha de guarda num manuscrito medieval na biblioteca da Catedral de Durham.

Em 682, o rei Egfrido deu aos monges mais terras, em Jarrow, cerca de onze quilômetros a noroeste, próximo da foz de outro grande rio nortumbriano, o Tyne. Os monges decidiram construir uma segunda igreja. O abade Bento Biscop confiou essa tarefa a Ceolfrido, que se mudou para o novo local com vinte membros do mosteiro, inclusive Beda, que era então adolescente e um monge iniciante.

Os dois estabelecimentos eram tidos como uma só comunidade, a uma distância um do outro que se podia percorrer a pé. Historiadores modernos referem-se comumente aos mosteiros gêmeos como “Wearmouth-Jarrow”, como se fossem um único local, e é costumeiro se referirem “à biblioteca” ou “ao scriptorium” de Wearmouth-Jarrow como sendo entidades indistinguíveis. Wearmouth foi dedicada a São Pedro, e Jarrow a São Paulo, os patronos conjuntos da Roma cristã.

É provável que Ceolfrido tenha transferido para Jarrow os manuscritos que ele mesmo tinha adquirido em Roma, já que Beda, claramente, continuou tendo acesso a eles, mas assim mesmo continuaram a ser propriedade conjunta de ambas as igrejas. Em 686 Ceolfrido foi nomeado abade das duas casas, e continuou a viver em Jarrow por mais trinta anos.

 

Ceolfrido encomenda três Bíblias completas

Há dois relatos do início do século VIII relacionados com a cópia de mais manuscritos bíblicos sob o patrocínio de Ceolfrido. Tendo em vista a raridade de quaisquer referências documentais à produção anglo-saxã de livros, eles merecem ser examinados com cuidado.

O primeiro refere-se a uma biografia anônima de Ceolfrido, decerto escrita por um de seus monges. Ele registra que Ceolfrido enriqueceu muito o acervo da igreja em Jarrow e que aumentou consideravelmente a coleção de livros que ele e Bento Biscop tinham trazido de Roma. O autor explica que Ceolfrido encomendou mais três Bíblias completas (ou pandectas), das quais uma foi deixada em cada igreja dos mosteiros gêmeos, de modo que quem quer que desejasse ler uma passagem de qualquer um dos testamentos poderia fazê-lo sem dificuldade. Não consta uma data certa para eles, exceto que aconteceram durante o abadado de Ceolfrido, mas esses manuscritos provavelmente tiveram início nas últimas décadas do século VII, e o trabalho deve ter continuado no início do século VIII.

Beda, que sem dúvida estava muito familiarizado com a cópia exibida na igreja de Jarrow, faz um ligeiro complemento desse relato em sua Historia abbatum. Ele descreve como Ceolfrido trouxe uma pandecta de uma “antiga” tradução da Bíblia de Roma e depois ampliou esse benefício fazendo mais três cópias dela, mas com um “novo” texto em vez do primeiro. Essa última observação é de importância. É característico de Beda ter noticiado e registrado qual tradução estava sendo usada. Os escribas sob a direção de Ceolfrido modelavam suas cópias no formato da grande pandecta que tinham recebido da Itália, mas agora eles substituíram o texto para que fosse o da mais moderna Vulgata de Jerônimo. Esse fato vai se tornar significativo na história.

Mês da Bíblia 2024 na Vida Pastoral

Vida Pastoral n. 359, setembro-outubro de 2024

Mês da Bíblia 2024: Livro de Ezequiel – “Colocarei em vocês o meu Espírito e vocês reviverão” (Ez 37,14)Vida Pastoral n. 359, setembro-outubro de 2024

Diz o Editorial:

Como toda literatura, a Bíblia é, antes de tudo, um acontecimento oral, resultante de narrativas diversas, contadas e recontadas. Ao longo de muito tempo, essas narrativas foram tornadas letras e, posteriormente, textos canônicos.

A cultura bíblica é essencialmente oral. Sabe-se que os poetas e os profetas tinham muito em comum. Ambos eram inspirados por uma força sobrenatural, divina. Se o poeta era possuído pela musa, o profeta o era pelo deus. Para os gregos, o profeta era um porta-voz, alguém inspirado por um deus e que falava em nome desse deus. No mundo bíblico, o sentido é semelhante, o profeta é porta-voz de Deus. Ele comunica o que Deus ordena.

A palavra “profeta” significa aquele que anuncia ou proclama a mensagem de outrem. No entanto, os profetas bíblicos não eram apenas veículos de transmissão da palavra divina. Estavam, sim, a serviço dessa palavra, mas não passivamente, como meros repetidores.

De acordo com Schökel, “o profeta precisa elaborar os oráculos com o suor da sua fronte, como consciencioso artesão da palavra profética” (SCHÖKEL, L. A.; SICRE DIAS, J. L. Profetas I: Isaías, Jeremias. Paulus, p. 16). De modo que, se nas confrarias de aedos e cantores gregos havia o treinamento para o domínio da língua poética, no mundo bíblico também há o esforço de aprimoramento do discurso. Como ministro da palavra e artista da linguagem, o profeta utiliza linguagem já elaborada, a qual ele continua enriquecendo. Sabe-se, pelos livros proféticos, quanto é fecunda a linguagem dos profetas bíblicos.

No caso do profeta Ezequiel, cujo nome significa “Deus fortalece”, ele se insere nessa mesma linhagem. Toda a sua profecia está carregada de metáforas poderosas. O contexto de seu ministério é o exílio na Babilônia (597 a.C.), quando foram levados para lá os primeiros exilados de Israel (família real, altos oficiais, anciões). De todo repertório que se pode conferir no livro de Ezequiel, destacam-se duas metáforas marcantes: ossos secos e novo coração.

Ezequiel tem a visão de um vale repleto de ossos totalmente secos, sem nenhuma possibilidade de vida. O profeta passeia por entre os ossos e não poupa detalhes, descrevendo o cenário carregado pela atmosfera da morte. Os ossos secos são o retrato do povo exilado, destituído de qualquer sinal de superação da crise em que vive, e no horizonte parece não haver esperança. O profeta faz ver que a esperança está em Deus: “Assim diz o Senhor Javé a esses ossos: Vou infundir um espírito, e vocês reviverão. Vou cobrir vocês de nervos, vou fazer com que vocês criem carne e se revistam de pele. Em seguida, infundirei o meu espírito, e vocês reviverão” (Ez 37,5-6).

A expressão coração novo, por sua vez, chama a atenção para a tomada de consciência sobre o porquê de Israel ter chegado àquela situação de tanto sofrimento. O motivo seria a infidelidade da “casa de Israel”, isto é, das autoridades e de todo o povo, que, ao invés de seguirem os preceitos de Deus, caíram na idolatria e em outros pecados. A saída do estado decadente e desolador dar-se-á mediante o poder e a bondade divina: “Darei a vocês um coração novo e colocarei um espírito novo dentro de vocês. Tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne” (Ez 36,26-27).

Assim como no vale de ossos secos e nos corações petrificados no livro de Ezequiel, nossa realidade atual está marcada por sinais de morte, guerras, crises climáticas e humanitárias. Que o Espírito sopre nos “cadáveres” gerados pela indiferença e por decisões frias, tomadas por corações petrificados em seus escritórios gelados. Que não nos faltem profetas “artesãos da linguagem”, cheios do Espírito, corajosos e capazes de dizer palavras de esperança e transformação.

Sumário

Restauração da monarquia davídica e da terra de Israel: Entendendo o livro de Ezequiel – Prof. Shigeyuki Nakanose

Quem é o verdadeiro pastor?: Uma leitura de Ezequiel 34,1-16 – Profa. Maria Antônia Marques

Entre a dor que dilacera e a vontade de viver: a memória de Ezequiel no pós-guerra – “Abre a boca e come o que te entrego” (Ez 2,8) – Profa. Cecilia Toseli

A esperança que nasce num vale de ossos secos: Ezequiel 37 – Prof. Luiz Alexandre Solano Rossi e Profa. Érica Daiane Mauri

A escavação arqueológica da Assíria

LARSEN, M. T. The Conquest of Assyria: Excavations in an Antique Land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016, 424 p. – ISBN 9781138991620.

Até meados do século XIX, o passado mesopotâmico não era apenas distante e exótico, mas estava envolto em mitos e lendas, e nenhuma evidência concreta de suaLARSEN, M. T. The conquest of Assyria: excavations in an antique land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016, 424 p. existência podia ser encontrada em nossos museus. No entanto, os nomes de reis como Senaquerib e Tiglat-Pileser, ou de cidades como Babilônia e Nínive, faziam parte da bagagem intelectual de europeus cultos – embora hoje não sejam significativos nem mesmo para a maioria dos acadêmicos.

A razão de sua antiga proeminência foi sua importância no mundo do Antigo Testamento, um livro que dominou o mundo da Europa do século XIX. Assim, quando essas cidades e reis, de repente, se tornaram realidade concreta, à medida que palácios cheios de tesouros, relevos e textos emergiam dos montes da Assíria, é compreensível que o interesse público fosse enorme.

Desde então, as disciplinas de Arqueologia do Antigo Oriente Médio e da Assiriologia, que se desenvolveram com base no fluxo contínuo de novas evidências das culturas antigas da Mesopotâmia, afastaram-se em grande medida dos seus laços com os estudos bíblicos. A tentativa agora é estudar e compreender a Assíria e a Babilônia em seus próprios termos, como complexos culturais e históricos de interesse por direito próprio, e que não devem ser vistos principalmente como provedores de material comparativo e ilustrativo para o estudo da Bíblia.

Essa emancipação disciplinar, necessária e óbvia, removeu até certo ponto a ampla base de interesse público que essas atividades desfrutavam e talvez tenha diminuído suas possibilidades de estabelecer uma conexão com os interesses e problemas contemporâneos. Os pioneiros, que são o assunto deste livro, tiveram um ponto de partida mais fácil do que nós quando se esforçaram para interessar seu próprio tempo em suas conclusões sobre o caráter e o significado das culturas antigas, e sua excitação e absorção nesses assuntos animam e energizam suas descrições.

Uma das consequências desse sentimento de relevância óbvia para as novas descobertas em uma estrutura religiosa e intelectual europeia foi a apropriação do mundo antigo para formar a base para a história do Ocidente. Aqui estava o “berço da civilização”, civilização sendo, claro, a Europa, e dessa forma essas disciplinas acadêmicas, até certo ponto, podem ser vistas como as “enteadas do imperialismo”. O que deu às descobertas mesopotâmicas seu interesse peculiar foi o sentimento de que os arqueólogos estavam caçando o próprio começo da história humana, conforme percebido à luz dos escritos sagrados. Ao mesmo tempo, foi enfatizado, repetidamente, que os restos antigos não significavam nada para os árabes locais. Essas cidades dos mortos ficaram escondidas na areia por milênios, ignoradas por aqueles que passavam por elas ou montavam suas tendas em cima delas.

Este livro é sobre o “estranho de olhos brilhantes do Frangistão” que falava inglês e que quebrou o silêncio oriental, Austen Henry Layard, bem como sobre os outros pioneiros, Paul-Émile Botta, Hormuzd Rassam, Henry Rawlinson e Victor Place, que na Assíria encontraram o que era visto como parte da herança histórica da Europa, apesar da percepção de que sua arte era estranha e primitiva.

As vidas e atividades desses homens nos apresentam uma imagem da Europa e do Oriente Médio no século XIX. A base para sua compreensão e interpretação do que eles desenterraram estava, é claro, enraizada em seu tempo, suas percepções e preconceitos. No entanto, suas descobertas também se tornaram parte daquela grande revolução intelectual que varreu a Europa na segunda metade do século XIX, quando descobertas científicas e acadêmicas mudaram a visão de mundo tradicional herdada e lançaram as bases para nossa própria compreensão do mundo (Trechos do Prefácio).

No começo do capítulo 1, The Mounds of Nineveh, leio:

Em um dia de calor escaldante de junho de 1842, dois cavaleiros chegaram aos portões de Mossul, uma cidade provincial no Império Otomano. Eles vinham de Bagdá, no sul, por uma estrada que os levou através da terra fértil a leste do Tigre. Eles chegaram a Mossul cruzando uma ponte frágil de barcos que conectava a cidade na margem ocidental com as aldeias do outro lado do Tigre.

Um dos homens era um carteiro turco que estava a caminho de Constantinopla, a mais de dois mil quilômetros de distância, com correio imperial oficial. O outro era um jovem vestido como um bakhtiyari, uma tribo que vivia no Cuzistão, a região montanhosa do sudoeste do Irã. No entanto, um olhar mais cuidadoso logo perceberia que ele era um europeu. E, de fato, depois de ter se separado de seu companheiro de viagem, que entrou no palácio do paxá local, ele foi direto para o vice-consulado britânico, onde foi recebido como um velho amigo. Ele era o aventureiro britânico de vinte e cinco anos, Austen Henry Layard.

No mesmo dia, ele foi apresentado ao novo cônsul francês em Mossul, Paul-Émile Botta, de quarenta anos, e o encontro entre esses dois teve um significado muito especial, pois pode-se dizer que marcou o início da exploração arqueológica da antiga Mesopotâmia. Botta e Layard estavam destinados a se tornarem os descobridores da antiga Assíria.

Mogens Trolle Larsen é professor emérito de assiriologia na Universidade de Copenhague, Dinamarca.

 

Da resenha de Paul Zimansky, Bulletin of the American Schools of Oriental Research, n. 313 (1999), p. 92-95:

A obra de Mogens Trolle Larsen, uma história da descoberta das capitais neoassírias e da decifração da escrita cuneiforme, pode ser apreciada como uma história de aventura, mesmo por aqueles que não têm interesse nesta área.

The Conquest of Assyria trata de um período de menos de duas décadas, começando em 1842 e terminando em meados da década de 1850. Seu tema central é a carreira arqueológica de Austen Henry Layard, embora as outras figuras-chave na redescoberta do Império Assírio – Botta, Hincks, Rassam e Rawlinson – não sejam negligenciadas.

Mogens Trolle Larsen The Conquest of Assyria pode ser visto como um complemento útil para os próprios relatos clássicos de Layard, uma vez que é necessário um intérprete do julgamento sólido e da experiência moderna de Larsen para entender o que as primeiras expedições na Assíria realmente realizaram. Layard tinha apenas o testemunho remoto e hostil da Bíblia e fontes clássicas de terceira mão e não confiáveis, como Diodoro Sículo, para interpretar suas descobertas. Ele não tinha a mínima ideia de como datar qualquer coisa e os textos cuneiformes que ele descobriu eram, na maior parte, ilegíveis. Em suma, sem os serviços de um guia, ao ler Layard, o leitor moderno perde muito.

The Conquest of Assyria conta uma história familiar com melhor equilíbrio e mais detalhes do que já foi contada antes. Seu autor é um assiriologista talentoso que escreve tão bem quanto qualquer jornalista, mas é menos propenso a erros. Este trabalho é adequado para permanecer como o tratamento básico sobre o assunto por algum tempo e merece um público amplo.

Da resenha de Zainab Bahrani, Journal of the American Oriental Society, vol. 118, n. 4 (1998), p. 573-574:

Larsen não disfarça sua intensa admiração por Layard e escreve o livro como uma biografia do homem: sua infância, suas aventuras, seus amores, seus triunfos e tribulações. O material de origem são os próprios trabalhos publicados de Layard e uma série de cartas não publicadas na British Library, que fornecem informações novas e interessantes sobre Layard e seus pontos de vista.

No entanto, Larsen frequentemente lê os textos de Layard sem analisá-los criticamente, falhando, assim, em considerar que eles foram escritos para impressionar um público, na esperança de levantar fundos, ao descrever aventura e perigo em uma terra desconhecida. Suas cartas também são apresentadas de forma semelhante. O desprezo de Larsen pela motivação de Layard, na verdade, transforma sua própria narrativa em uma hagiografia.

Apesar disso, ele fornece uma boa quantidade de informações sobre a recepção da arte assíria no Ocidente. Ele enfatiza corretamente que as primeiras escavações foram realizadas com o único propósito de abastecer o British Museum e o Louvre, e que a competição entre essas duas instituições era uma disputa de ambição imperial.

O livro é escrito em um estilo que imita a literatura de viagem britânica do século XIX. Layard é denominado “nosso jovem herói”, um recurso narrativo usado no literatura romântica inglesa. Essa técnica narrativa do século XIX também afeta o conteúdo do livro. Descrições orientalizantes da Mesopotâmia como “infinita, monótona e plana” ou “decrépita”, “não é um lugar agradável para se passar o verão, ou qualquer outra época do ano” são do próprio Larsen. Ao participar do mundo que ele está reconstruindo, Larsen parece desinteressado nos resultados de pesquisas recentes nas ciências humanas. Na verdade, ele parece desconhecer todo o campo da crítica pós-colonial.

Aqueles que esperam este livro como o primeiro da fila de análises críticas da disciplina ficarão desapontados. Mas como um conto de aventura e mistério, o livro é bem-sucedido. O público em geral apreciará a história de como o cuneiforme veio a ser decifrado ou a explicação do que é um zigurate. Como um trabalho acadêmico, no entanto, o livro acende um alerta por sua adoção de estereótipos que todos nós desejamos deixar para trás.

 

This book is about the ‘bright-eyed stranger from Frangistan’ who spoke the English word which broke the Oriental silence, Austen Henry Layard, as well as about the other pioneers, Paolo Emilio Botta, Hormuzd Rassam, Henry Rawlinson and Victor Place, who in Assyria found what was seen as part of Europe’s historical heritage, despite its perceived alien and primitive art.

The lives and activities of these men present to us a picture of Europe and the Middle East in the nineteenth century. The basis for their understanding and interpretation of what they unearthed was of course rooted in their time, its perceptions and prejudices. Yet, their discoveries also became part of that great intellectual revolution that swept through Europe in the second half of the nineteenth century, when scientific and scholarly discoveries changed the traditional inherited world view and laid the foundations for our own understanding of the world.

Mogens Trolle Larsen is a Professor Emeritus of Assyriology at the University of Copenhagen, in Denmark.

O Prólogo de João e suas ressonâncias

PORTER, S. E.; YOON, D. I. (eds.) The Johannine Prologue and Its Resonances. Leiden: Brill, 2024, 320 p. – ISBN 9789004698932.

Este é o quarto volume da série Johannine Studies, que está sendo publicada pela Brill de Leiden. Este volume é sobre o prólogo do Evangelho de João ePORTER, S. E.; YOON, D. I. (eds.) The Johannine Prologue and Its Resonances. Leiden: Brill, 2024, 320 p. suas muitas ressonâncias dentro de todo o Evangelho. Parâmetros rígidos não foram definidos sobre este tópico, e isto se reflete na natureza variada das contribuições individuais. Não achamos necessário dividir as contribuições em várias partes devido ao escopo mais restrito deste volume do que outros na série.

O primeiro volume da série foi Stanley E. Porter e Andrew K. Gabriel, Johannine Writings and Apocalyptic: An Annotated Bibliography (Leiden: Brill, 2013), o segundo foi Stanley E. Porter e Hughson T. Ong (eds.) The Origins of John’s Gospel (Leiden: Brill, 2016), e o terceiro foi Stanley E. Porter e Andrew W. Pitts (eds.) Johannine Christology (Leiden: Brill, 2020). É encorajador ver a resposta forte e positiva a esses volumes à medida que continuamos a série até a conclusão dos cinco primeiros volumes. O volume final deste primeiro conjunto é: John’s Gospel and Its Sources.

Tenho o prazer de dizer que continuaremos a série com mais cinco volumes projetados, com mais por vir se esses cinco continuarem a ser de interesse acadêmico. Os próximos cinco volumes programados são:

Volume 6: João e o judaísmo (2026)
Volume 7: João e os Evangelhos Sinóticos (2027)
Volume 8: João e a “Quarta Busca” (2028)
Volume 9: Linguagem joanina (incluindo gênero e estilo) (2029)
Volume 10: Comunidade e audiência joanina (2030)

Os estudos joaninos têm visto um ressurgimento nos últimos anos, com muitos dos resultados da pesquisa joanina anterior sendo reexaminados. Isso inclui teorias sobre as origens do Evangelho de João, sua relação com os Evangelhos Sinóticos, sua teologia, sua historiografia e muitos outros tópicos. Este volume é parte de um esforço concentrado para preencher a lacuna de publicações dedicadas aos estudos joaninos. O estudo dos escritos joaninos, incluindo o Evangelho, as cartas joaninas e o Apocalipse, tem sido dificultado pela falta de tais publicações (Trecho do Prefácio).

 

Stanley E. Porter (1956-)This is the fourth of a series of volumes in the Johannine Studies series being published by Brill Publishers of Leiden. This volume is on the topic of the prologue to John’s Gospel and its many resonances within the entire Gospel. Narrow parameters have not been set on this topic, as is reflected in the varied nature of the individual contributions. We have not found it necessary to divide the contributions into various parts due to the narrower scope of this volume than others in the series.

The first volume in the series was Stanley E. Porter and Andrew K. Gabriel, Johannine Writings and Apocalyptic: An Annotated Bibliography, jost 1 (Leiden: Brill, 2013), the second was Stanley E. Porter and Hughson T. Ong, eds., The Origins of John’s Gospel, jost 2 (Leiden: Brill, 2016), and the third was Stanley E. Porter and Andrew W. Pitts, eds., Johannine Christology, jost 3 (Leiden: Brill, 2020). It is encouraging to see the strong and positive response to these volumes as we continue the series through the completion of the first five volumes. The final volume of this first set is: John’s Gospel and Its Sources.

I am pleased to say that we will be continuing the series with five more projected volumes, with more to come if these five continue to be of scholarly interest. The next five scheduled volumes are:

Volume 6: John and Judaism (2026)
Volume 7: John and the Synoptic Gospels (2027)
Volume 8: John and the “Fourth Quest” (2028)
Volume 9: Johannine Language (including Genre and Style) (2029)
Volume 10: Johannine Community and Audience (2030)

Johannine studies has seen a resurgence of interest in the last several years, with many of the assured results of previous Johannine scholarship being re-examined. These include theories regarding the origins of John’s Gospel, its relationship to the Synoptic Gospels, its theology, its historiography, and many other topics. This volume is part of a concerted effort to address the need for avenues of dedicated publication of Johannine studies. Study of the Johannine writings, including the Gospel, three Johannine letters, and Revelation, has been hampered by a lack of such dedicated publications. There are many such opportunities, including specific series and journals, for study of the Synoptic Gospels, and an equivalent number for the Pauline writings. Therefore, it is appropriate and necessary to publish a series devoted to the Johannine writings and their many attendant research questions.

This Johannine Studies series concentrates upon topics of special relevance for Johannine research, especially where recent work is re-conceptualizing old topics orDavid I. Yoon introducing new ones. The number of scholars devoting their efforts to such areas continues to grow, as is evidenced by the numbers of sessions dedicated to Johannine studies at recent major conferences, as well as the variety of Johannine publications finding their ways into various journals and other works.

Stanley E. Porter is President, Dean, and Professor of New Testament at McMaster Divinity College, Hamilton, Ontario, Canada.

David I. Yoon is Associate to the Academic Dean and Instructor of Biblical Studies at Emmanuel Bible College, and Research Fellow at McMaster Divinity College.