Layard e Botta em Nínive em 1842

Estes são trechos do capítulo 1, The Mounds of Nineveh, do livro de Mogens Trolle Larsen, The Conquest of Assyria: Excavations in an Antique Land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016.

Veja uma apresentação do livro no post A escavação arqueológica da Assíria, publicado no Observatório Bíblico em 17.08.2024. O capítulo 1, The Mounds of Nineveh,LARSEN, M. T. The Conquest of Assyria: Excavations in an Antique Land, 1840-1860. New York: Routledge, [1996] 2016, 424 p. pode ser lido na íntegra, em inglês, clicando aqui. Ou, na amostra do livro, aqui.

Layard chega a Mossul

Em um dia de calor escaldante de junho de 1842, dois cavaleiros chegaram aos portões de Mossul, uma cidade provincial no Império Otomano. Eles vinham de Bagdá, no sul, por uma estrada que os levou através da terra fértil a leste do Tigre. Eles chegaram a Mossul cruzando uma ponte frágil de barcos que conectava a cidade na margem ocidental com as aldeias do outro lado do Tigre.

Um dos homens era um carteiro turco que estava a caminho de Constantinopla, a mais de dois mil quilômetros de distância, com correio imperial oficial. O outro era um jovem vestido como um bakhtiyari, uma tribo que vivia no Cuzistão, a região montanhosa do sudoeste do Irã. No entanto, um olhar mais cuidadoso logo perceberia que ele era um europeu. E, de fato, depois de ter se separado de seu companheiro de viagem, que entrou no palácio do paxá local, ele foi direto para o vice-consulado britânico, onde foi recebido como um velho amigo. Ele era o aventureiro britânico de vinte e cinco anos, Austen Henry Layard.

Layard encontra Botta

No mesmo dia, ele foi apresentado ao novo cônsul francês em Mossul, Paul-Émile Botta, de quarenta anos, e o encontro entre esses dois teve um significado muito especial, pois pode-se dizer que marcou o início da exploração arqueológica da antiga Mesopotâmia. Botta e Layard estavam destinados a se tornarem os descobridores da antiga Assíria.

O que levou Botta e Layard a este lugar esquecido por Deus? O encontro deles foi acidental, nenhum deles conhecia o outro antes de se conhecerem em Mossul, mas descobriram que tinham interesses em comum. Layard estava a caminho de Constantinopla levando correspondência oficial britânica, mas como seu companheiro tinha negócios a tratar com o Paxá, eles tiveram que ficar na cidade por alguns dias. Isso deu a Layard a oportunidade de conhecer Botta, que era o cônsul francês recentemente nomeado em Mossul.

Botta e Layard em Nuniya

Eles não estavam realmente interessados em Mossul, mas olhavam com fascínio para os montes que estavam localizados do outro lado do rio, na margem oriental do Tigre. Uma série de enormes muralhas circundam uma área retangular de alguns quilômetros de comprimento e largura, e neste recinto ficavam alguns montes bem grandes. Os moradores locais chamavam toda a área de ‘Nuniya’, e acreditava-se que ali estava Nínive, a antiga capital assíria.

Hoje, esse nome provavelmente significa pouco para a maioria das pessoas, mas no século XIX ele ressoaria na mente de qualquer europeu razoavelmente educado, que conheceria as histórias sobre esta cidade do Antigo Testamento e de uma série de lendas contadas por autores clássicos. Nínive tinha sido o centro de um dos maiores e mais importantes impérios do mundo antigo, cujo poder, segundo a tradição, cobria todo o antigo Oriente Médio, incluindo a Palestina e o Egito. Era também, no entanto, um império que não havia deixado nenhum vestígio concreto para trás. A Assíria havia desaparecido, deixando nada além de mitos e lendas.

Exceto que havia esses vastos montes perto de Mossul, que, de acordo com a lenda local, cobriam as ruínas da cidade antiga. Essa tradição era de fato conhecida pelos eruditos da Europa , aqueles poucos que tinham ouvido falar do lugar, mas nunca foi uma informação que tivesse sido vista como particularmente importante ou interessante.

Layard já tinha visto os montes alguns anos antes, quando estava a caminho do sul em direção a Bagdá, e ele tinha ficado “profundamente comovido por sua grandeza desolada e solitária”. Ele agora revisitou Nínive na companhia de Botta e ouviu com excitação e ciúmes que o francês havia sido colocado em Mossul com o propósito de iniciar escavações na cidade antiga.

Nínive na Bíblia Hebraica

Botta e Layard vagavam pelos grandes montes próximos a Mossul envolvidos em especulações. O que estava escondido no chão sob seus pés? Esta era realmente a Nínive mencionada no Antigo Testamento? Lá a cidade aparece como a poderosa capital dos assírios, de onde seu império era governado, lar de reis como Tiglat-Pileser III, Salmanasar, Senaquerib e Assaradon*.

No Livro de Jonas [ca. 450 a.C.] lemos que Nínive era uma grande cidade, com uma população estimada em mais de cem mil habitantes.

Como capital dos assírios que atormentaram Judá e Israel, Nínive naturalmente não foi mencionada de forma positiva na Bíblia Hebraica. O profeta Naum [ca. 612 a.C.] canta um hino de puro êxtase pela destruição final de Nínive, na sua visão, uma cidade manchada de sangue, mergulhada em enganos, cheia de pilhagens, nunca vazia de presas.

Muitas outras passagens no Antigo Testamento expressam o mesmo ódio insondável aos assírios e sua enorme capital, pois foi daqui que começaram as campanhas intermináveis que acabaram por esmagar Israel e enviar os israelitas para o exílio em outras províncias do império assírio.

Xenofonte passou por lá em 401-400 a.C.

Como todos os europeus razoavelmente bem-educados, Botta e Layard conheciam os clássicos gregos e romanos. Eles sabiam que o primeiro relato das ruínas assírias foi dado pelo general grego Xenofonte, que liderou dez mil mercenários para a Babilônia e de volta nos anos 401-400 a.C.

Paul Émile Botta (1802-1870)Seu exército acampou uma noite em sua viagem de volta perto do Tigre em uma ruína que ele chama de “Larissa”, que deve ser o monte agora conhecido como Nimrud, um lugar que ocupa um papel central neste livro. Xenofonte pensou que esta “grande cidade deserta” havia sido construída pelos medos e pelo povo iraniano. No dia seguinte, o exército chegou a outra ruína que, Xenofonte descreveu como “uma grande fortificação indefesa perto de uma cidade chamada Méspila”. Este nome deve ser uma versão estranha de ‘Mossul’ e as ruínas que ele descreveu devem ser as mesmas que ocuparam Botta e Layard.

Xenofonte pode dar essa descrição seca e factual, mas ele nem sabe o nome do local. No entanto, ele esteve aqui apenas duzentos anos após a queda de Nínive, que aconteceu em 612 a.C., quando uma força combinada de medos e babilônios assaltou suas muralhas e destruiu a cidade. Parece que no curto espaço de tempo Nínive foi esquecida e que, embora as ruínas em si dificilmente pudessem ser esquecidas, os nomes antigos dessas cidades, para não falar de sua história, desapareceram da memória comum.

Benjamim de Tudela: 1173

Um visitante da Europa, o rabino Benjamim de Tudela, passou por lá em 1173 e viu as ruínas de Nínive – “agora bastante decrépitas” – e mais alguns as visitaram depois dele, como Riccoldo da Monte di Croce (1290), Leonhard Rauwolf (entre 1573 e 1576), Anthony Sherley (1599), John Cartwright (1601), Pietro della Valle (1616-25) e J. B. Tavernier (1644).

Carsten Niebuhr: 1766

Em março de 1766, cerca de setenta e cinco anos antes de Botta e Layard se encontrarem em Mossul, Carsten Niebuhr passou alguns dias aqui em seu caminho para casa da desastrosa expedição dinamarquesa à Arábia Félix. Sabemos que Botta leu o grande relato desta viagem publicado por Niebuhr, mas não está claro se Layard ouviu falar dele.

Niebuhr fornece um mapa de Mossul que mostra uma área que ele chama de Nínive do outro lado do rio. Ele assinalou os dois grandes montes: o menor ao sul é mostrado como uma vila moderna, que leva o nome de ‘Nuniya’, enquanto o maior ao norte é chamado de ‘Kalla Nuniya’, ou seja, ‘o Castelo de Nínive’. Niebuhr diz que havia uma vila localizada também neste monte e era chamada de ‘Koindsjug’. Este é obviamente o mesmo nome que é dado atualmente ao monte como tal, ‘Kuyunjik’, sob o qual ele aparece na literatura arqueológica.

As longas linhas de fortificações, as vastas muralhas da antiga Nínive, não podem ser encontradas no mapa de Niebuhr. Elas circundam toda a área e foram a única característica notada por Xenofonte, mas Niebuhr simplesmente não as viu quando atravessou a área a caminho de Mossul. Ele provavelmente os considerou inicialmente como colinas naturais e, como nunca teve oportunidade de medi-los cuidadosamente, naturalmente teve que ignorá-los em seu mapa. Como um filho do Iluminismo, ele não podia simplesmente inventar ou adivinhar e desenhar algumas linhas onde eles poderiam ter estado.

Ele dá uma visão especial da vila que ele chama de Nuniya, que ele diz ter sido construída ao redor de uma mesquita que, de acordo com a tradição judaica e muçulmana, continha o túmulo do profeta Jonas. Esta é outra memória da antiga Nínive, é claro, pois Jonas fora enviado por Deus a Nínive para alertar seus habitantes a abandonarem suas vidas pecaminosas.

Claudius Rich: 1820

O desenho e o mapa de Niebuhr, embora não muito corretos ou esteticamente agradáveis, foi um grande avanço, mas o estudo real do local começou com Claudius Rich que era o “Residente” em Bagdá, onde representava os interesses da grande Companhia das Índias Orientais no início do século XIX.

Em 1820 , ele fez medições cuidadosas de toda Nínive e produziu um mapa notavelmente preciso no relatório que foi publicado em 1836, após sua morte. Aqui encontramos os principais montes e as fortificações, muros que cercam uma área enorme e que são facilmente rastreáveis na paisagem. Encontramos os dois montes agora chamados Kuyunjik e Nebbi Yunus, isto é, o nome árabe para o monte sul, que significa “o Profeta Jonas”.

Rich conta que lhe disseram que os habitantes locais haviam, alguns anos antes, encontrado “um imenso baixo-relevo, representando homens e animais, cobrindo uma pedra cinza da altura de dois homens”. Ele também diz que “toda a cidade de Mossul saiu para vê-lo, e em poucos dias ele estava cortado ou quebrado em pedaços”.

Em Nebbi Yunus, ele viu grandes blocos de pedra com inscrições em algumas casas, alguns deles aparentemente ainda em seus lugares originais. Um deles, um pedaço de uma laje de alabastro com escrita cuneiforme, estava localizado na cozinha de uma casa miserável, e parecia ser parte da parede em uma pequena passagem que dizem continuar bem para dentro do monte. Algumas pessoas cavaram nele no ano passado, mas como ele passava por baixo das casas e eles estavam preocupados em não miná-las, eles o encheram novamente com entulho e apenas a parte da passagem que estava completamente aberta, e que faz parte da cozinha, pode agora ser vista.

Rich passou muitos anos em Bagdá e visitou ruínas em todo o país que hoje é o Iraque, fazendo medições e coletando achados. Ele já havia publicado um livreto contendo suas medições das ruínas da Babilônia. Ele conseguiu reunir uma pequena coleção de antiguidades do país, e após sua morte isso foi vendido ao Museu Britânico por sua viúva. Ali as antiguidades foram exibidas em uma caixa de vidro como um dos poucos testemunhos concretos da existência das culturas antigas na Assíria e na Babilônia. Layard tinha visto a coleção no museu, e sabemos que a publicação do livro de Rich teve um papel na decisão tomada pelas autoridades francesas de enviar Botta a Mossul para escavar Nínive.

Um pouco se sabia sobre a antiga Assíria

Assim, um pouco se sabia sobre a antiga Assíria, mas a caixa de vidro no Museu Britânico não conseguiu preparar ninguém para a realidade de Mossul. A desolação total de Nínive, e das outras ruínas antigas em toda a Mesopotâmia, as havia condenado ao silêncio, mesmo na já extensa literatura europeia preocupada com as ruínas do antigo Oriente Médio. Simplesmente não havia nada para ver aqui, apenas montes cobertos de grama, e nenhum vestígio que pudesse evocar memórias de grandeza passada. Em Nínive o visitante precisava de uma imaginação muito viva para evocar imagens de esplendor e beleza dos montes silenciosos e estranhamente anônimos.

Layard vagou entre colinas cobertas de grama e campos de milho cercados por longas fileiras de muros desmoronados, imaginando se eram realmente os restos de Nínive. E se fossem, o que então estava escondido no subsolo? Aqui devem estar os palácios gloriosos do rei assírio e os templos de seus deuses, e talvez fosse possível descobrir um pouco de tudo isso, encontrando evidências concretas de um passado que havia deixado tão poucos vestígios que parecia pertencer ao reino do mito e não do fato.

Uma tarefa gigantesca

A tarefa contemplada por Botta e Layard era muito mais complicada do que eles poderiam imaginar. A arqueologia de campo estava em sua mais tenra infância na Europa, e é obviamente uma proposta muito mais simples enfrentar um túmulo da Idade do Bronze do que começar em um monte que cobre as ruínas de uma cidade inteira.

A diferença em tamanho por si só é impressionante: Kuyunjik tem cerca de 15 m de altura e quase um quilômetro de comprimento, e Nebbi Yunus não é muito menor. Toda a área cercada pelos muros de Nínive tem cerca de 2,5 km de largura e cerca de 5 km de comprimento. Escavar um monte como Kuyunjik em sua totalidade usando técnicas adequadas de registro e escavação é uma tarefa que exigiria séculos para uma força de trabalho substancial. No entanto, eles estavam sonhando com uma descoberta total da cidade antiga.

No sul da Itália, um tipo de escavação já havia sido conduzida por um longo tempo nos sítios de Pompeia e Herculano, e é provável que Botta e Layard vissem sua tarefa como comparável ao trabalho realizado lá. No entanto, as duas cidades romanas estavam cobertas por lava e cinzas em chamas que as selaram em uma espécie de distorção temporal. Escavá-las era simplesmente uma questão de remover a cobertura, revelando as ruínas por baixo.

Os montes assírios constituíam um tipo de desafio bem diferente, pois um sítio como Kuyunjik é o resultado da atividade de milênios. As pessoas viviam aqui praticamente desde sempre, e o monte contém os restos de construções em um padrão complexo, situados uns sobre os outros, ruínas de vilas, cidades, templos e palácios, que se seguiram durante um período de tempo que, neste caso em particular, abrange pelo menos sete mil anos. Às vezes, casas individuais eram derrubadas, as paredes eram empurradas para que uma nova casa pudesse ser construída no local. Em outras ocasiões, todo o assentamento foi destruído e reassentado depois de um tempo. O resultado de todos esses atos e eventos individuais é a criação de uma espécie de bolo insano em camadas construído por um chef confeiteiro louco.

Mas quem pode ver isso, andando por esses montes gramados? Na verdade, havia indicadores, pois algumas aldeias ainda podiam ser encontradas no topo de alguns dos montes antigos. Em alguns casos, cidades inteiras ainda estavam empoleiradas em um monte, dando uma indicação de como elas tinham sido acumuladas – enquanto, ao mesmo tempo, obviamente impediam os arqueólogos de fazerem suas tarefas.

No entanto, é razoável sustentar que Botta e Layard realmente não podiam saber que quebra-cabeça complexo e intrincado estava escondido sob seus pés. Botta já havia começado sua tarefa arqueológica antes da chegada de Layard e havia se dado conta das dificuldades de sua empreitada, embora os primeiros problemas que ele enfrentou não fossem realmente de natureza arqueológica.

Botta investiga Nebbi Yunus

Ele havia colocado alguns trabalhadores em Nebbi Yunus para investigar as antigas fundações de pedra que, como Rich havia visto, regularmente aparecia embaixo deAusten Henry Layard (1817-1894) casas modernas , mas ele teve que desistir desse trabalho por causa da oposição violenta tanto do Paxá quanto dos líderes religiosos locais, que temiam que suas atividades pudessem violar ou destruir a mesquita sagrada com o túmulo do profeta Jonas. Essa oposição motivada religiosamente se tornaria um verdadeiro pesadelo para ambos os homens nos anos que se seguiram.

Quando ele começou suas atividades arqueológicas, Botta tinha pouco para prosseguir. As investigações de Rich ajudaram, é claro, e seu relato deixou claro que ruínas de fato existiam aqui, então havia razão para confiar na visão tradicional de que esta era Nínive. Mas o que exatamente ele deveria procurar? Havia muitas histórias sobre pedras com imagens e escritas estranhas, mas onde elas estavam? Quando Layard chegou a Mossul, Botta não conseguiu mostrar resultados de seus esforços até então.

Tendo sido forçado a abandonar Nebbi Yunus, ele pareceu hesitante ao enfrentar o desafio de Kuyunjik, então se concentrou por algum tempo em coletar antiguidades e reunir informações sobre onde descobertas haviam sido feitas anteriormente. Mesmo neste campo, seus resultados foram modestos, e ele estava convencido de que muito poucas descobertas tinham de fato sido feitas nas proximidades de Mossul. Ele concluiu que Rich havia coletado a maioria das antiguidades que tinham sido descobertas aqui.

Em sua visita anterior à área, Layard ficou especialmente fascinado por um enorme monte conhecido como Nimrud, que ficava perto do Tigre, ao sul de Mossul. Ele parou aqui e sonhou em descobrir os palácios do passado que ele estava convencido de que estavam escondidos aqui. Desde aquela visita, ele viu muitas outras ruínas na Babilônia ao sul e nas montanhas iranianas, e teve várias oportunidades de falar com pessoas profundamente interessadas no passado do país. Portanto, ele tinha muito a dizer a Botta e parece provável que o entusiasmo do jovem inglês ajudou a manter as atividades de Botta vivas.

A breve visita de três dias tornou-se o início de uma amizade pessoal entre dois homens que obviamente se admiravam e respeitavam. O relacionamento deles era livre tanto da rivalidade pessoal quanto nacionalista-chauvinista que viria a marcar o trabalho dos arqueólogos na antiga Mesopotâmia durante os anos que se seguiram.

Layard foi para Constantinopla – onde permaneceu como membro da equipe do embaixador. Enquanto ele mergulhava em novas aventuras na capital turca, Botta continuou suas atividades infrutíferas e regularmente escrevia a Layard sobre seu trabalho. Ele, por sua vez, tentou encorajar Botta a continuar e sugeriu que ele tentasse sua sorte em Nimrud.

Botta investiga Kuyunjik

Em dezembro de 1842, meio ano após a visita de Layard, Botta finalmente colocou um grupo de trabalhadores em Kuyunjik , onde eles cavaram algumas trincheiras, mas mesmo aqui ele não teve sorte. Somos informados de que ele não encontrou nada, o que significa que ele só encontrou coisas que não significavam nada para ele: cacos de cerâmica, fragmentos de pedra, tijolos, às vezes com inscrições. Era impossível reconhecer um plano ou qualquer construção na perturbação caótica de
edifícios que outrora coroaram este local.

Cacos de cerâmica, o mais importante grupo de achados para o arqueólogo moderno, nada diziam para Botta ou seus trabalhadores. Eles tinham que encontrar algo monumental para simplesmente se tornarem cientes de que havia algo para encontrar e, para começar, Nínive não ofereceu nada útil. Portanto , ele tinha pouco a contar em suas cartas a Layard.

Botta escava Khorsabad

Foi somente em abril do ano seguinte, 1843, que ele pôde escrever algo verdadeiramente positivo sobre suas atividades. Porém, por outro lado, era uma mensagem sensacional que ele pôde enviar: ele finalmente havia descoberto a antiga Assíria!

Já quando seus trabalhadores começaram a escavar em Kuyunjik, ele recebeu a visita de um homem que veio de uma vila chamada Khorsabad. Ele explicou que este assentamento, a cerca de 25 km de Mossul, foi construído no topo de um monte e que pedras com figuras e inscrições foram descobertas ali em várias ocasiões. Botta recebia muitas dessas visitas e ouvia histórias que sempre acabavam sendo pura imaginação, então ele não levou a sério o homem de Khorsabad. Em março, após meses de trabalho infrutífero em Kuyunjik, ele ficou tão frustrado que ele decidiu descobrir se havia alguma realidade por trás da história.

Ele enviou uma equipe de trabalhadores para Khorsabad, onde eles deveriam cavar alguns buracos, e três dias depois ele recebeu uma mensagem dizendo que eles haviam encontrado relevos e inscrições. Mesmo assim, Botta estava cético e enviou um de seus funcionários para fazer um desenho de uma dessas inscrições, e foi somente quando ele retornou com algo que parecia genuíno que Botta finalmente decidiu mudar suas operações para Khorsabad.

Em 5 de abril, ele pôde enviar uma carta a Paris na qual anunciava que tinha descoberto ‘as ruínas de um monumento que é notável tanto pelo número como a natureza das esculturas que o adornam’. Triunfantemente ele pôde concluir: ‘Acredito ser o primeiro a descobrir esculturas que podem ser consideradas pertencentes à época em que Nínive ainda estava florescendo’.

Esta mensagem, que Botta enviou a Paris através de Constantinopla, onde Layard a leu com entusiasmo, tornou-se o início de uma fase agitada de descobertas com escavações em vários montes por todo o país. Uma civilização que havia desaparecido subitamente emergiu do solo.

* A Assíria teve 4 capitais:

1. Assur: capital da Assíria desde o II milênio a.C. e cidade de grande importância religiosa ao longo de toda a sua história
2. Kalhu (Nimrud), escolhida como capital por Assurnasírpal (reinou de 883 a 859 a.C.)
3. Dur-Sharrukkin (Khorsabad), construída por Sargão II a partir de 713 a.C.
4. Nínive, escolhida como capital por Senaquerib (reinou de 705 a 681 a.C.)

Algumas referências**

BOTTA, P. E. M. Botta’s Letters on the Discoveries at Nineveh. London: Forgotten Books, 2018.

GUINSBURG, J. O Itinerário de Benjamim de Tudela. São Paulo: Perspectiva, 2017.

LAYARD, A. H. Autobiography and Letters from his childhood until his appointment as H.M. Ambassador at Madrid. London: Forgotten Books, 2019.

NIEBUHR, C. Travels Through Arabia and Other Countries in the East. Norderstedt: Hansebooks, 2018.

RICH, C. J. Narrative of a Residence in Koordistan, and On the Site of Ancient Nineveh, 2 vols. Legare Street Press, 2022-2023.

XENOFONTE A retirada dos dez mil. Lisboa: Bertrand Editora, 2014.

**Estas obras antigas podem, em geral, ser acessadas gratuitamente na internet. Tente aqui.

Vida e feitos de Alexandre Magno

OGDEN, D. (ed.) The Cambridge Companion to Alexander the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 612 p. – ISBN 9781108840996.

Qual personagem da antiguidade cativou a imaginação das pessoas ao longo dos séculos tanto quanto Alexandre Magno? Em menos de uma década, ele criou um impérioOGDEN, D. (ed.) The Cambridge Companion to Alexander the Great. Cambridge: Cambridge University Press, 2024, 612 p. que se estendia por grande parte do antigo Oriente Médio até a Índia, o que levou a cultura grega a se tornar dominante em grande parte desta região por um milênio.

Neste livro uma equipe internacional de especialistas explica claramente a vida e a carreira de uma das figuras mais significativas da história mundial. Eles introduzem temas-chave de sua campanha, bem como descrevem aspectos de sua corte e governo e exploram as naturezas muito diferentes de seus engajamentos com os vários povos que ele encontrou e suas respostas a ele.

O leitor também é apresentado às principais fontes, incluindo os historiadores fragmentários mais importantes, especialmente Ptolomeu, Aristóbulo e Clitarco, com suas diferentes perspectivas. O livro termina considerando como a imagem de Alexandre foi manipulada na própria antiguidade.

Daniel Ogden é professor de História Antiga na Universidade de Exeter, Reino Unido. Veja suas publicações.

 

Has any ancient figure captivated the imagination of people over the centuries so much as Alexander the Great? In less than a decade he created an empire stretching across much of the Near East as far as India, which led to Greek culture becoming dominant in much of this region for a millennium.

Here, an international team of experts clearly explains the life and career of one of the most significant figures in world history. They introduce key themes of his campaign as well as describing aspects of his court and government and exploring the very different natures of his engagements with the various peoples he encountered and their responses to him.

Daniel Ogden (1963-)The reader is also introduced to the key sources, including the more important fragmentary historians, especially Ptolemy, Aristobulus and Clitarchus, with their different perspectives. The book closes by considering how Alexander’s image was manipulated in antiquity itself.

Daniel Ogden is Professor of Ancient History at the University of Exeter. His previous publications include: Polygamy, Prostitutes and Death: The Hellenistic Dynasties (1999; 2nd ed., 2023); (ed.) The Hellenistic World: New Perspectives (2002); (co-ed. with Elizabeth Carney) Philip and Alexander: Father and Son, Lives and Afterlives (2010); Alexander the Great: Myth, Genesis and Sexuality (2011); and The Legend of Seleucus (Cambridge, 2017)

Assíria e Egito na Palestina na época de Josias

NA’AMAN, N. Josiah and the Kingdom of Judah. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 189-247.

Vou transcrever aqui três trechos do capítulo de Nadav Na’aman sobre “Josias e o reino de Judá”.Nadav Na'aman (1939-)

Sobre o livro, confira minha postagem Bons e maus reis: Judá no século sétimo.

Para conhecer melhor o assunto, recomendo a leitura de três posts:
1. Reforma atribuída a Josias teria sido proposta só no pós-exílio. É uma tradução do capítulo escrito por Philip R. Davies no mesmo livro. Publicado no Observatório Bíblico em 25.09.2024
2. As reformas de Ezequias e Josias podem não ter acontecido, sobre um texto de Juha Pakkala, publicado no Observatório Bíblico em 18.09.2024
3. Uma leitura crítica da reforma de Josias – Publicado no Observatório Bíblico em 17.04.2022

As referências bibliográficas e as notas de rodapé do texto de Nadav Na’aman foram omitidas, mas são numerosas. Podem ser consultadas no texto original, em inglês, que está disponível, gratuitamente, em Academia.edu. Clique aqui.

 

O fator egípcio

Sabemos que o faraó Psamético I ascendeu ao trono do Egito com o apoio da Assíria, que o ajudou a frustrar a tentativa de retomada do Egito pelos governantes da dinastia núbia (Vigésima Quinta) e se esforçou para manter seu status sênior entre os príncipes do Delta.

Em 656 a.C., Psamético I conseguiu unir todo o Egito sob seu governo e destronar seus concorrentes entre os príncipes do Delta. Nem fontes egípcias nem clássicas atestam qualquer rivalidade entre a Assíria e o Egito.

Apenas uma vez o Egito é mencionado nas fontes assírias posteriores: o rei Giges da Lídia é acusado de ter “enviado suas tropas para ajudar Tushamilki/Pishamilki, rei do Egito, que havia se livrado do meu jugo”. O dito apoio militar não passa de um envio de mercenários da Lídia para o Egito, o que está de acordo com o relato de Heródoto (11,152) de que Psamético I alistou a ajuda de mercenários jônios e cários, e com a menção em Jeremias (46,9) de “homens de Lud” no exército egípcio.

O início das hostilidades entre Giges e a Assíria deve, ao que parece, ser datado em meados da década de 650 – que é aparentemente quando Psamético I se libertou do jugo assírio.

As fontes assírias, egípcias e gregas não nos dizem nada sobre as relações hostis entre a Assíria e o Egito; parece que a retirada assíria ocorreu após a conclusão de um acordo com Psamético I, protegido da Assíria que se tornou aliado.

O próximo testemunho que chegou até nós sobre as relações entre a Assíria e o Egito é de um período posterior: em 616 a.C., o exército egípcio foi enviado para ajudar o rei Sin-shar-ishkun da Assíria, então em guerra com o exército babilônico.

Duas questões surgem agora: Quando os egípcios entraram na Ásia e quando o Egito se tornou tão próximo da Assíria a ponto de estar disposto a enviar seu exército para ajudar seu aliado gravemente sitiado?

Essas questões não têm respostas inequívocas. Ao que parece, a entrada egípcia na Ásia não foi uma conquista forçada, mas parte de uma retirada assíria por acordo, com o Egito (gradual ou rapidamente) tomando o lugar da Assíria nas áreas desocupadas. Parece que a aliança entre os dois poderes se tornou especialmente próxima durante o reinado de Sin-shar-ishkun, depois que ele esmagou a rebelião de seu general (fim do ano 623 a.C.), e ele estava disposto a pagar um alto preço territorial no oeste para superar o severo perigo que o ameaçava e a seu reino no sul e leste.

A aliança renovada entre a Assíria e o Egito pode, portanto, ter sido concluída no final da década de 620; isso, por sua vez, significaria que somente então a Assíria recuou (e o Egito entrou) nos territórios além do Eufrates.

Heródoto afirma que Psamético I sitiou Ashdod (Azoto) por 29 anos antes de finalmente tomar a cidade (11.157).

Tadmor tentou interpretar esta passagem como significando que o cerco ocorreu, e a cidade caiu, em 635 a.C., o vigésimo nono ano do reinado de Psamético I. Ele então concluiu que a Assíria havia recuado da costa da Filisteia antes mesmo de 635 a.C.

Esta suposição, no entanto, não é compatível com o significado da declaração de Heródoto (‘De todas as cidades, aquela Azoto, até onde sabemos, resistiu por mais tempo diante do cerco’); aqueles estudiosos que ligaram os 29 anos mencionados neste contexto com o comentário anterior de Heródoto (1,106) sobre os 28 anos de governo cita na Ásia parecem estar corretos.

Parece que os ’29 anos de cerco’ surgiram da especulação cronológica da parte de Heródoto: de acordo com seus cálculos, o cerco começou quando Psamético I partiu para encontrar os citas na costa da Filisteia e os persuadiu a recuar (I, I 05), e terminou imediatamente após a derrota cita pelos medos 28 anos depois, pondo fim ao seu governo na Ásia. Parece que esta não é uma data que permita uma datação cronológica exata. Aparentemente, Heródoto apenas desejava afirmar que Ashdod foi conquistada após a derrota cita por Ciaxares, ou seja, no final do século VII a.C.

Para concluir, parece que nenhum elemento colocou em risco o controle assírio da Síria e da Palestina antes da morte de Assurbanípal e da eclosão da revolta na Babilônia, na década de 620, e que o governo assírio continuou até aquela época na Palestina também.

Embora o Egito possa ter alcançado uma posição na costa dos filisteus em algum período anterior, isso não pode ser efetivamente provado. Nem sabemos se o Egito foi forçado a conquistar alguns dos lugares evacuados pela Assíria, pois pode muito bem ter havido resistência (como a de Ashdod) ou mesmo revoltas no estágio crítico da mudança de soberania.

Em princípio, a retirada assíria foi implementada em coordenação com o Egito, que poderia, de todos os pontos de vista possíveis, ser considerado uma espécie de “estado sucessor” para os territórios desocupados pela Assíria.

Do que pode ser concluído que Josias foi um vassalo da Assíria durante a primeira metade de seu reinado, e que, mesmo depois de se libertar do jugo assírio, ele se tornou (pelo menos nominalmente) um vassalo do Egito.

No entanto, o Egito estava amarrado a obrigações naquela época, tanto porque tinha que garantir seu controle da costa e das rotas de transporte marítimo que haviam caído em suas mãos, quanto por causa de seu compromisso de ajudar a Assíria em troca dos territórios que havia obtido a oeste do Eufrates.

Nem devemos esquecer o padrão de governo egípcio que data do período do Novo Império, quando a ênfase principal era colocada no controle dos distritos do vale e da costa, enquanto as áreas montanhosas eram consideradas de importância secundária.

Este estado de coisas deu a Josias considerável liberdade de ação nas regiões internas do país, e não há dúvidas de que ele explorou essa liberdade para reunir forças, unificar e cristalizar seu reino (a reforma do culto desempenhou um papel importante nessas tendências) e, até certo ponto, até mesmo expandir suas fronteiras.

Na minha opinião, a submissão do reino à Assíria durante a primeira metade do reinado de Josias, e a subordinação formal ao Egito durante a segunda metade, explicam a maneira como o autor do livro dos Reis apresentou a relação do Reino de Judá com a Assíria e o Egito.

De acordo com a descrição naquele livro, Judá se libertou do jugo assírio após a campanha de Senaquerib, e não se tornou um vassalo egípcio até depois da morte de Josias.

Esta apresentação extraordinária, tão diferente da realidade histórica do século VII a.C., é (entre outros motivos) destinada a mascarar o fato de que Josias, o mestre de lealdade incomparável a Deus e seus preceitos (2 Rs 23,25), foi subordinado a governantes estrangeiros durante a maior parte de seus dias – uma subordinação percebida na perspectiva deuteronomista como inadequada para o rei justo.

Ao selecionar apenas material específico, o autor foi capaz de apresentar uma imagem diferente do passado, retratando Josias como tendo agido independentemente de ditames estrangeiros durante todo o seu governo e tendo sido capaz de implementar as reformas necessárias sem a intervenção de um elemento estrangeiro.

 

As circunstâncias da morte de Josias

Nas discussões sobre a relação entre o reino de Judá e o Egito, um papel importante é ocupado pela morte de Josias perto de Meguido em 609 a.C.

Uma grande quantidade de literatura foi escrita sobre este assunto, com a principal diferença de opinião centrada na questão de dar crédito à versão relatada em 2 Crônicas 35,20-24, apesar de seu desvio drástico daquela dada em 2 Reis 23,29-30.

Em 609 a.C., o faraó Necao II (610-595 a.C.) lançou uma campanha para o norte da Síria, em um esforço para ajudar seu aliado Assur-uballit II, que estava cercado pelos babilônios e medos e prestes a perder seu último ponto de apoio na Mesopotâmia ocidental.

GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005Muitos estudiosos tendem a aceitar a hipótese de que, em seu caminho para o norte com seu exército, Necao II passou pela Palestina e encontrou Josias perto de Meguido.

Neste contexto, deixe-me colocar uma questão até agora não suficientemente discutida: Por que o faraó e seu exército tiveram que passar pela Palestina em seu caminho para o norte da Síria? Por que Necao II não adotou as táticas dos reis egípcios na época do Reino Novo, que frequentemente navegavam até a costa libanesa e lançavam campanhas de lá, via Nahr el-Kebir (Eleutheros), para o Orontes?

Desta forma, Necao II poderia ter ido por mar até a costa libanesa e partido de lá por terra, por meio de sua base militar em Ribla no Orontes, para o norte da Síria, encurtando o tempo de viagem e evitando esgotar suas forças em uma extenuante marcha forçada da fronteira egípcia para o campo de batalha perto do Eufrates.

Neste contexto, notamos que o Egito controlou a Fenícia durante os anos anteriores à campanha de 609 a.C. Um indicativo do controle do Egito sobre a costa libanesa naquela época é uma estela datada do quinquagésimo segundo ano de Psamético I (612 a.C.), que registra o enterro de um Ápis e menciona o imposto pago pelos reis fenícios ao Egito e a nomeação de um inspetor egípcio sobre eles. Uma estela de Psamético I foi descoberta em Arwad; um fragmento de uma inscrição, talvez datada do reinado daquele rei, foi encontrada em Tiro; e uma estela de Necao II foi encontrada em Sídon. A inscrição de Nabucodonosor de Wadi Brisa menciona “o inimigo maligno”, sem dúvida o rei do Egito, que controlava as montanhas do Líbano até sua expulsão pelo governante babilônico.

Parece-me que a razão pela qual Necao II escolheu viajar pela Palestina está na transferência de poder que ocorreu no Egito não muito antes.

Psamético I morreu entre julho e setembro de 610 a.C., e 609 foi o segundo ano de reinado de seu sucessor, Necao II. W. Helck (Die Beziehungen Agyptens zu Vorderasien im3. and 2. Jahrtausend v. Chron. Wiesbaden: Otto Harrassowitz, 1971) destacou que os oficiais egípcios costumavam fazer um juramento de fidelidade ao faraó reinante; quando o rei morria, o juramento se tornava inválido, e os oficiais tinham que fazer um juramento ao seu sucessor.

Em vista desse fato, Helck levantou a hipótese de que durante o período do Reino Novo os reis cananeus também tinham que jurar fidelidade a cada novo governante, e deu isso como explicação para campanhas feitas por vários reis egípcios a Canaã.

No primeiro ano de seu governo Necao II aparentemente veio à Palestina em 609 a.C. por esse mesmo motivo: para administrar um juramento de fidelidade a seus vassalos, cujo juramento anterior havia se tornado inválido com a morte de seu pai.

Não há, então, necessidade de assumir que todo o exército egípcio passou pela Palestina a caminho do norte. É até provável que Necao II tenha chegado à Palestina por mar a caminho da costa libanesa, e tenha parado lá apenas brevemente.

Além disso, pode-se perguntar se ele não aproveitou a oportunidade para alistar um exército dentre seus vassalos e adicioná-los à força expedicionária egípcia em seu caminho para o norte. Deve-se lembrar que, em vários momentos durante o tempo do Reino Novo, forças auxiliares foram alistadas dentre os vassalos, a fim de auxiliar o exército egípcio em suas guerras. Este também pode ter sido o caso em 609 a.C.: os vassalos de Necao podem ter recebido ordens de enviar unidades do exército para ajudar na campanha para o norte.

É contra esse pano de fundo que devemos reexaminar a descrição bíblica dos eventos de 609 a.C.

Deixe-me primeiro citar a passagem de 2 Reis 23,29: ‘Em seus dias, o faraó Necao, rei do Egito, subiu ao rei da Assíria até o rio Eufrates. O rei Josias foi encontrá-lo; e o faraó Necao o matou em Meguido, quando o viu’.

O versículo abre com a palavra bymyw (‘em seus dias’) – uma fórmula de abertura editorial típica que introduz um relato cronístico (cf. 1 Reis 16,34; 2 Reis 8,20; 24,1).

O relato que se segue não dá a menor sugestão de uma batalha. Portanto, é possível que Josias tenha se reportado ao governante egípcio, seu senhor, em Meguido, para lhe fazer um juramento de fidelidade e que, na situação crítica da iminente primeira campanha do novo governante ao norte, Josias tenha sido suspeito ou acusado de deslealdade e morto no local.

Imediatamente depois, Necao II continuou sua campanha para o norte, e Joacaz, filho de Josias, foi coroado em Judá (2 Rs 23,30).

No entanto, embora tenha falhado em sua campanha contra a Babilônia e tenha sido forçado a recuar da Mesopotâmia, Necao II ainda estava no controle absoluto de Judá: ele foi capaz de prender o governante judaíta que apareceu diante dele em Ribla para fazer um juramento de fidelidade e obter a permissão de Necao para governar em Judá; de coroar outro governante (Joaquim) de acordo com sua própria escolha; e de impor um imposto pesado sobre o reino (2 Rs 23,31-35).

Durante a implementação dessas medidas, Necao II permaneceu em Ribla, na Síria, e, até onde sei, não precisou de meios militares para impor sua vontade.

Isso é suficiente para confirmar a conclusão de que, já nos dias de Josias, Judá era pelo menos formalmente subordinado ao Egito, e que o assassinato de Josias tinha a intenção de intimidar os judaítas a obedecerem as instruções do governante egípcio.

Josias talvez tenha tentado mudar o status quo e se rebelar contra o Egito? Ele aproveitou a transferência de poder e a situação crucial de 609 a.C. para atacar o novo governante quando ele passou pela Palestina?

Esta é a conjectura feita por vários estudiosos, que rejeitaram a evidência dada em Reis e preferiram o relato detalhado em 2 Crônicas 35,20-24.58. Não analisarei esse relato problemático, a ampla gama de opiniões expressas a respeito dele ou os complexos problemas historiográficos que ele levanta.

Parece-me que toda a descrição nada mais é do que uma interpretação especulativa e abrangente dada pelo autor de Crônicas à breve e pouco esclarecedora descrição de Reis, em uma tentativa de adaptá-la à sua própria doutrina especial de retribuição, ao mesmo tempo em que integra descrições das mortes de dois governantes – Acab, rei de Israel (1 Reis 22,29-36), e Ocozias, rei de Judá (2 Reis 9,27-28) – que ele encontrou em sua fonte, o livro de Reis.

É importante enfatizar que a suposição de uma batalha perto de Meguido levanta uma série de dificuldades.

Por que o governante de um pequeno reino escolheria lutar contra o governante de uma grande potência em batalha em campo aberto, em circunstâncias que dariam ao exército maior e mais forte todas as vantagens possíveis? Por que ele se posicionaria em um lugar tão longe de seu reino, o que não lhe dava nenhuma vantagem? Além disso, se Josias era um governante tão forte a ponto de ousar se apresentar para a batalha em campo aberto contra o rei do Egito, por que seu reino se rendeu incondicionalmente tão logo após sua morte, permitindo que Necao II assumisse o controle absoluto? Por que o rei Joacaz de Judá não confiou em suas fortalezas e seu exército, naqueles distritos onde o exército egípcio era obviamente fraco e onde ele poderia ter desfrutado de uma vantagem significativa sobre seu rival – especialmente porque o rei do Egito tinha acabado de falhar em sua campanha e estava sendo duramente pressionado pelos babilônios? Por que ele se reportou, por vontade própria, à distante Ribla, embora pudesse facilmente ter adivinhado a reação do rei do Egito (cf. Jr 22,10-12)?

Em vista dessas considerações, parece preferível adotar o breve e despretensioso testemunho do livro dos Reis, em vez da descrição detalhada e colorida do livro das Crônicas, e assumir que Necao II matou Josias quando ele apareceu diante dele, talvez para fazer um juramento de fidelidade.

O pano de fundo para esse feito é desconhecido, e qualquer hipótese possível a esse respeito (insatisfação com a independência demonstrada pelo rei de Judá e evidenciada por suas reformas; sua atividade em Samaria, fora das fronteiras de seu reino; sua recusa em enviar um exército para auxiliar o rei do Egito em sua campanha) permanecerá sem comprovação.

 

Josias na historiografia e na realidade histórica

O retrato do reinado de Josias, conforme refletido nesta discussão [Josiah and the Kingdom of Judah], está muito distante da descrição daqueles anos, conforme refletido no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de sua época apresentada na historiografia moderna.

Em contraste total com a realidade histórica, o autor do livro dos Reis apresentou a revolta de Ezequias contra a Assíria como um sucesso impressionante, e a campanha assíria em Judá como tendo terminado em fracasso e na retirada do governante assírio, após a intervenção dramática do Deus de Israel.

Para reforçar essa imagem da revolta como um sucesso, o autor omitiu qualquer menção à Assíria daquele ponto em diante: qualquer um que lesse a história de Manassés, Amon e Josias no livro dos Reis, e não encontrasse ali nenhuma sugestão da dominação assíria, teria que concluir – em vista da sequência interna de eventos do livro dos Reis – que Judá caiu sob o jugo da Assíria no reinado de Acaz e foi libertado durante o de Ezequias.

Dessa forma, o autor do livro dos Reis evitou ter que descrever a realidade externa nos dias de Josias – uma realidade na qual Judá foi subordinado a um grande poder por muitos anos e, após a retirada desse poder, tornou-se subordinado (pelo menos nominalmente) a outro. Uma realidade muito fora de sintonia com a imagem do rei justo.

Em vez disso, o autor se concentrou em assuntos internos e descreveu em grandes detalhes a implementação das reformas, pelas quais todos os cultos estrangeiros foram erradicados, deixando apenas a adoração sagrada do Deus de Israel, centralizada no Templo em Jerusalém.

Somente no relato da morte de Josias, e mesmo assim com pressa deliberada, o autor fez alguma referência aos assuntos estrangeiros de Judá.

Daquele ponto em diante, os grande poderes e a política externa assumem um papel central em sua obra. De acordo com a descrição do livro dos Reis, Judá foi subordinado ao Egito durante o reinado de um rei pecador (Joacaz), assim como havia se tornado submisso à Assíria sob outro rei pecador (Acaz), e havia conquistado sua liberdade sob um rei justo (Ezequias).

Nem deveríamos nos surpreender que todos os últimos reis de Judá, que foram dominados por potências estrangeiras (primeiro o Egito, depois a Babilônia), foram descritos no livro dos Reis como tendo feito “o que era mau aos olhos do Senhor”, uma frase que pode não representar o estado real das coisas em seu tempo.

As lacunas no livro dos Reis foram preenchidas pelas obras de vários estudiosos; as múltiplas nuances dessas obras foram repetidamente apontadas no curso desta discussão.

Muitos estudiosos presumiram que Josias libertou seu reino do jugo assírio nos estágios iniciais de seu reinado, desfrutou de muitos anos de governo independente e expandiu seu reino sobre vastas áreas. Alguns chegaram a assumir que ele controlava a maior parte do território israelita e até mesmo atribuíram a ele a tendência de restaurar o reino de Davi à sua antiga glória.

Em contraste com isso, tentei mostrar que Josias foi submisso à Assíria durante a primeira parte de seu reinado, e que, após a retirada assíria, o Egito entrou imediatamente em cena e assumiu os territórios da Assíria e, em uma extensão não insignificante, seu status.

A ideia de facções rivais pró-assírias e pró-egípcias operando em Judá na época de Josias parece, na minha opinião, estar divorciada da realidade e baseada em uma analogia errônea com o estado de coisas em um período posterior, quando a Babilônia e o Egito estavam lutando pelo controle da Palestina.

Na época de Josias, a Assíria e o Egito eram aliados, não rivais. Consequentemente, pode ser possível falar de círculos nacionalistas clamando por ousadia política, em oposição a círculos mais conservadores que, à luz das lições aprendidas com a campanha de Senaquerib, defendiam o compromisso com as grandes potências e a contenção de medidas que pudessem colocar em risco o bem-estar do reino; mas certamente não é correto falar de orientações opostas entre Assíria e Egito.

Não sabemos se o Egito firmou ou não uma posição na costa filisteia antes mesmo da retirada assíria da Palestina. Em todo caso, a principal mudança no estado de coisas na área ocorreu somente depois que a Assíria falhou em seus esforços para suprimir a revolta babilônica, que começou em 626 a.C., e após a eclosão da guerra civil em 623 a.C.

Após esses desenvolvimentos, a Assíria recuou de Eber-Nāri (‘Além do Rio’) e entregou esses territórios ao Egito em troca de ajuda militar. Nos anos subsequentes, o Egito se ocupou em reforçar seu status nas regiões evacuadas e deu assistência militar à Assíria. Portanto, Judá desfrutou de uma medida considerável de independência, apesar de ser formalmente subordinado ao Egito.

Josias aproveitou essa situação para implementar reformas abrangentes em seu reino, focadas na extirpação de cultos “estrangeiros” e na concentração da adoração no Templo em Jerusalém. Nisso, ele foi auxiliado pelo despertar da consciência nacionalista em círculos extensos por todo o reino, embora outros círculos oposicionistas sem dúvida tenham feito tudo o que estava ao seu alcance para impedir a implementação das reformas.

Algum tempo depois, o reino de Josias expandiu-se para o norte; ele capturou Betel, o centro de culto que tinha sido o grande rival de Jerusalém durante os dias do reino de Judá, destruiu o local de adoração e anexou a área ao seu reino.

Ele também pode ter estendido seu governo para Samaria, fora do alcance dos interesses políticos imediatos do Egito, no qual não havia um corpo bem formado para assumir o controle e concentrar o poder independente após a retirada assíria.

A extensão da atividade de Josias na antiga província assíria de Samaria não é conhecida. No entanto, ele certamente não ousou anexar toda a região, em vista da esperada resposta egípcia a tal feito, e por causa das grandes dificuldades previstas na tentativa de assimilar sua população em seu reino.

Ao longo de sua história, Israel e Judá foram dois reinos diferentes, e após sua conquista, Samaria se tornou uma província assíria. Sua anexação teria sido considerada um ato de agressão e a assimilação de sua vasta população provavelmente estava além do poder do pequeno reino de Judá.

Josias não conseguiu se expandir para o oeste, devido ao perigo de conflito com o Egito, bem como ao crescimento e fortalecimento de seu vizinho Ekron, que se tornou uma espécie de estado-tampão entre a área costeira e o reino de Judá.

A extensão do reino de Judá no tempo de Josias é refletida nas listas de cidades de Judá e Benjamim no livro de Josué. Essas listas, seu significado e data, constituíram um ponto de partida para as discussões na segunda parte deste estudo.

As informações à nossa disposição sobre a época de Josias, extraídas das descrições dos livros de Reis e Crônicas, são surpreendentemente limitadas e não nos permitem determinar a extensão de seu reino, muito menos sua força e poder econômico.

A datação das listas de cidades no tempo de Josias e a integração da data com os dados arqueológicos sobre a extensão do assentamento, sua força e implantação em Judá no sétimo século a.C. fornecem o ponto de apoio tão vital para nossa discussão.

A combinação de informações textuais e arqueológicas nos permite afirmar que, em todos os assuntos relacionados à extensão de suas fronteiras, sua força de assentamento e poder econômico, o reino de Josias era consideravelmente mais fraco do que o reino que existia no século VIII a.C.

Os resultados destrutivos da campanha de Senaquerib permaneceram evidentes mesmo nos últimos anos do reinado de Josias, quase um século após o fim da campanha. De fato, não poucos locais que foram destruídos em 70 l a.C. e seus habitantes exilados ainda estavam instáveis.

O período da pax Assyriaca permitiu que Judá se recuperasse gradualmente, restaurasse alguns de seus assentamentos e fortalecesse sua economia. Mas não apenas Judá desfrutou de um período de tranquilidade e prosperidade nessa época. O mesmo aconteceu com seus vizinhos orientais e ocidentais, cuja expansão exerceria considerável influência no destino de Judá nos últimos estágios de sua existência.

Josias desfrutou de um período prolongado de paz durante seu governo; após a retirada assíria, ele tomou medidas enérgicas para a estabilização de seu reino, e talvez também para sua expansão para o norte. Não há dúvidas de que essas ações foram acompanhadas por uma explosão de entusiasmo popular e o despertar de ambições nacionalistas, juntamente com esperanças de expansão e prosperidade.

Na realidade, no entanto, as coisas eram diferentes: o Egito fortaleceu sua presença na região, e a atividade de Josias dentro de seu reino e além de sua fronteira norte irritou a grande potência.

Os detalhes das ocorrências não podem ser precisamente reconstruídos, nem podemos afirmar por que Necao II decidiu se livrar de Josias quando este apareceu diante dele em Meguido. Em qualquer caso, a morte de Josias esfriou as esperanças recentemente despertadas, e a intervenção egípcia nos assuntos internos do reino de Judá se tornou um fato estabelecido.

Teria sido possível esperar grandes coisas de Josias, se ele não tivesse sido morto antes do tempo?

Não podemos reconstruir eventos históricos que não ocorreram de fato; qualquer discussão sobre o que poderia ter sido é necessariamente hipotética. Pode-se, no entanto, ver que as esperanças de grande expansão e glória não poderiam ter sido realizadas nas condições prevalecentes no final do século VII a.C.

Em poucos anos, a Babilônia tomaria o lugar da Assíria e do Egito como o poder governante na área, e as tentativas dos reis de Judá de implementar uma política independente levaram Judá diretamente à destruição e ao exílio.

Parece que muitos estudiosos foram enganados pela falsa semelhança entre o reinado de Josias e a descrição bíblica dos dias da monarquia unida [sob Davi e Salomão]. Ao enfatizar as esperanças e anseios baseados no suposto passado distante, eles conseguiram reconstruir uma realidade concreta na qual essas esperanças e anseios foram alcançados de fato.

É importante lembrar que o período em que Josias viveu e agiu foi diferente em todas as características daquele de seus antepassados, pois suas mãos estavam constantemente atadas e sua capacidade de realizar suas ambições era limitada. Consequentemente, não há base para comparar as realizações alcançadas em seus dias com a realidade anterior.

Minhas conclusões históricas estão de acordo com a falta de material descritivo sobre conquistas e expansões na Palestina sob Josias – uma falta que tem intrigado e deixado perplexos muitos estudiosos, e tem gerado muitas e variadas explicações.

Até mesmo o argumento em favor de uma “conspiração do silêncio”, supostamente formada sobre a morte de Josias, parece infundado para mim. Aqueles que leem a descrição entusiástica e pró-Josias no livro dos Reis ficarão naturalmente surpresos com o destino do rei justo; aqueles que apresentam um quadro histórico que enfatiza as grandes realizações de Josias em contraste com a fraqueza de seus sucessores não ficarão menos surpresos com a quase ausência de qualquer reflexão sobre sua morte nas palavras de escribas e profetas ativos na época.

De fato, o argumento da “conspiração do silêncio” acima mencionado é baseado principalmente na suposição de que a morte do rei foi um evento fatídico na história do reino de Judá, e que lançou o reino de imensas alturas para abissais profundezas.

A apresentação aqui de um quadro histórico diferente olha esse “silêncio” de seus contemporâneos sob uma luz diferente.

A tristeza pela morte repentina do rei foi certamente pesada, e o sentimento de crise imediata certamente não foi menos agudo. No entanto, é duvidoso que esse episódio tenha alterado drasticamente o curso dos eventos; e qualquer um que observasse o evento de uma perspectiva um pouco posterior pode nem mesmo tê-lo percebido como fatídico.

Parece que a impressão causada nos contemporâneos pelo assassinato de Josias foi menos profunda do que a assumida pelos estudiosos modernos e, por essa razão, foi tão esporadicamente mencionada em obras que apareceram depois da época de Josias.

O autor do livro dos Reis enfatizou o escopo das ações de Josias nos campos da religião e do culto, o que lhe rendeu uma avaliação favorável sem precedentes (provavelmente feita por um editor posterior):

‘Não houve antes dele rei algum que se tivesse voltado, como ele, para Iahweh, de todo o seu coração de toda a sua alma e com toda a sua força, em toda a fidelidade à Lei de Moisés; nem depois dele houve algum que se lhe pudesse comparar’ (2 Rs 23,25).

Estudando a história de Josias de uma perspectiva histórica geral, parece que essa avaliação é aceitável.

Embora suas modestas realizações políticas e territoriais tenham sido eliminadas por sua morte, suas ações nas áreas da religião e do culto permaneceram gravadas nos corações de seus apoiadores dentre os membros da escola deuteronomista por gerações, e exerceram considerável influência no desenvolvimento do judaísmo durante o exílio babilônico e o período pós-exílico.

Bons reis e maus reis: Judá no século sétimo

Publiquei no post anterior um capítulo de GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, 384 p. – ISBN 9780567082725.

Este livro é resultado do sétimo encontro do Seminário Europeu de Metodologia Histórica, ocorrido em 2002. Este encontro tratou do reino de Judá do século VII a.C., e, em especial, do reinado de Josias. Coloco aqui o sumário do volume e uma lista dos colaboradores.GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, 384 p.

Parte I: Introdução

Lester L. Grabbe – Introdução

 

Parte II: Artigos

Rainer Albertz – Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido

Ehud Ben Zvi – Josias e os livros proféticos: algumas observações

Philip R. Davies – Josias e o livro da lei

Lester L. Grabbe – O reino de Judá da invasão de Senaquerib à queda de Jerusalém: se nós tivéssemos apenas a Bíblia…

Christof Hardmeier – O rei Josias no clímax da história deuteronômica (2 Rs 22-23) e o documento pré-deuteronômico de uma reforma de culto no local de residência (23,4-15): crítica de fontes, reconstrução de pré-estágios literários e a teologia da história em 2 Reis 22-23

Ernst Axel Knauf – Os gloriosos dias de Manassés

Nadav Na’aman – Josias e o reino de Judá

Francesca Stavrakopoulou – Manassés na lista negra

Marvin A. Sweeney – O rei Manassés de Judá e o problema da teodiceia na História Deuteronomista

Christoph Uehlinger – Houve uma reforma do culto sob o rei Josias? O caso de um mínimo bem fundado

David A. Warburton – A importância da arqueologia do século sétimo

 

Part III: Conclusões

Lester L. Grabbe – Reflexões sobre a discussão

 

Onde estavam os colaboradores em 2005? Nos links há informações atualizadas sobre eles.

Rainer Albertz, Professor de Antigo Testamento na Westfilische Wilhelms-Universitat in Miinster, Alemanha.

Ehud Ben Zvi, Professor de História e Estudos Religiosos na Universidade de Alberta, Canadá.

Philip R. Davies, Professor de Estudos Bíblicos na Universidade de Sheffield, Reino Unido.

Lester L. Grabbe, Professor de Bíblia Hebraica e Judaísmo Primitivo na Universidade de Hull, Reino Unido.

Christof Hardmeier, Professor de Antigo Testamento na Universidade de Greifswald, Alemanha.

Ernst Axel Knauf, Professor de Bíblia Hebraica e Arqueologia Bíblica na Universidade de Berna, Suíça.

Nadav Na’aman, Professor de História Bíblica no Departamento de História Judaica na Universidade de Tel Aviv, Israel.

Francesca Stavrakopoulou, Bolsista de Teologia na Universidade de Oxford, Reino Unido.

Marvin A. Sweeney, Professor de Bíblia Hebraica na Escola Claremont de Teologia e Professor de Religião na Claremont Graduate University, Estados Unidos.

Christoph Uehlinger, Professor de História das Religiões na Universidade de Zurique, Suíça.

David A. Warburton, Pesquisador Bolsista na Universidade de Aarhus, Dinamarca.

Reforma atribuída a Josias teria sido proposta só no pós-exílio

A verdadeira reforma, de fato, ocorreu quase dois séculos depois de Josias. Mas, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária. O século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. 

Esta é a proposta de Philip R. Davies, da Universidade de Sheffield, Reino Unido, no texto “Josias e o Livro da Lei” que pode ser lido a seguir.

O texto é: DAVIES, P. R. Josiah and the Law Book. In: GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005, p. 65-77. Este livro é resultado do sétimo encontro, ocorrido em 2002, do Seminário Europeu de Metodologia Histórica.

Observo que neste mesmo volume, nas páginas 27-46, Rainer Albertz, da Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, Alemanha, se contrapõe a Philip R. Davies com o texto “Why a Reform Like Josiah’s Must Have Happened” [Por que uma reforma como a de Josias deve ter acontecido].

Ele diz, no final de seu texto: “Philip Davies deve ser elogiado por não apenas negar a reforma josiânica e deslocar o livro de Deuteronômio para um período posterior, mas também por tentar dar razões para uma datação no século V a.C. Mas, na minha opinião, a evidência dada por ele é bem menos convincente do que a da hipótese tradicional” [da existência de uma reforma de Josias no século VII a.C.].

As ambições de Josias

As várias questões históricas em torno de Josias foram muito bem abordadas em outras partes deste volume, e minha própria contribuição é concebida amplamente como metodológica, na qual me envolverei com dois dos meus colegas no Seminário [Nadav Na’aman e Rainer Albertz].

Meu ponto de partida é o estudo de Nadav Na’aman sobre a política do reino de Judá sob Josias (Na’aman 1992), que oferece uma crítica muito boa da pesquisa sobre o reinado de Josias, resumida como segue.Philip R. Davies (1945-2018)

A primeira parte do estudo de Na’aman argumenta que as listas de cidades de Judá e Benjamim em Josué 15 e 18 refletem, apesar de algum aprimoramento editorial, a situação em Judá no século VII a.C.

A segunda parte lida com a cronologia do declínio do poder assírio, muitas vezes pensado como tendo ocorrido repentinamente na parte inicial do reinado de Josias, levando a uma política de expansão judaica sobre o território adjacente. Na’aman mostra que esse cenário proposto é improvável. Pelo contrário, os assírios parecem ter cedido o controle sobre a Palestina de uma forma mais ou menos ordenada ao Egito, de modo que o rei judaíta teve pouca ou nenhuma oportunidade para o exercício da independência política. Em suma, não havia vácuo de poder.

Em conexão com a morte de Josias, Na’aman argumenta que Necao II marchou pela Palestina (em vez de levar seu exército para um porto fenício, o procedimento mais usual) não para lutar contra a Babilônia, mas para receber o juramento de lealdade dos reis locais que precisava ser renovado na ascensão de um novo faraó soberano. Observando que nada é dito em 2 Reis sobre uma batalha do faraó contra Josias, Na’aman deduz que Josias não morreu em batalha, mas por assassinato ou execução por algum motivo, possivelmente uma suspeita de deslealdade por parte de Necao II. Assim, a visita de Josias a Meguido pode ter sido em resposta a uma convocação para jurar lealdade pessoalmente diante do novo faraó.

O que pode ter provocado a execução de Josias? Embora Na’aman admita que o controle efetivo da Palestina passou para o Egito à medida que o poder assírio declinava, Josias pode, no entanto, ter desfrutado (ou sentido que tinha) alguma liberdade para unificar e cristalizar (1992: 41) seu reino, enquanto os esforços dos egípcios estavam, como de costume, concentrados nos distritos costeiros e nos vales. Apenas uma expansão limitada de fronteiras, no entanto, poderia ter sido sequer contemplada, muito menos alcançada; nenhum grande projeto para ganhos territoriais extensos.

Esta reconstrução dá sentido a uma morte que, de outra forma, como Miller e Hayes (1986: 402) observam, permanece um mistério. Enquanto 2 Reis 23,29 possivelmente sugere confronto militar, o confronto militar não é explicitamente mencionado. O relato da morte de Josias é vago, até mesmo misterioso e talvez isto seja deliberado. De qualquer forma, a sugestão de uma derrota militar permite que 2 Crônicas 35,20-24 mostre o rei piedoso morrendo de ferimentos de batalha em Jerusalém, por sua vez encorajando a maioria dos estudiosos modernos a concluir que Josias foi para a batalha, embora os deixe confusos sobre os motivos de tal empreendimento suicida.

Mesmo que Na’aman não esteja correto sobre a maneira como Josias morreu, sua análise da situação política é bem fundamentada nas evidências. A expansão frequentemente afirmada de Judá sob Josias não ocorreu, e não poderia ocorrer. Declarações tais como “Ele [Josias] tentou restaurar o reino ou império de Davi em todos os detalhes” (Cross 1973: 283 ) Na’aman descarta como construídas sobre falsos fundamentos: não há, ele diz (1992: 44), fundamentos para a suposição de que Josias tentou conquistar todo o norte e impor suas reformas em todo o território da Palestina, uma conclusão já antecipada por alguns historiadores anteriores.

Permanece, no entanto, alguma evidência epigráfica aparente em contrário nas cartas de Arad e Mesad Hashavyahu. Os óstraca de Arad 1-18, datados do reinado de Josias ou seu sucessor, pertencem a uma coleção enviada a Eliashib, um comandante militar, e a maioria dá instruções para o fornecimento de tropas. No entanto, essas instruções não são necessariamente evidências do ressurgimento militar judaíta ou da refortificação judaíta de Arad. Sob a jurisdição egípcia, Josias teria tido permissão, ou foi obrigado, a assumir a responsabilidade de fornecer guarnições e trabalhadores agrícolas em áreas adjacentes, seguindo a prática refletida muito antes na correspondência de Tel el-Amarna. A evidência desses óstraca é inteiramente consistente com a prática egípcia conhecida durante seus períodos de governo sobre a Palestina e não contradiz a reconstrução de Na’aman.

A conclusão dos argumentos de Na’aman é que “a imagem do reinado de Josias, como refletida nesta discussão, está muito distante da descrição daqueles anos como refletida no livro dos Reis, e não menos distante do esboço de seu período apresentado na historiografia moderna”( Na’aman 1992: 55 ).

Isso aponta para um estado de coisas não desconhecido. Um retrato bíblico enganoso ainda mais distorcido pelas especulações da pesquisa bíblica, neste caso, a tese de um período áureo de reconstrução josiânica. Esse retrato tem que ser redesenhado — mas não apenas em relação à ambição ou realização territorial, mas também para outros aspectos de seu reinado. A apresentação de Josias em 2 Reis é, então, enganosa, e estudiosos modernos frequentemente têm ampliado a distorção (…)

A reforma de Josias

Agora, desejo pegar o bastão de Na’aman e correr um pouco mais com ele. O relato da reforma de Josias também pertence à idealização evidente em relação à sua ambição territorial? Na pesquisa moderna, a política assumida por Josias de expandir um Judá recém independente para um território anteriormente do reino de Israel é fundada, afinal, no relato de sua reforma religiosa. Ou, ao contrário, a reforma é comumente explicada como parte de suas medidas para sinalizar ou consolidar sua independência política.

Mas se essa independência nunca poderia ter sido alcançada, admitindo apenas, na melhor das hipóteses, uma modesta aquisição de território além da fronteira judaíta, então a explicação moderna dada para a reforma de Josias não se sustenta. De fato, ficamos confusos quanto ao que se pretendia alcançar. Reformas religiosas no início do reinado de um rei não são incomuns: elas servem para recomendar o novo monarca a seus súditos e à divindade. Mas essa reforma só foi empreendida quando seu reinado já estava bem adiantado.

O relato em 2 Reis não retrata de fato Josias como expandindo seu território. O relato toma o controle sobre o antigo reino de Israel como garantido, convenientemente apagando (do tempo de Ezequias em diante) qualquer indício de dominação assíria.

Na’aman sugeriu que Josias não poderia ter sido retratado como subserviente à Assíria porque ele era um rei justo, como Ezequias antes dele. Isso é plausível, e tanto Ezequias (2 Reis 18) quanto Josias são creditados com uma reforma religiosa. Mas, de acordo com o esquema de 2 Reis, qualquer bom rei seguindo um rei mau teria que empreender uma reforma religiosa e a liberdade da influência assíria é necessária para tornar isso plausível. Dada essa premissa teológica, não é realmente fácil de afirmar que algum rei realmente tenha cumprido o requisito deuteronomista.

A realidade histórica da resistência de Ezequias, como debatido em um seminário anterior (Grabbe [ed.] 2003), é que ele perdeu a maior parte de seu território e pagou Senaquerib com uma grande fortuna. O simples fato de Jerusalém não ter sido tomada e de o rei assírio ter partido permitiu que Ezequias recebesse o posto de rei justo.

O caso de Josias é mais interessante. O que o qualificou para o mesmo status? Foi sua morte heroica? Ou foi, de fato, algum ato aparentemente piedoso? Josias foi creditado com uma reforma porque seu status a exigia, ou seu status foi motivado por algum ato deuteronomisticamente aprovado que ele realizou? Tentarei chegar a uma resposta, mesmo que provisória.

A história da reforma se divide em três episódios: a descoberta e verificação do livro da lei, seguida pela aliança (2 Rs 22,3-23,3); a destruição de objetos e lugares de culto (2 Rs 23,4-20); e um terceiro episódio (2 Rs 23,21-24), compreendendo a celebração da Páscoa e a remoção de certas práticas religiosas, com referência, mais uma vez, ao livro da lei.

Não está claro se o segundo episódio está intrinsecamente conectado ao primeiro. A estrutura literária de 2 Reis 22-23 permanece em disputa e há uma possibilidade de que o tema do livro da lei tenha sido inserido em uma narrativa de reforma ou uma narrativa de reforma tenha sido desenvolvida após uma história da descoberta de um livro da lei (ver Lohfink 1985).

Também deve ser notado que as atividades de reforma de Josias são confinadas a Judá e seus arredores, especialmente Betel, com exceção de um único breve aviso sobre o território de Samaria (2 Reis 23,19).

Que outras evidências temos para ambos? Deveríamos começar (como muitos estudiosos anteriores) buscando alusões a uma reforma ou ecos dela (ou ausência de ambos), em outros textos bíblicos. Portanto, a natureza do próprio livro de leis requer análise.

O impacto da reforma de Josias

Parece haver pouca ou nenhuma sugestão de qualquer reforma em outra literatura bíblica que possa ser atribuída ao período, por exemplo, os livros de Jeremias ou Sofonias. Albertz (1994: 200) aponta para Jr 8,7-8, sugerindo uma lei escrita nas mãos dos sacerdotes. Mas este texto não menciona nenhuma reforma. Ele também menciona Jr 22,15; 31,2-6 e 44,18 como oferecendo algum suporte para a ideia de um clima de reforma. Mas não há nenhuma indicação clara ou direta no livro do profeta Jeremias, que estava em Jerusalém naquela época, de que uma grande reforma religiosa tenha ocorrido.

Sweeney (2001: 129-313) analisou mais recentemente uma gama mais ampla de textos proféticos (Sofonias, Naum, Jeremias, Isaías, Oseias, Amós, Miqueias e Habacuque), concluindo que os profetas que eram contemporâneos de Josias abordaram ativamente aspectos de seu programa de reforma e frequentemente apontam para aspectos que não são evidentes no relato deuteronomista de seu reinado (p. 310).

O espaço não permite, infelizmente, uma avaliação detalhada da longa discussão de Sweeney. Mas aqueles textos que ele cita em apoio à centralidade de Jerusalém dificilmente indicam inequivocamente o tempo de Josias em vez de um período posterior. Vários textos parecem se referir a aspectos da reforma não mencionados em 2 Reis, enquanto outros textos parecem fornecer legitimação para a reforma, incluindo a reunificação dos reinos divididos, mas não necessariamente pressupõem isso.

Tendo avaliado as evidências e argumentos de Sweeney, não encontrei nenhuma referência convincente a uma reforma como descrita em 2 Reis 22-23, e muito pouco que sugira qualquer reforma religiosa neste momento, com uma exceção importante, à qual retornarei em breve e que não envolve um livro de leis.

Eu sustento, então, que não temos nenhum texto que, na ausência de 2 Reis 22-23, nos levaria a sugerir uma reforma religiosa. Isso deve ser exigido de qualquer corroboração independente. Alguns textos poderiam se referir a tal coisa, se tivesse acontecido, mas não implicam que tenha acontecido. Em suma, os argumentos de Sweeney dependem da suposição de que houve uma reforma, e não fornecem evidências adequadas de que houve uma. Tal ausência é significativa, se não conclusiva.

Esta conclusão nos leva, então, à questão do livro da lei. Como é bem sabido, De Wette pode ser creditado por ter nos legado a percepção de que o livro da lei de Josias era o livro do Deuteronômio, ou alguma forma dele. Esta identificação, feita em 1805, forneceu a ele uma chave importante para separar a lei das origens mosaicas do judaísmo e, assim, desenvolver uma reconstrução crítica da história da religião de Israel e Judá. Vale, no entanto, lembrar que De Wette considerava D como a última das fontes do Pentateuco, e que sua identificação do livro da lei com o Deuteronômio não foi universalmente aceita até hoje.

No entanto, não é preciso ser um gênio para ver que a identificação do Deuteronômio com o livro da lei josiânica é precisamente o que o autor de 2 Reis 22 pretende. A linguagem e a ideologia de 2 Reis são deuteronomistas, e mesmo antes da teoria de Martin Noth sobre a História Deuteronomista, em 1943, poder-se-ia perceber que qualquer relato deuteronomista da descoberta de um livro de leis apresentaria esse livro de leis como o Deuteronômio, em vez de, digamos, o Levítico ou o Código da Aliança do Êxodo.

O escritor da história do livro de leis deseja deixar claro que nos dias dos reis de Judá, o rolo do Deuteronômio, que havia sido perdido temporariamente, foi recuperado e usado como base para uma reforma religiosa, e com a autoridade total de um rei davídico, nada menos.

O comentário de Albertz de que só foi possível avaliar a reforma cultual de Josias com mais precisão quando a identidade do livro de leis que forneceu sua base foi estabelecida (1994: 198-99) erra o ponto. Sabemos qual era o livro de leis da história: mas não sabemos se a história de sua descoberta (ou alguma racionalização moderna, como uma apresentação deliberada do manuscrito logo após a composição) é verdadeira.

Nossa pergunta agora é: É provável uma origem do século VII a.C., ou talvez anterior, para Deuteronômio? É plausível um livro de leis da época josiânica?

Datando o livro da lei

O método de datação do Deuteronômio tem que prosseguir inteiramente com base em evidências internas, interpretadas à luz do pouco que sabemos da história de Judá, sua sociedade e sua religião, durante todo o período em que o Deuteronômio pode ter sido escrito, o que inclui o período monárquico, o período exílico e o período pós-exílico. Ao perguntar sobre a data do Deuteronômio, não estou tentando reabrir um debate: esse debate nunca parou. Obviamente, um breve artigo de discussão não pode cobrir a gama de temas e tópicos do Deuteronômio que precisariam ser abordados para chegar a uma teoria sólida. O seguinte representa uma pequena seleção dos tópicos mais significativos.

Antes de começar, é importante aceitar que muitas partes do livro podem ter se originado em um momento diferente da coleção de leis em si. A primeira introdução (1,1- 4,40 ) e os capítulos finais (27-34) são geralmente vistos como decorrentes de um processo de edição subsequente. Portanto, não devemos procurar datar o presumido livro de leis com base em qualquer material nesses capítulos. Também excluirei a segunda introdução em 4,44-11,32 e me concentrarei apenas no material legal, Dt 12-26.

Neste material jurídico essencial (por conveniência, o tratarei como um documento), encontramos um esboço de uma sociedade que reflete algumas circunstâncias históricas, mas que é essencialmente utópica e, em algumas partes, impraticável. Seu caráter utópico é expresso por meio de um cenário fictício do passado, no qual a utopia continua sendo uma possibilidade futura: quando Israel entrar na terra que Iahweh, seu Deus, está lhe dando como posse (Dt 12,1.9.10.20.29;13,13 etc.) .

A questão-chave para sua datação é: Qual é o propósito desse documento e em que tipo de contexto histórico e social sua definição de Israel teria algum significado ou impacto? Essas questões serão consideradas (muito brevemente) com relação à definição de Israel, as nações, a aliança, o papel e a função do rei e a centralização do culto.

A definição de “Israel”

No núcleo legal do Deuteronômio, Israel designa uma sociedade, e seus membros são chamados de “filhos de Israel” (benē yisrā’ēl). Em que consiste esse Israel não é especificado em muitos detalhes. A dupla menção da tribo de Levi pode indicar uma estrutura tribal para o todo, mas nenhuma outra tribo, ou conjunto de tribos, é mencionada, nem uma estrutura tribal tem qualquer papel organizacional. A menção repetida da terra implica uma dimensão territorial para Israel, e a aquisição desta terra é por conquista militar (Dt 19,1; 20,16). As leis relativas ao rei (Dt 17) também implicam um estado territorial. No entanto, o papel do monarca é de fato virtualmente cerimonial.

O Israel do Deuteronômio dificilmente é histórico. No período monárquico, existiam dois reinos, um chamado Judá e o outro às vezes conhecido como Israel. Os resultados da arqueologia recente da Idade do Ferro na Palestina central sugerem fortemente que as áreas mais tarde representadas pelos dois reinos passaram por assentamentos separados. A alegação bíblica de que eles foram unidos sob Davi e Salomão (e alguns anos sob Roboão) é igualmente sem qualquer suporte arqueológico e, de fato, há fortes indicações do contrário (veja Finkelstein e Silberman 2001 para uma visão geral e reconstrução arqueológica).

A noção de que Israel adquiriu a terra por meio da conquista e aniquilação dos ocupantes anteriores também é utópica. De fato, a apresentação de Israel como vindo de fora da terra contradiz as evidências arqueológicas, que não podem revelar nenhum elemento populacional não indígena na Palestina central nos séculos anteriores ao estabelecimento dos dois reinos (os filisteus não se estabeleceram nas terras altas).

Mas as utopias têm uma função. Não adianta descartá-las como ficção, como se isso resolvesse a questão mais importante. Em que contexto histórico um Israel tão utópico (algo maior que Judá) tem um papel? A noção de que Josias desejava reunir Judá e o antigo reino de Israel já foi discutida. É altamente improvável, mas um Israel previamente unido também é improvável. No próprio reino de Israel, antes de 722 a.C., tal ambição poderia ser alimentada e, de fato, muitos estudiosos consideraram o Deuteronômio um documento originalmente israelita, talvez trazido para o sul após a destruição de Samaria. Mas, além de outras considerações que excluem isso, tal teoria não explica a descoberta e adoção deste documento em Judá no final do século VII a.C. Como e com que efeito o Judá de Josias poderia ser representado neste Israel? De fato, mesmo que a origem do Deuteronômio estivesse no reino de Israel, com base em que Judá se chamaria a si mesmo com este nome?

As “nações”

A seção legal do Deuteronômio se refere aos cananeus uma vez, em Dt 20, 17 (Canaã ocorre apenas uma vez em todo o livro, em Dt 32,49). Mas há muitas referências às “nações”, que se enquadram em duas categorias. Em Dt 14,2;15,6;17,4;18,9.14;26,19 a frase se refere a todas as outras nações, indiferenciadas. Israel deve ser bem distinto destas, criando a dicotomia Israel/nações que ainda persiste em nosso uso moderno do termo gentios. A segunda categoria são “as nações que você expulsará”: estas são caracterizadas como (a) ocupando a terra que foi prometida a Israel e da qual ele tomará posse, e (b) praticando costumes religiosos que são abomináveis a Iahweh e que Israel não deve imitar.

Vamos nos concentrar nas nações despossuídas. Elas são especificadas como sete em Dt 7,1 e 20,17 (gergeseus está faltando, talvez acidentalmente, em 20,17) e devem ser destruídas, junto com sua cultura. Que tipo de contexto social e político dá origem a essa noção de duas nações de culturas completamente diferentes no mesmo espaço, uma indígena, a outra imigrante? Essa é uma realidade histórica ou, novamente, utópica?

Que nação e cultura são sinônimos é um princípio importante em Deuteronômio, pois o próprio Israel é definido por sua cultura, especificamente sua religião determinada pela aliança. Cananeu é cananeu, poderíamos dizer. E o mesmo podemos dizer de Israel.

Embora se possa argumentar que existia alguma diferença cultural entre elementos populacionais na Palestina da Idade do Ferro — por exemplo, entre fazendeiros das terras altas e aqueles que viviam sob um regime de cidade-estado — a animosidade gritante em relação às nações cananeias que o Deuteronômio revela provavelmente não pertence à história da Idade do Ferro, porque o reino de Israel (se não Judá) era evidentemente composto de vários elementos populacionais, entre os quais havia um conjunto amplamente compartilhado de práticas religiosas.

A perseguição religiosa, e mais ainda o genocídio, conforme ordenado por Deuteronômio, se traduz em guerra civil, que os monarcas e as elites governantes em geral não buscam provocar. Certamente, a religião pode ser usada para promover sentimentos e práticas chauvinistas, que podem ajudar um monarca, mas o remédio do Deuteronômio seria desastroso para um estado monárquico. Mesmo se traduzirmos as nações de Canaã em inimigas do culto real, a ideologia do Deuteronômio parece excessivamente entusiasmada. O que, precisamente, um chamado para declarar guerra aos cananeus alcançaria, mesmo supondo que alguém pudesse identificar de maneira inequívoca um cananeu?

A guerra do Deuteronômio não é, está claro, física ou mesmo militar, mas ideológica: os autores do documento não pretendem que os cananeus sejam exterminados. Mas a questão pode muito bem ser a propriedade legítima da terra, a filiação a Israel, a adoração adequada da divindade. E pode envolver conflito entre populações indígenas e imigrantes. Tal contexto pode ser postulado na história de Judá. Mas não para o século VII a.C.

A “aliança”

Garbini (2003: 65) afirma que a noção de uma aliança entre a divindade e o povo é bastante surpreendente. Ele afirma que: “Para todos os povos do Oriente Próximo, uma aliança entre um deus e seu povo simplesmente não fazia sentido: a aliança dizia respeito apenas ao rei e seu deus dinástico e o rei era legítimo apenas por causa desse relacionamento direto com o deus. Era por meio dela que o rei podia garantir a prosperidade de seu povo e legitimar sua própria função. Isso fica claro até mesmo no texto bíblico, onde está escrito, exatamente sobre Josias: E o rei ficou em pé junto a uma coluna e fez uma aliança (wayyikrot ‘et ha-b‘rit) diante de Iahweh (2 Rs 23,3). A questão nunca foi colocada, por que este livro, que supostamente guiou os passos do piedoso Josias, não contém nenhuma menção a ritos de aliança ou pilares desse tipo. Diz-se, além disso, que a mesma cerimônia foi celebrada na época de Salomão, como fica claro na narrativa de 1 Reis 8, apesar de todas as ampliações deuteronomistas. Ao consagrar o templo, Salomão fez uma aliança (8,23) com Iahweh, deus da dinastia (8,25), invocando sua proteção sobre o povo, especialmente nos momentos difíceis da guerra e da fome”.

Este ponto pode, no entanto, ser colocado de forma mais positiva, como foi feito por Geller em um ensaio sobre o papel do Deuteronômio na história do monoteísmo (Geller 2000: 300). Ele descreve o Deuteronômio como “um tipo radicalmente novo de associação de indivíduos … Israel é, na formulação deuteronômica da aliança, em última análise, cada israelita”. (Este fenômeno, do vínculo direto entre o deus e cada indivíduo, é, naturalmente, fortalecido retoricamente pelo uso do singular “tu” em grandes seções do livro). Geller observa ainda a negação da responsabilidade coletiva pelos pecados em Deuteronômio 34. Deuteronômio marca o início de uma definição pessoal da religião israelita — pode-se até dizer a fonte do judaísmo. Em suma, temos aqui, como Geller sugere, um estágio no desenvolvimento da Torá em um órgão de religiosidade pessoal e não um corpo de ensinamentos sociais sustentado por uma instituição estatal (seja a monarquia ou o sacerdócio).

Como tal noção surgiu aqui pela primeira vez é uma questão intrigante. Que tipo de condições levaram ao surgimento de uma religião que era tanto social quanto individual? Mas, novamente, a questão-chave é: Como esse caráter pessoal da aliança do Deuteronômio faz sentido em um pequeno estado monárquico? Qual é o objetivo e o efeito de tal redefinição da religião? E, novamente, digo que não é suficiente simplesmente responder que Deuteronômio é utópico. É necessário sugerir um contexto no qual essa visão faça sentido, em uma comunidade que se formou, ou desejou, uma comunidade na qual a filiação implicava responsabilidades individuais, especialmente religiosas.

Weinfeld (1972: 59-157), entre outros, argumentou, em defesa de uma data josiânica para o Deuteronômio, que a forma de tratado de vassalagem assírio (exemplificada por aqueles de Esarhaddon) fornece um modelo para o Deuteronômio. Mas para ser válido, esse argumento tem que mostrar que o conhecimento de tais formas literárias desapareceu em determinado momento. Entretanto, a influência da Assíria na retórica diplomática e na literatura (assim como na imaginação) do Antigo Oriente Médio persistiu por vários séculos. Um terminus a quo no século VII a.C. para Deuteronômio não é particularmente conclusivo.

Mais pertinente, novamente, é a questão: sob quais circunstâncias um tratado de suserania inspiraria uma nova teoria da religião como um pacto entre uma divindade e uma nação, concebida tanto corporativa quanto individualmente? E sob quais circunstâncias tal conceito adquiriria valor?

O papel e a função do rei

O rei de Israel aparece em apenas dois textos no material legal do Deuteronômio. O primeiro está em Dt 17,14-20. É improvável que a ameaça de um rei estrangeiro, como alerta o texto, fosse substancial no período monárquico (os textos canonizados não relatam que isso tenha acontecido ou mesmo sido ameaçado). Mesmo sob os assírios e babilônios, havia um rei nativo no trono, mas esta é uma questão trivial.

GRABBE, L. L. (ed.) Good Kings and Bad Kings: The Kingdom of Judah in the Seventh Century BCE. London: T&T Clark, 2005A questão principal é esta: duas das principais funções de um rei (de acordo com a sociologia moderna e também com os próprios monarcas antigos) são segurança e justiça. A primeira protege o povo de ameaças externas e a última da exploração interna. Ambas contribuem para a ordem social. Sem essas funções, o papel de um rei é redundante.

A passagem citada propõe limitar seu direito de ser a fonte da justiça e de ter uma força significativa de cavalaria. Em outro lugar, o Deuteronômio prescreve as regras para a guerra (Dt 20) das quais o rei está totalmente ausente. Lá, como aqui, a autoridade é conferida exclusivamente aos sacerdotes. O rei está sujeito à lei que eles mantêm e eles, não ele, ditam seu conteúdo. O rei se torna um monarca constitucional.

A mesma questão retorna, mas com mais força: em que ponto da história de Judá tal revolução política faz sentido, mesmo como um ideal utópico? Quando o governo de um monarca judaíta pode ser substituído por um livro de leis? Não há paralelo algum no período monárquico para qualquer noção desse tipo, e de fato é uma ideia absurda para aquela época. Os antigos códigos de leis da Mesopotâmia, como o tratado de suserania assírio, sem dúvida serviram como um modelo para o livro do Deuteronômio, mas em uma reversão completa da antiga tradição pela qual o rei emite seu código de leis, como representante do deus.

Não há explicações plausíveis para que um rei aceite uma reforma que o priva dos poderes essenciais da monarquia, justiça e guerra. Sugerir que Josias era muito jovem na época e que o documento é uma tentativa dos sacerdotes de controlar o poder real é ingênuo. Os sacerdotes teriam o poder de fazer isso, contra a oposição de todos aqueles seguidores cujo privilégio dependia precisamente da preservação do poder da monarquia? A noção de que tal reforma foi instigada pelo ‘am ha-’aretz, como Albertz também sugere (Albertz 1994: 201), é contrariada pelo fato de que essas pessoas dificilmente teriam transferido autoridade sobre a guerra ou a justiça para o sacerdócio.

Em suma, a crença da maioria dos estudiosos bíblicos de que um manuscrito que priva o monarca de todos os poderes reais (e, na verdade, inviabiliza a instituição da monarquia) é um produto plausível do Judá do século VII a.C. é surpreendente e só pode ser explicada assumindo que tal estudo está tomando o fato como certo e, portanto, ignorando o absurdo ou fabricando uma racionalização implausível para ele.

Centralização do culto

Albertz corretamente descarta a ideia de Wiirthwein (1976) de que a centralização do culto em Deuteronômio indica o período exílico, afirmando que “não havia mais nenhum conflito sobre a centralização do culto no início do período pós-exílico” (1994: 199-200), com base no fato de que isto é pressuposto pelo Dêutero-Isaías e por Ezequiel. Mas ele pode não ter pensado nas situações da vida em Judá durante o período neobabilônico, quando a capital estava em Mispá. Não sabemos se Jerusalém tinha algum tipo de santuário nessa época, mas as evidências sugerem que vários santuários nas proximidades de Mispá funcionavam: Gibeon, a própria Mispá e especialmente Betel. Como e quando Jerusalém foi restabelecida como capital não está claro. O processo de construção do templo do período persa é em si obscuro, e é impensável que a mudança de capital de Mispá para Jerusalém tenha sido alcançada sem algum ressentimento, podendo se dizer o mesmo da reintegração de Jerusalém como o santuário central. De fato, a substituição de Betel por Jerusalém como o principal santuário de Judá em meados do século V a.C. explica muito sobre a tradição de Josias, como agora sugerirei.

O que Josias fez?

Quando o relato de 2 Reis sobre uma reforma josiânica é questionado em vez de assumido, parece não haver razões convincentes para pensar que um texto como o Deuteronômio (especificamente o material legal) vem dessa época. Pelo contrário, para cada tópico discutido há contextos mais plausíveis.

Não me propus aqui argumentar em detalhes para uma data do século V a.C., mas notei que todas as características discutidas se encaixam bem com tal período. O  Deuteronômio se enquadra no contexto de uma população imigrante, baseada em torno de um templo, em conflito com parte da população indígena, bem como com Samaria, e encorajada a viver e exercer seu controle por meio de uma lei escrita, interpretada pelos sacerdotes.

Mas se tal data fornece um contexto melhor para o cerne do Deuteronômio, ainda precisamos explicar a história da reforma de Josias como uma lenda posterior. Mas isso não é difícil. Aqueles elementos populacionais que alegam ser o verdadeiro Israel (contra as nações indígenas desalojadas) exigiriam necessariamente que o documento do qual sua posição dependia replicasse a situação atual: “Israel” se vendo ameaçado pelos “povos que ocupavam a terra”. Mas o documento requer uma autenticação adicional: ele precisaria ser antigo e ter sido autorizado, como fonte escrita, por um rei judaíta legítimo.

Por que Josias? Isso nos traz de volta a outra questão já levantada: Josias foi enaltecido por ter feito algo para ganhar reputação?

O elemento central da história da reforma de Josias (2 Rs 23) diz respeito à sua destruição de Betel, e este ato é ecoado em 1 Rs 12,25-13,34 (cf. 2 Rs 10,29), bem como em Êxodo 32 (ver Blenkinsopp 1998, 2003). Se Josias tivesse sido executado por alguma ofensa contra o faraó, a destruição de Betel, sinalizando o controle judaíta sobre uma área adjacente à própria Jerusalém, poderia ter constituído tal ato. Mais de um século depois, quando Jerusalém estava sendo restabelecida como o principal santuário da província persa de Judá, talvez às custas de Betel (ver Blenkinsopp 2003), tal ato facilmente teria identificado Josias como uma figura justa e fornecido o contexto para a introdução retrospectiva do Deuteronômio na história anterior de Judá.

De fato, a reforma deuteronômica de 2 Reis 22-23 deveria então ser vista, não como um evento histórico, mas como um disfarce para uma nova comunidade centrada em Jerusalém tentando impor sua definição de Israel, seu deus e sua religião, e especificamente sua lei escrita, em meio a uma população indígena idólatra.

Em suma, o século V a.C. fornece um contexto plausível tanto para a “descoberta” do livro do Deuteronômio quanto para a história da reforma de Josias. Esse caso, é claro, terá que ser discutido em mais detalhes, mas sugiro que mesmo no breve esboço dado aqui, ele oferece um relato melhor das coisas do que a ideia de uma reforma deuteronômica sob Josias.

O ataque do rei a Betel lhe rendeu uma reputação como um campeão deuteronômico, mas a verdadeira reforma ocorreu quase dois séculos depois e, como frequentemente acontece, a história foi reescrita para dar a essa reforma a autenticação necessária.

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Wiirthwein, E. 1976 ‘Die Josianische Reform und das Deuteronomium’, Z7TK 73: 365-423.

As reformas de Ezequias e Josias podem não ter acontecido

Na semana passada li um texto de Juha Pakkala, biblista finlandês, professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Helsinque, sobre a possibilidade das reformas de Ezequias e de Josias, reis de Judá em 716/15-699/8 e 640-609 a.C., respectivamente, não terem acontecido. Segundo o autor, é mais provável que os textos de 2 Reis 18 e 22-23 sejam invenções literárias e projeções de ideais pós-exílicos no período monárquico.KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010

O texto pode ser acessado em Academia.edu: Why the Cult Reforms In Judah Probably Did Not Happen. Pode ser acessado, gratuitamente, também aqui.

Foi publicado em KRATZ, R. G.; SPIECKERMANN, H. (eds.) One God, One Cult, One Nation: Archaeological and Biblical Perspectives. Berlin: De Gruyter, 2010, p. 201-235.

Apresento aqui apenas a introdução e recomendo a leitura do texto completo. Especialmente para quem estuda História de Israel e Literatura Deuteronomista.

Os autores citados nas notas podem ser conferidos na bibliografia no final do texto.

As reformas de Ezequias (2 Reis 18,4) e Josias (2 Reis 22–23) tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos. Especialmente a reforma de Josias foi amplamente entendida como um momento crucial e um ponto de virada no desenvolvimento da religião[1] de Israel[2]. Consequentemente, os relatos bíblicos foram assumidos como preservando informações históricas importantes da época de Ezequias e Josias.

Por exemplo, no século passado, Hölscher argumentou que 2 Reis 22–23 é um excelente exemplo de escrita histórica autêntica[3]. Noth assumiu que 2 Reis 23,4–20 foi retirado dos anais reais[4]. Embora a maioria dos estudiosos hoje em dia reconheça que os relatos bíblicos não são fontes históricas imparciais, geralmente se presume que os reis tomaram pelo menos algumas medidas para renovar o culto[5]. Alguns estudiosos presumem que eles purificaram o culto de elementos estrangeiros, enquanto outros argumentam que apenas a localização do culto estava em questão[6]. Há também algumas vozes críticas que questionaram totalmente a historicidade das reformas, mas elas ainda representam a minoria[7]. No entanto, é evidente que o ceticismo sobre a historicidade das reformas cresceu nas últimas décadas[8]. Deve-se acrescentar também que a historicidade da reforma de Ezequias foi desafiada com mais frequência do que a de Josias[9].

Os relatos da reforma tiveram impacto considerável nos estudos bíblicos e no estudo do antigo Israel, sua história e religião. Muitas histórias de Israel e introduções à Bíblia hebraica se referem às reformas como eventos importantes que ocorreram no final do século VIII e no final do século VII a.C.[10]. Muitos conceitos centrais ou mesmo definidores do judaísmo posterior, como centralização do culto, adoração exclusiva a Iahweh, crítica de ídolos e religião baseada na Lei, teriam sido introduzidos por um dos reis reformadores. As reformas também tiveram impacto considerável no estudo dos livros bíblicos. Por exemplo, devido às semelhanças evidentes entre o Deuteronômio e 2 Reis 22–23, a datação do Deuteronômio é frequentemente conectada com a reforma de Josias[11]. Alguns estudiosos que questionaram a historicidade da maioria dos eventos em 2 Reis 22–23 ainda conectaram o Deuteronômio com o rei Josias ou com o final do século VII a.C.[12]. O Deuteronômio seria então uma testemunha das mudanças religiosas que ocorreram durante esse período.

As reformas também influenciaram a datação da Obra Histórica Deuteronomista. Muitos estudiosos, especialmente no mundo anglo-saxônico, vincularam o desenvolvimento editorial de sua composição com as reformas. De acordo com o ‘Modelo de Dupla Redação’, uma das principais fases editoriais da composição foi escrita durante o tempo de Josias[13]. Também se tentou correlacionar dados arqueológicos com as reformas do culto. Especialmente em pesquisas anteriores, a destruição dos locais de culto em Arad Tel Berseba foi vista como um resultado ou prova das reformas do culto bíblico[14]. Também foi discutido se as estatuetas [de divindades] da Idade do Ferro de Judá mostram quaisquer sinais de destruição intencional, o que poderia então ser usado como evidência para a reforma de Josias[15]. Em discussões acadêmicas mais recentes, a diminuição dos motivos iconográficos do século VIII a.C. em diante tem sido conectada com as reformas[16].

A confiança nos textos bíblicos em questão como fontes históricas confiáveis é problemática, porque é evidente que 2 Reis 18 e 2 Reis 22–23 foram extensivamente editados. 2 Reis 23, onde toda a discussão sobre as reformas culmina, pode ser o capítulo mais editado de 1–2 Reis, se não de toda a Bíblia Hebraica, e sua complicada história editorial também é geralmente reconhecida. Um indicativo dos problemas é o fato de que as visões acadêmicas sobre seu desenvolvimento diferem em grande medida, com muito pouco consenso à vista[17]. Quase todas e quaisquer partes do capítulo foram atribuídas de forma variável ao texto básico e a vários editores posteriores ou aos anais reais. Consequentemente, o texto é, na melhor das hipóteses, uma fonte histórica problemática e, portanto, uma base pobre para reconstruções da história de Israel e teorias sobre o desenvolvimento de livros bíblicos.

Juha Pakkala (1968-)Mesmo sem os problemas causados pela edição, os textos em questão foram evidentemente escritos de uma perspectiva fortemente teológica, o que significa que sua confiabilidade histórica como fonte deve ser cuidadosamente examinada. É quase impossível usá-los como tal para qualquer reconstrução histórica do período monárquico. O perfil teológico dos diferentes autores tem que ser compreendido antes mesmo de começarmos a ver por trás da teologia e possivelmente obter informações sobre eventos históricos. Seria arriscado negligenciar a análise meticulosa dos textos-fonte e assumir que, apesar dos problemas evidentes, eles de alguma forma refletem realidades históricas durante a monarquia. Tal abordagem dos textos não é incomum, mas dificilmente pode fornecer uma base histórica sólida.

Neste artigo, tentarei mostrar que os textos disponíveis não são fontes históricas tão sólidas que deveríamos usá-los como pedras angulares de teorias sobre a religião de Israel e o nascimento dos livros bíblicos. A possibilidade de que as reformas sejam projeções de ideais posteriores ao período monárquico e, portanto, não tenham qualquer base histórica também tem que ser levada em consideração ou pelo menos discutida. Algumas características podem até indicar que nunca aconteceram.

 

Notas
1. Neste artigo, a religião de Israel indica a religião de Judá e Israel, praticada durante a monarquia.
2. De acordo com Albertz (1994) “[a] decisão mais importante na história da religião israelita é tomada com a datação de uma parte essencial do Deuteronômio no tempo de Josias.” (199). Cf. a discussão posterior sobre esta declaração por Albertz em Davies (2007), 65–77, e Albertz (2007), 27–36.
3. Hölscher (1923), 208.
4. Noth (1967), 86. Assim também Gray (1963), 663.
5. Por exemplo, Lohfink (1987), 459–475; Collins (2007), 86, 150–151; Sweeney (2007), 402–403, 446–449, e Petry (2008), 395 n. 19. Römer (2005), 55, escreve: “A apresentação bíblica de Josias e seu reinado não pode ser tomada como um documento de evidência primária. Por outro lado, alguns indicadores sugerem, no entanto, que algumas tentativas de introduzir mudanças políticas e de culto ocorreram sob Josias.”
6. Hoffmann (1980), 269, concluiu que em quase todos os detalhes o autor de 2 Reis 22–23 apresenta uma imagem idealista da reforma, mas que os eventos têm uma base histórica na época de Josias.
7. Por exemplo, Levin (1984), 351–371; Davies (2007), 65–77.
8. Este desenvolvimento pode ser observado, por exemplo, em comentários e histórias recentes de Israel; por exemplo, Werlitz (2002), 305–311; Grabbe (2007), 204–207.
9. Para uma revisão, veja Hoffmann (1980), 151–154, onde ele mesmo assume que 2 Reis 18,4 contém uma memória de um evento histórico. Similarmente também Collins (2007), 148. Estudos anteriores assumiram que 2 Reis 18,4 contém um trecho dos anais reais, por exemplo, Benzinger (1899), 177.
10. Ver, por exemplo, Liverani (2005), 175–182; Miller/Hayes (2006), 413–414 (a historicidade da reforma de Ezequias é deixada em aberto; ver n. 28), 457–460.
11. Assim, muitos estudiosos, por exemplo, Driver (1902), xliii–lxvi; Veijola (2004), 2–3; Römer (2005), 55. Em pesquisas anteriores e já desde De Wette (1805), Dissertatio critico-exegetica, o livro encontrado no Templo (2 Reis 22,8) foi assumido como tendo sido o Deuteronômio ou sua edição inicial.
12. Assim, por exemplo, Levin (2005), 91. De acordo com Schmid (2008), 106, a argumentação sobre a relação entre 2 Reis 22–23 e o Deuteronômio corre o risco de raciocínio circular, mas ele data a versão mais antiga do Deuteronômio no século VII a.C.
13. Cf. Cross (1973), 274–289, e muitos que o seguiram. Similarmente também Lohfink (1987), 459–475. Provan (1988), 172–173, conectou a primeira edição da composição com o reinado de Ezequias.
14. Ver Aharoni (1968), 233–234; Mazar (1992), 495–498.
15.Kletter (1993), 54–56, demonstrou que não há evidências de uma destruição intencional de estatuetas [de divindades] na Judeia.
16. Ver Uehlinger (2007), 292–295.
17. Ver, por exemplo, Benzinger (1899), 189–196; Hoffmann (1980), 169–270; Würthwein (1984), 452–466; Levin (1984), 351–371; Kratz (2000), 173, 193; Hardmeier (2007), 123–163.

O Codex Amiatinus 5

Leia nesta ordem:

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Fragmentos dos códices gêmeos do Amiatinus foram encontrados

No início de setembro de 1908 Cuthbert Turner (1860-1930), de Oxford e historiador da Igreja, estava na Biblioteca da Catedral de Durham fazendo uma investigação sobre os primeiros manuscritos da Bíblia. O cônego bibliotecário, William Greenwell (1820-1918), arqueólogo e colecionador, convidou-o a jantar em sua casa. No vestíbulo de Greenwell, Turner viu, emoldurada, uma página de um grande manuscrito, escrita em unciais, e observou em meio à conversa que ela se parecia com uma página que faltava no famoso Codex Amiatinus.

Isso parece ter provocado uma reação inesperada de seu anfitrião. Greenwell asseverou que era de uma das outras duas Bíblias encomendadas por Ceolfrido, e, antesDE HAMEL, C. Manuscritos notáveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017, 680 p. que mais investigações pudessem ser feitas, e certamente antes de Turner publicá-las, ele de imediato presenteou a folha ao Museu Britânico, onde foi recebida no início de 1909. É geralmente conhecida pelo nome de “a Folha de Greenwell”. Contém o texto em latim de III Reis 9,29-12,18.

Em retrospecto, Greenwell veio com uma história inverificável, cujos detalhes variavam, de que tinha adquirido a folha por volta de 1890 numa livraria em Newcastle, ou, em outra rememoração, numa “loja de curiosidades antigas”.

Como Newcastle fica a menos de dez quilômetros de Jarrow, essa proveniência soava plausível, conquanto seja difícil acreditar que Greenwell, um antiquário nada modesto (em nenhum dos sentidos da palavra), pudesse ter feito tão assombroso achado e esquecido de mencioná-lo a alguém durante quase vinte anos.

A provável fonte foi revelada em 1911, quando W. H. Stevenson (1858-1924), membro e bibliotecário do St John’s College, Oxford, publicou para a Comissão de Manuscritos Históricos seu catálogo de monumentos de lorde Middleton em Wollaton Hall, Nottingham, uma das grandes casas inglesas construídas na década de 1580.

Stevenson relatou ter achado nos arquivos da família Willoughby, depois nobilitada como barões de Middleton, mais dez folhas e três minúsculos fragmentos do mesmo manuscrito em uncial, usado em encadernações do século XVI. Tudo isso compreendia mais trechos de III-IV Reis.

A essa altura não havia dúvida de que esses gêmeos do Amiatinus de fato sobreviveram, numa coincidência assombrosamente afortunada, de uma ou outra das pandectas que Ceolfrido atribuiu às igrejas de Wearmouth ou Jarrow.

Em 1938, os fragmentos Willoughby foram vendidos também ao Museu Britânico por mil libras.

Mais uma folha, do Eclesiastes, foi achada por Nicholas Pickwoad recentemente, em 1982, entre os documentos imobiliários da família Bankes, em Kingston Lacy, uma propriedade do National Trust. Esse fragmento está hoje depositado por tempo indeterminado na Biblioteca Britânica.

É possível que a folha de Greenwell também fosse proveniente do arquivo de lorde Middleton, e que talvez Stevenson tenha lhe enviado essas descobertas para que o assessorasse na identificação, com uma sugestão, imprópria, de que, não oficialmente, poderia ficar com uma como agradecimento por sua ajuda.

É muito provável que todos esses fragmentos sejam resíduos de uma Bíblia que em algum momento foi de propriedade da Catedral de Worcester.

Evidência disso é que os arquivos de Willoughby também expeliram fragmentos semelhantes de um grande manuscrito de dimensões quase idênticas, contendo transcrições do século XI das escrituras de Worcester.

Sabemos que Offa, rei da Mércia de 757 a 796, tem a fama de ter dado uma grande Bíblia a Worcester, e que Wulfstan, bispo de Worcester de 1062 a 1095, deu ordem para que as escrituras da catedral fossem copiadas na “Bíblia da sacra igreja”.

No século XII alegava-se que a Bíblia de Offa havia sido redigida em Roma, o que provavelmente significava que sua escrita era uncial. Como a filha do rei Offa se casou com o rei da Nortúmbria em 792, existe a possibilidade de que uma das Bíblias de Ceolfrido tenha chegado a ele durante permutas diplomáticas entre os reinos no fim do século VIII, talvez quando Jarrow foi saqueada pelos vikings em 794.

 

Como o Codex Amiatinus chegou à abadia de San Salvatore?

Finalmente, voltemos à Abadia de San Salvatore no monte Amiata. Não sabemos como ou quando o Codex Amiatinus chegou lá. A inscrição dedicatória adulterada, de um suposto “Pedro, abade dos lombardos”, poderia representar uma doação factual, mas também pode ser uma invenção espúria para ocultar o fato embaraçoso de que o manuscrito estava num lugar diferente da destinação pretendida por Ceolfrido.

O mosteiro dá para a Via Francigena, rota de peregrinação do norte da Itália para Roma, e com certeza era um lugar de parada para viajantes. Na verdade, essa antiga estrada segue uma linha mais longa, que atravessa a Borgonha via Lausanne, pelo passo do Gran San Bernardo, para entrar na Itália acima de Aosta, e descer cruzando Pavia, Lucca, Siena, Viterbo chegando enfim a Roma.

Qualquer um, em teoria até mesmo Carlos Magno, poderia ter recolhido o manuscrito em qualquer lugar dessa rota após a morte de Ceolfrido em Langres, e poderia tê-lo deixado com os monges de San Salvatore na jornada para o sul, ou no retorno, de novo em direção ao norte.

 

O relicário encontrado na abadia de San Salvatore

Um item interessante foi encontrado em San Salvatore na década de 1960. Conforme um relato, foi descoberto oculto num buraco atrás do grande altar durante os trabalhos de reconfiguração do santuário. Isso foi publicado pela primeira vez em 1974.

O objeto é uma pequenina e primorosa caixa portátil, um relicário insular, no formato de uma pequena casa com telhado de duas águas, incrustada com um mosaico de retângulos vermelho-escuros e guarnecida com ornamentos de metal entrelaçados, inclusive florões no formato de cabeça de pássaros, muito semelhantes à ornamentação em manuscritos do Livro de Durrow e dos Evangelhos de Lindisfarne, ambos provavelmente do final do século VII.

Seria de imaginar que o relicário fosse irlandês, exceto pelo fato de incorporar granadas (prática testemunhada na Inglaterra anglo-saxã, mas ao que tudo indica não propriamente na Irlanda) e conter fragmentos de vidro colorido, exemplos dos quais sobrevivem apenas em Jarrow. A caixa tem alças de metal para que seja pendurada em cordões, possibilitando carregá-la. É perfeitamente crível atribuir-se a ela uma data contemporânea a Ceolfrido.

Christopher De Hamel (1950-)Um mosteiro numa estrada de peregrinação pode receber em qualquer momento presentes exóticos de viajantes de passagem e de visitantes agradecidos. Não existe absolutamente nenhuma conexão conhecida entre o relicário e o Codex Amiatinus, exceto a notável coincidência de que San Salvatore pudesse ter tido duas grandes obras de arte de mesma data e origem, tão longe da Nortúmbria, e uma explicação simples seria de que as duas chegaram juntas.

A comitiva de Ceolfrido devia sem dúvida levar consigo altares portáteis, cálices e relíquias de Wearmouth-Jarrow, para manter uma vida religiosa durante sua jornada.

Segundo a Vita Ceolfridi, alguns dos monges voltaram para casa após a morte de Ceolfrido, em setembro de 716. Outros continuaram sua jornada para Roma, ainda levando a Bíblia.

A rota para o sul deve ter passado pela Via Francigena. A Itália setentrional é cultivada, e é fácil viajar por seus campos. Quando se alcança a região mais selvagem entre a Toscana e a Úmbria, ela de repente fica perigosa, erma e muito montanhosa. Devia haver bandidos e lobos, e até ursos. Pode-se imaginar a delegação sem seu líder fazendo uma pausa, talvez à espera de uma época mais segura, mas de algum modo nunca deixando totalmente de se locomover. Poderiam já existir alguns estabelecimentos religiosos nas encostas do monte Amiata.

Os monges ingleses estariam morrendo um a um. Em 742, quando o mosteiro de San Salvatore é mencionado pela primeira vez, os membros mais jovens do séquito de Ceolfrido não estariam muito acima de seus quarenta e tantos anos, mas eram velhos e poucos o bastante para com júbilo optar por uma vida mais sedentária, com sua Bíblia e seu relicário.

Isso não é mais do que pura e imaginativa conjectura, mas preencheria a lacuna existente nessa assombrosa jornada de um manuscrito de 1300 anos de Weatmouth ou Jarrow até a Biblioteca Medicea Laurenziana em Florença.

O Codex Amiatinus 4

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

A escrita do Codex Amiatinus

Do escriba, passemos para a escrita. O texto do Codex Amiatinus está escrito em unciais, a quintessencial “romana scriptura”, disposta em colunas duplas com linhas longas e curtas, adequadas a uma fácil leitura em voz alta, “per cola et commata”. A uncial é totalmente diferente das maiúsculas e minúsculas nativas dos livrosCodex Amiatinus - Biblioteca Medicea Laurenziana, Firenze, Italia irlandeses, conhecidas por historiadores de manuscritos como de estilo “insular”, o qual compreende todo o âmbito celta das Ilhas Britânicas.

O contraste com as unciais mediterrâneas é mais uma evidência gráfica de que as comunidades de Wearmouth e Jarrow estavam se distanciando da Irlanda e conscientemente imitando as práticas de escrita romanas.

Deve haver a possibilidade de que Bento Biscop e Ceolfrido tenham trazido consigo da Itália escribas treinados, para que ensinassem a escrita uncial aos ingleses. No fólio 86v do Codex Amiatinus no material preambular ao Levítico, há várias palavras canhestramente escritas em grego a afirmar que fora um tal de lorde Servandos quem fizera o livro. Este não é nem de longe um nome anglo-saxão, e a sentença deve ter sido copiada incompreensivelmente do exemplar por alguém que sabia latim, mas não grego.06

Embora os escribas modelassem com atenção seu trabalho segundo protótipos italianos, eles mesmos eram sem dúvida ingleses. São traídos por marcas distintivamente insulares de abreviações e outras peculiaridades que só se encontram em manuscritos em uncial que sabemos com certeza terem sido copiados na Nortúmbria.

Tem-se observado com frequência que só a partir do estilo da escrita já se pode deduzir total diferença no aspecto cultural entre Wearmouth-Jarrow, com modelo em Roma, e Lindisfarne, fundação da ilha irlandesa cerca de oitenta quilômetros ao norte, onde os manuscritos eram de hábito copiados na contrastante caligrafia insular. Na realidade, segundo um provável senso comum, essas comunidades se influenciavam reciprocamente.

Com toda a sua escrita romana, o Codex Amiatinus apresenta traços de uma prática distintamente insular nas palavras de abertura de alguns textos, usando o que se conhece como “diminuendo”, começando com uma letra grande e diminuindo o tamanho letra a letra. Exemplo disso é a abertura do Gênesis. As primeiras palavras são “In principio” (fólio 11r). O “I” é grande, com sete vezes a altura de uma letra do texto normal, o “n” não é tão grande, e o “p” é ainda menor, à medida que a escala se reduz até chegar ao tamanho da escrita normal. Essa é uma característica de manuscritos irlandeses. Os escribas do Codex Amiatinus devem ter visto isso em Lindisfarne.

Em compensação os monges de Lindisfarne derivaram seu padrão para são Mateus do Codex Grandior em Jarrow, e pequenas unciais foram usadas em seu encantador “Evangelho de São Cuteberto” do início do século VIII, hoje na Biblioteca Britânica, tão delicado e leve quanto Amiatinus é vasto e volumoso, e que aparentemente foi enterrado numa data remota junto com o corpo de são Cuteberto, sepultado em seu santuário em 698.

 

De sete a nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus

Uma medida da ordem de grandeza do scriptorium e da rigidez de sua organização nos advém do fato de que parece que pelo menos sete e talvez até mesmo nove escribas trabalharam no Codex Amiatinus.

Algumas caligrafias são maiores que outras, e isso é muito aparente nas quebras entre os livros bíblicos. Sua incidência está claramente repartida em distintos grupos de texto. Como o demonstra o volume alceado, vários cadernos são formados por um número incomum de folhas, todos eles correspondendo aos finais dos livros: xlviii (9 folhas, fim de Crônicas, fólio 378v), lxviii (5 folhas, fim de Isaías, fólio 535v), e xc (5 folhas, fim de Tobias, fólio 708v).

Cada um deles representa também uma mudança de escriba. Um caderno com número ímpar de folhas só parece ter sido necessário quando já se tinha começado a escrever o texto seguinte. Desse modo, muitos escribas trabalhavam simultaneamente.

 

515 bezerros forneceram o material do Codex Amiatinus

Para suprir o pergaminho de manuscritos tão grandes e tão extensos quanto pandectas inteiras deve ter sido necessário dispor da pele de uma quantidade enorme de animais. Da pele de cada um se preparava não mais do que um simples par de folhas.

Para as 1030 folhas do Codex Amiatinus deve ter sido utilizada a pele de 515 bezerros. Para todas as três pandectas encomendadas por Ceolfrido, deve-se multiplicar isso por três.

Às vezes se afirma, sem evidências, que a concessão de terras a Wearmouth-Jarrow em 692 visava prover pasto suficiente a um rebanho que fora aumentado para a feitura de Bíblias.

Na realidade, a criação de alguns milhares de animais não deve ter sido anormal para uma comunidade rural grande e bem organizada durante os trinta anos do abadado de Ceolfrido, especialmente dado que o gado fornecia muitos produtos necessários além de sua pele. Isso incluía a carne para os jantares diários de muitos monges ativos e também os chifres, cola, ossos e até fertilizantes (providos por seu sangue) para a agricultura.

O Codex Amiatinus 3

O Codex Amiatinus 1
O Codex Amiatinus 2
O Codex Amiatinus 3
O Codex Amiatinus 4
O Codex Amiatinus 5

 

Características do Codex Amiatinus

Da mesma forma que Amiata é uma grande montanha, não há como negar que o Codex Amiatinus é um colosso. Ele tem uma espessura quase inimaginável. Cada página tem uns cinquenta centímetros de altura, mas a lombada — tente imaginar isso — tem cerca de trinta centímetros de espessura. O livro vai afinando ligeiramente até a borda lateral.

O manuscrito está encadernado numa capa muito moderna de couro de bezerro cor de bronze aplicado sobre madeira, com tiras de couro penduradas na borda inferior,Página do Codex Amiatinus - Evangelho de Marcos, capítulo 1 costuradas com fio amarelo e dotadas de fechos modernos de latão que se encaixam em pinos de metal afixados na borda superior da capa. Francamente, ele parece uma grande e cara maleta de couro italiana.

São mais de 34 quilos, ou, com a encadernação, acessórios, caixa para transporte, uma estimativa de mais de quarenta quilos.

As primeiras oito folhas são ligeiramente menores que as do resto do livro e pródigas em ornamentos.

Há aquela preciosa inscrição dedicatória, embaixo de um arco, no verso da primeira folha, com os nomes que substituíram os anteriores bem aparentes numa tinta de um marrom muito mais escuro, e nem de longe tão bem executados quanto a escrita que não foi alterada.

Na página adjacente está o soberbo e famoso retrato de Esdras, a mais antiga pintura inglesa à qual se pode atribuir qualquer data absoluta (isto é, não posterior a 716).

A maior parte do restante do enorme manuscrito, mais de 2 mil páginas, é formada por um texto austero, mas elegante, em duas colunas, geralmente com ornamentação insignificante.

Impressiona o espantoso frescor de seu estado. A maioria dos manuscritos antigos traz a marca do uso de muitos diferentes períodos, leitores, anotações em várias escritas, emendas e sinais de consultas e referências durante séculos. Afora algumas correções contemporâneas e marcações litúrgicas, provavelmente oriundas do scriptorium original na Nortúmbria, o manuscrito quase não apresenta sinais de uso. É como se tivesse sido embrulhado e jamais aberto. Talvez tenha ocorrido exatamente isso, caso os monges em San Salvatore o tenham considerado antes uma relíquia sagrada de são Gregório do que um livro de uso prático.

Os Salmos agora estão numerados numa caligrafia pós-medieval e há uma numeração discreta dos capítulos de acordo com o sistema moderno, e para mim é fácil acreditar que isso date possivelmente da época do exílio do manuscrito nos escritórios dos editores da Vulgata, em Roma, entre 1587 e 1590.

O manuscrito é construído em sua maior parte de cadernos com oito folhas cada um. Em certo momento, os estudiosos do Amiatinus especularam que seu exótico caderno preliminar poderia ter sido transferido de outro manuscrito, talvez de origem italiana, por ser tão diferente do resto do volume ou de qualquer coisa que se conhecesse em qualquer outra Bíblia medieval existente. Duas das folhas são tingidas de púrpura e uma de amarelo, típicas técnicas clássicas. No entanto, hoje se aceita em todo o mundo que essas páginas são componentes integrais, se bem que muito incomuns, do volume, feitas pelos mesmos escribas e iluminadores ingleses, usando os mesmos pigmentos da figura de Cristo em Majestade, no Novo Testamento, fólio 796v, a qual é parte inquestionável do livro, como demonstra seu alceamento.

 

A biblioteca de Cassiodoro na Vivarium

A presença dessas páginas de abertura nos leva a um outro nível de extraordinária coincidência com aquele relato segundo o qual Bento Biscop e Ceolfrido obtiveram uma “imensurável quantidade de livros” em sua visita à Itália em 679. Isso envolve uma biblioteca de livros que tinham sido reunidos por Cassiodoro (c. 485-580), cônsul na fase final do Império Romano, filósofo e autor prolífico, convertido ao cristianismo e figura gigantesca na história da erudição bíblica.

Quando se retirou de cena, Cassiodoro estabeleceu uma espécie de fundação de pesquisa monástica na Calábria, extremo sudeste da Itália, chamada Vivarium à qual ele doou sua biblioteca particular.

Além disso, nas Institutiones, seu compêndio sobre estudo teológico e secular, Cassiodoro não apenas explicou seu método para subdivisão e interpretação da Bíblia como também descreveu em detalhes como tinha incorporado esse seu sistema bíblico único a alguns de seus próprios manuscritos.

Os detalhes apresentados correspondem com tamanha exatidão ao material existente nessas primeiras folhas do Codex Amiatinus que parece ser inescapável a explicação de que são cópias diretas, e de que de algum modo naquela “imensurável quantidade de livros” obtidos em Roma deviam estar incluídos alguns dos manuscritos do próprio Cassiodoro, antes na Vivarium, agora de volta ao mercado.

Como acontece com muita frequência com bibliotecas pobremente dotadas, a Vivarium não conseguiu sobreviver muito tempo após a morte de seu fundador, e seus livros, com acerto, foram dispersos ou vendidos.

Se alguns (pelo menos) foram depois comprados por Ceolfrido, eles estariam por sua vez disponíveis como exemplos para os escribas de Wearmouth-Jarrow, na Nortúmbria. Beda, cujo conhecimento dos estudos clássicos era assombrosamente vasto, talvez tenha tido a sorte de ter acesso às aquisições feitas de uma das mais qualificadas coleções privadas de livros do final do Império Romano, e pode nem mesmo ter se dado conta de que os manuscritos em Jarrow já tinham sido do grande Cassiodoro em pessoa.

 

Cassiodoro e o Codex Grandior

Em suas Institutiones, Cassiodoro afirma possuir uma enorme pandecta com uma tradução latina da Bíblia, que ele chamou de seu “Codex Grandior”, “o manuscrito maior”. Seu texto do Antigo Testamento, ele diz, foi tirado da primeira revisão do grego por Jerônimo, e não da versão posterior da Vulgata mais recentemente traduzida do hebraico. Supõe-se que compreendia 380 folhas.

Considerando a extrema raridade, na época, de quaisquer versões abrangentes da Bíblia em um só volume em latim, esse manuscrito muito provavelmente não era outro senão aquela mesma pandecta de uma “antiga” tradução que fora trazida da Itália por Ceolfrido.

 

O Codex Grandior e o Codex Amiatinus

Cassiodoro diz que tinha inserido em seu Codex Grandior um diagrama com a planta do Templo de Jerusalém, conforme descrita em Êxodo 26. Um esboço exatamente com esses detalhes aparece numa página dupla entre as folhas de abertura do Codex Amiatinus (fólios 6v-7r). Mostra o interior do templo, o próprio Tabernáculo. No centro está o Santo dos Santos, com a Arca da Aliança. Mais adiante Cassiodoro relata (tudo isso está no livro I, capítulo 14, das Institutiones) que ele também incluíra no Codex Grandior diagramas com diferentes maneiras de dividir o texto da Bíblia de acordo com os santos Hilário, Jerônimo e Agostinho, respectivamente. É exatamente isso que encontramos nos fólios 3r, 4r e 8r de Amiatinus.

A mais famosa e estranha das páginas preliminares é o assim chamado retrato de Esdras, já mencionado, agora posto no frontispício. Ele mostra um homem aureolado em vestimentas sacerdotais judaicas sentado num banquinho, encurvado, quase de perfil, escrevendo num livro meio aberto em seu colo. Tem os pés num pedestal baixo. Espalhados a sua volta estão vários instrumentos da profissão de escriba — cálamos, compassos, penas, potes de tinta e o que provavelmente é um prato com pigmentos numa mesa em separado. Atrás dele há um armário aberto com as portas apaineladas bem escancaradas para mostrar cinco prateleiras inclinadas nas quais estão arrumados nove livros encadernados em capas ornamentadas vermelho-escuras. Os detalhes da marcenaria nos móveis e os ornamentos entalhados em torno do armário no Codex Amiatinus são extraordinariamente delicados e sofisticados. Há uma hábil tentativa de um desenho em perspectiva. O pote de tinta lança uma sombra no chão, e vale a pena notar isso só pelo fato de com frequência se dizer que não aparecem sombras na arte europeia até o século XV.

É uma cena estranha, aparentemente mostrando um autor que rascunha um texto e não um escriba que copia um. As palavras em seu livro são indicadas por rabiscos desunidos, que às vezes se alega serem na verdade notas tironianas, tipo de antiga estenografia medieval, mas decerto não passa da forma como o artista representou um texto inespecífico. No topo da página, fora da moldura da figura, há um dístico escrito em maiúsculas rústicas: “Codicibus sacris hostili clade perustis/ Esdra deo fervens hoc reparavit opus”, que significa (mais ou menos) “Tendo os Livros Sagrados sido destruídos num desastre hostil, Esdras, comprometido com Deus, restaurou esta obra”.

Isso alude à ocasião, após o exílio dos judeus na Babilônia, por volta de 457 a.C., em que Esdras foi enviado de volta a Jerusalém e descobriu que as Escrituras hebraicas tinham sido esquecidas e perdidas, e sob orientação divina ele as reconstituiu de memória. É essa legenda, bem como sua vestimenta sacerdotal do Antigo Testamento, que identifica o homem apresentado como Esdras.

Retratos preambulares de autor eram provavelmente uma característica de textos gregos desde a Antiguidade clássica.

Esdras não era propriamente um autor. Sua contribuição, se a considerarmos de modo literal, foi na preservação de textos da primeira parte do Antigo Testamento — não, é claro, toda a inteireza das Escrituras cristãs, a maior parte das quais data de muito depois da época em que ele viveu.

De muitas maneiras, um frontispício mais adequado a uma pandecta de Vulgata inteira teria sido uma imagem de São Jerônimo escrevendo, o que de fato aparece, com frequência, na abertura de muitas Bíblias medievais mais tardias.

O estilo aqui é tão mediterrâneo que deve ter sido copiado de um exemplar importado da Itália, o que também é, presumivelmente, o caso do Codex Grandior, embora Cassiodoro não mencione nele a presença de uma figura assim.

Com frequência se sugere que a pintura no Amiatinus seja na verdade uma figura, que foi mal-entendida, do próprio Cassiodoro, que como Jerônimo (e Esdras, e Ceolfrido) estava comprometido com a preservação e a transmissão da Bíblia após um período de caos. Cassiodoro viveu o saque a Roma pelos ostrogodos em 546, e seu pequeno oásis cristão na Vivarium se dedicava a manter as Escrituras em segurança durante as tormentas da barbárie e da apostasia.

Em suas Institutiones, Cassiodoro descreve não só seu Codex Grandior como também o que ele chama de “novem codices”, os nove volumes separados nos quais ele tinha dividido e copiado o texto da Bíblia. As prateleiras no armário atrás de Esdras na figura mostram exatamente isso: nove tomos bíblicos com títulos na lombada.

Nas reproduções da página esses nomes são quase impossíveis de ler, mas posicionando o manuscrito original de modo que reflita a luz, os nove títulos ficam visíveis com seu brilho contra um campo opaco — o Octateuco, Reis e Crônicas com Jó, oito livros de história, os Salmos, os livros de Salomão, os Profetas, os Evangelhos, as Epístolas e (por fim) Atos e Apocalipse.

No melhor dos casos, apenas a primeira prateleira poderia ser atribuída a Esdras na realidade histórica, mas todas as nove estavam na biblioteca da Vivarium. Faria mais sentido se o modelo para essa figura tivesse sido um retrato de Cassiodoro. É discutível que Cassiodoro tivesse encomendado um retrato de si mesmo, mas seus sucessores e bibliotecários póstumos poderiam facilmente ter inserido um frontispício hagiográfico no Codex Grandior, o favorito de seu falecido patrão.