Livro de Pagola sobre Jesus em português

PAGOLA, J. A. Jesus: aproximação histórica. Petrópolis: Vozes, 2010, 656 p. – ISBN: 9788532640178

 

Jesus, aproximação histórica. Uma resenha – Faustino Teixeira – IHU On-Line: 01/03/2011

O livro Jesus, aproximação histórica, de José Antonio Pagola, publicado no Brasil pela Editora Vozes, Petrópolis, no ano passado e que já está na 2a. edição, foi analisado por Faustino Teixeira, teólogo, em resenha publicada na REB, v. 70, n. 280, outubro 2010, pp. 974-978.

Faustino Teixeira é graduado em Ciência das Religiões e Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Fez mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado, na mesma área, pela Pontificia Universidade Gregoriana, de onde recebeu o título de pós-doutor. Atualmente, é professor na Universidade Federal de Juiz de Fora. Entre seus diversos livros publicados, destacamos: Ecumenismo e Diálogo Inter-religioso (Aparecida do Norte: Santuário, 2008) e Teologia das Religiões: uma visão panorâmica (São Paulo: Paulinas, 1995). Faustino Teixeira seleciona, organiza e edita as Orações inter-religiosas, publicadas semanalmente, sempre às quintas-feiras, no blog do IHU.

 

Trata-se de uma excelente novidade editorial da Vozes. Refere-se à nona edição de um livro que vem se tornando bestseller na Espanha, com traduções ao Catalão (Claret), Euskera (Idatz), Italiano (Borla) e Inglês (Paperback).

A primeira edição do livro foi publicada na Espanha em setembro de 2007 pela editora PPC (dos religiosos marianistas) e logo alcançou grande sucesso, chegando à oitava edição em fevereiro de 2008. Foi uma acolhida “muito mais ampla e positiva” que a esperada pelo próprio autor, José Antonio Pagola, com formação em teologia e ciências bíblicas pela Pontifícia Universidade Gregoriana, Pontifício Instituto Bíblico de Roma e Escola Bíblica e Arqueológica Francesa de Jerusalém. A obra provocou igualmente criticas negativas e reações do episcopado espanhol. A primeira delas partiu de Mons. Demetrio Fernández, bispo de Tarazona, que em carta pastoral de dezembro de 2007 assinalou que a “tentação ariana” assoma a obra em seu conjunto. Veio em seguida a apreciação crítica de José Rico Pavés, diretor do Secretariado Episcopal para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal Espanhola (CEE), que sinaliza o risco de um “dissenso sutil e daninho” na investigação histórica realizada por Pagola sobre o ensinamento de Jesus.

Todas as reações culminaram na nota de clarificação sobre o livro feita pela Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé da CEE, publicada em junho de 2008, que apontou deficiências da obra tanto no plano metodológico como doutrinal. A preocupação maior relacionava-se ao que consideravam uma “apresentação reducionista de Jesus como um mero profeta” e a “negação de sua consciência filial divina”, além de outras questões conexas.

Em defesa da obra posicionou-se o então bispo da diocese de San Sebastián, Juan Maria Uriarte. Ali atuava Pagola como vigário episcopal até o ano 2000 e permanecia atuando como diretor do Instituto de Teologia e Pastoral. Diante da situação crítica, Uriarte solicita a dois qualificados teólogos e a um bispo teólogo a avaliação da obra. Com a sugestão de algumas modificações, a obra ganha o Nihil Obstat de Uriarte e chega assim à sua nona edição, em junho de 2009. É essa versão que sai agora publicada em português. Dentre as mudanças observadas, verifica-se que esta nona edição ganhou uma apresentação mais detalhada e uma significativa ampliação do capítulo final, que trata o tema do aprofundamento da identidade de Jesus.

Na apresentação da obra, Pagola apresenta as razões de sua investigação histórica sobre Jesus. Sua motivação maior é captar o segredo que “se encontra neste fascinante galileu, nascido há dois mil anos numa aldeia insignificante do Império romano e executado como um malfeitor perto de uma antiga pedreira, nos arredores de Jerusalém, quando beirava os 30 anos” (p.11). Lança a questão: “Quem foi este homem que marcou decisivamente a religião, a cultura e a arte do Ocidente chegando até a impor inclusive seu calendário?”(p.11).

O objetivo do autor é lançar-se numa séria investigação, a mais rigorosa possível, sobre essa figura fascinante: sobre sua vida, suas lutas e a força e originalidade de sua atuação na história. Para tal aproximação histórica, o autor fez recurso ao rico instrumental à disposição na investigação moderna, e sempre em perspectiva interdisciplinar. Buscou igualmente apresentar seu trabalho numa linguagem simples e acessível, o que muito favorece sua leitura que é agradável e convidativa. Sente-se nessa nova apresentação uma preocupação do autor em explicitar sua intenção de concentrar-se na investigação histórica sobre Jesus, o que não significa abafar o vigor de sua confissão cristã que afirma Jesus como “verdadeiro Deus e verdadeiro homem” (p. 15). Indica claramente que seu propósito não é avançar pelos “complexos caminhos da gestação e desenvolvimento da fé cristológica” (p. 26 e p. 363, n. 2).

Como assinala Pagola, o livro nasceu de sua fé e amor a Jesus Cristo, e estimulado por essa mesma fé buscou narrar a história de Jesus de forma viva e significativa para os tempos atuais. Direciona o livro não apenas para os que se confessam cristãos, mas também para aqueles que ignoram sua realidade ou aqueles que se afastaram ou desencantaram com a igreja e buscam caminhos alternativos de vida (p. 26- 27). Sua intenção é favorecer a aproximação histórica de Jesus “estudando sobretudo a lembrança que ele deixou nos seus” (p.19). E esta aproximação é contagiante: “É difícil aproximar-se dele e não sentir-se atraído por sua pessoa. Jesus traz um horizonte diferente para a a vida, uma dimensão mais profunda, uma verdade mais essencial” (p. 22).

Os treze primeiros capítulos da obra buscam favorecer essa aproximação histórica de Jesus, mediante seus traços mais importantes. Tais capítulos facultam aos cristãos conhecer de forma mais palpável os traços humanos daquele em quem Deus revelou-se de modo único e singular: “comover-se-ão ao ver que Deus encarnado conviveu entre os homens fazendo o bem, ´curando a vida`, ´defendendo os últimos`, ´amando a mulher`e procurando a verdadeira dignidade” (p. 24). E aos demais, a possibilidade de “conhecer melhor um homem que marcou a história da humanidade” (p. 23).

Nos dois primeiros capítulos Pagola busca situar Jesus em seu contexto histórico, enquanto judeu da Galiléia e vizinho de Nazaré. Foi sob o império de Roma que viveu esse galileu de nome Yeshua, entre pessoas do campo e num ambiente de viva presença religiosa. Ele “cresceu no meio da natureza, com os olhos muito abertos para o mundo que o rodeava” (p.64), e isso se expressa na abundância de imagens que emprega em sua fala, adornada com elementos de seu espaço circundante: os pássaros do céu, as anêmonas das colinas de Nazaré, as ramas das figueiras, a beleza do sol e a força das chuvas. O seu estilo de vida difere dos ascetas do deserto, pois vem marcado pela vontade de vida e pelo toque festivo. A sua experiência de fé foi desdobrando-se de sua vida simples na Galileia, no clima religioso propício de sua aldeia. Ali foi percebendo que “Deus é o ´Pai do céu`. Não está ligado a um lugar sagrado. Não pertence a um povo ou a uma raça concretos. Não é propriedade de nenhuma religião. Deus é de todos” (p. 73-74). Ali cresceu apaixonadamente em seu coração o amor pelo reino de Deus, que se tornará a razão central de sua vida e atuação (p. 83).

Nos capítulos terceiro e quarto, apresenta Jesus como buscador de Deus e profeta do reino de Deus. Assim como o profeta João Batista, que o precede, Jesus busca captar a vontade de Deus, mas sua perspectiva é distinta. Seu estilo de vida é festivo, marcado pelo tônus da alegria. Vai dedicar-se “a algo que João nunca fez: curar os enfermos que ninguém curava, aliviar a dor de pessoas abandonadas, tocar leprosos que ninguém tocava, abençoar e abraçar crianças.” (p. 106). Enquanto a missão do Batista estava vinculada à questão do pecado, o projeto de Jesus tinha como objetivo aplacar o sofrimento dos mais excluídos e necessitados, anunciando-lhes uma Boa Notícia: “É mais determinante em sua atuação eliminar o sofrimento do que denunciar os diversos pecados das pessoas” (p. 213). No cerne de sua atuação encontra-se a “paixão pelo reino de Deus”.

Trata-se do núcleo medular de sua pregação, da convicção mais profunda que o anima, e o segredo de sua motivação existencial. E essa mensagem do reino volta-se privilegiadamente para os pobres. Jesus declara-os felizes porque Deus é amigo da vida e quer fazer do seu reino uma manifestação da compaixão de Deus que rompe com a situação de miséria e opressão e anuncia uma perspectiva nova de esperança e alegria (p. 130-131). Esta é a razão do impacto exercido pela mensagem de Jesus desde o início: “Aquela maneira de falar de Deus provoca entusiasmo nos setores mais simples (…). Era o que eles precisavam ouvir: Deus se preocupa com eles. O reino de Deus que Jesus proclama corresponde ao que eles mais desejam: viver com dignidade” (p. 124). Esse reino que vem, longe de ser uma expressão de poderio ou glória, é a manifestação efetiva da bondade e compaixão de Deus, que removem as entranhas.

Nos capítulos quinto e sexto, aparece Jesus como o poeta da compaixão e curador da vida. É à linguagem dos poetas que Jesus recorre para expressar a sua experiência e compreensão do reino de Deus. São ricas as imagens, metáforas e parábolas que utiliza para traduzir de forma simples, clara e acessível o seu projeto de vida. O que anuncia é um Deus compassivo, inigualável metáfora para expressar o seu mistério de vida. E o autor indaga: “Será esta a melhor metáfora de Deus: um pai acolhendo de braços abertos os que andam ´perdidos` fora de casa e suplicando a todos os que o contemplam e ouvem que acolham com compaixão a todos?” (p. 164). Com base na parábola do bom samaritano, Pagola sinaliza que “a melhor metáfora de Deus é a compaixão para com um ferido”, e que o reino de Deus acontece onde quer que “as pessoas atuam com misericórdia” (p. 174). Jesus é também curador da vida: alguém que contagia saúde e vida, e junto a ele não há lugar para a tristeza ou solidão. A acolhida e o cuidado são traços singulares de sua atuação. Na base dessa força curadora está a dinâmica de sua própria pessoa: “seu amor apaixonado à vida, sua acolhida afetuosa a cada enfermo ou enferma, sua força para regenerar a pessoa a partir de suas raízes, sua capacidade de transmitir sua fé na bondade de Deus. Seu poder de despertar energias desconhecidas no ser humano criava as condições que tornavam possível a recuperação da saúde” (p. 202).

Os traços de Jesus como defensor dos últimos e amigo da mulher aparecem nos capítulos sétimo e oitavo. A Boa Notícia do reino de Deus toca de modo particular os mais sofridos e pequeninos. Essa é a grande revolução trazida por Jesus, inaugurando a centralidade do “código da compaixão”. Com base na parábola do juízo final (Mt 25,31-46), Pagola indica que “o caminho que conduz a Deus não passa necessariamente pela religião, pelo culto ou pela confissão de fé, mas pela compaixão com os ´irmãos pequenos`”. Conclui dizendo que “a religião não detém o monopólio da salvação; o caminho mais acertado é a ajuda ao necessitado. Por ele caminham muitos homens e mulheres que não conhecem Jesus” (p. 235). Em seu livro, Pagola confere um importante lugar para as mulheres no movimento de Jesus. Foram verdadeiras “discípulas de Jesus”, estando presentes e atuantes desde a Galileia até Jerusalém. Elas “fizeram parte do grupo que seguia Jesus desde o início”. Algumas são nomeadas, como Maria de Mágdala, que ocupa um lugar de destaque, sendo sua melhor amiga (p. 280-281). O autor assinala a presença delas na última ceia e o seu lugar protagônico na fé pascal (p. 276-277).

Os três capítulos seguintes, nono, décimo e décimo primeiro, abordam-se os temas de Jesus como mestre de vida, criador de um movimento renovador e crente fiel. Jesus foi um “mestre pouco convencional”. Para ele não é a lei que está no centro, mas o amor. Em sintonia com toda a reflexão anterior, Pagola indica que o reino de Deus anunciado por Jesus exige, antes de tudo, fidelidade ao Deus da Vida e da Aliança. O importante “não é contar com pessoas observantes da leis, mas com filhos e filhas que se pareçam com Deus e procurem ser bons como ele o é” (p. 299). O que Jesus criou, de fato, foi um “movimento renovador”, um “movimento de homens e mulheres saídos do povo” que, em sua companhia, firma a “consciência da proximidade salvadora de Deus” (p. 323). Seus seguidores são chamados a “compartilhar sua paixão por Deus e sua disponibilidade ao serviço de seu reino” (p. 340).

Na edição anterior do livro havia uma passagem que foi retirada na nova edição e que dizia “que Jesus não pôde nem quis colocar em marcha uma instituição forte e organizada, mas um movimento curador que foi transformando o mundo numa atitude de serviço e amor. Não há como explicar a atuação profética de Jesus sem captar o mistério de sua relação amorosa com Deus.”. É Deus que está no centro de sua vida. Para Jesus, Deus não se reduz a uma teoria, mas é uma Presença que o transforma interiormente e faculta a tonalidade de sua vida de abertura e compromisso com os outros. A Deus, como Pai, dedica sua oração nos momentos cruciais de sua caminhada. Jesus sempre se dirige a Deus como “Pai”, com quem partilha confiança e intimidade (p. 383 e 392). É o Pai do céu, que “não está ligado ao templo de Jerusalém nem a nenhum outro lugar sagrado. É o Pai de todos, sem discriminação nem exclusão alguma. Não pertence a um povo privilegiado. Não é propriedade de uma religião. Todos podem invocá-lo como Pai” (p. 392).

O mistério de Deus é vivido por Jesus de forma peculiar: nele encontra o “melhor amigo do ser humano” e o “amigo da vida”. Estabelece também com ele uma peculiar “intimidade filial”. Uma das “deficiências” indicadas pela crítica da CEE contra o livro de Pagola foi a carência de uma explicitação da consciência filial divina de Jesus. O que o autor sublinha em seu livro, em sintonia com o seu propósito de se fixar no âmbito da investigação histórica, é que “Jesus mostra-se muito discreto sobre sua vida interior” (p. 363). Retoma a questão mais adiante assinalando que “ao que parece, Jesus nunca se pronunciou abertamente sobre sua pessoa. A questão de sua messianidade respondia de forma ambígua” (p. 452). Na edição anterior tinha sido mais contundente: “Em nenhum momento manifesta pretensão alguma de ser Deus: nem Jesus nem seus seguidores em vida utilizaram o titulo de ´Filho de Deus` para confessar sua condição divina”.

Nos capítulos doze, treze e quatorze o autor desenvolve os temas da morte e ressurreição de Jesus. Pagola indica em sua obra que o final trágico encontrado por Jesus foi resultado de sua vida e luta em favor do reino de Deus: “Não foi uma surpresa. Fora sendo gestado desde que ele começou a anunciar com paixão o projeto de Deus que ele trazia no coração” (p. 399). Foi alguém “coerente até o final”, um “mártir do reino de Deus”. Segundo Pagola, a investigação histórica indica que a morte de Jesus não pode ser interpretada numa perspectiva sacrificial. Na verdade, “nunca se vê Jesus oferecendo sua vida como uma imolação ao Pai para obter dele clemência para o mundo. O Pai não precisa que ninguém seja destruído em sua honra. O amor que ele tem por seus filhos é gratuito, seu perdão é incondicional” (p. 419).

Essa posição do autor também causou dificuldade para seus opositores. Na apresentação de sua obra, Pagola sinaliza que não quis concluir o seu livro com a perspectiva da cruz. Argumenta que “não quis deixar os leitores confusos diante de um Jesus executado cruelmente num patíbulo. Nem tudo terminou ali. Se a crucifixão tivesse sido a última lembrança que restou de Jesus, não teriam escrito os evangelhos nem teria nascido a Igreja” (p.24). Daí a centralidade da ressureição em sua obra, mas o autor sublinha que sua abordagem do tema foi marcada pela fidelidade ao rastreamento histórico das fontes (p. 25). Na linha dessa abordagem, a ressurreição não significou um retorno de Jesus “à sua vida anterior na terra” (p. 495). Nao foi, propriamente, um “fato histórico” constatável e verificável, mas um “fato real”, que habitou e marcou a vida de seus discípulos, e para os que crêem, um fato decisivo na história humana (p. 497). Trata-se de um “fato real” pois a fé dos seguidores de Jesus não se fundou num vazio. De fato, “algo aconteceu neles. Todas as fontes o afirmam: viveram um processo que não só reavivou a fé que tinham em Jesus, mas os abriu para uma experiência nova e inesperada de sua presença entre eles” (p. 499).

No último capitulo, Pagola desenvolve o tema da identidade de Jesus. Seguindo o critério estabelecido por James Dunn, segundo o qual o objetivo realista de uma pesquisa histórica sobre Jesus é o “Jesus recordado”, o autor vai traçar as repercussões do impacto da ressurreição nos seguidores mais próximos de Jesus. Sob o impacto desse “fato real”, é toda uma releitura da vida e significado de Jesus que vem processada: “Aquela vida surpreendente e cativante que conheceram de perto e cuja memória guardam viva no coração adquire agora uma profundidade nova”. Pagola defende, assim, a idéia de que a “lembrança” traduz o “ponto de partida da fé cristológica” (p. 528).

No epílogo da obra, Pagola adverte sobre a importância de situar Jesus no centro do cristianismo, mas evitando de “reduzir sua pessoa a uma sublime abstração” (p. 566). Driblando um dos riscos mais ameaçadores para o cristianismo atual, que é o monofisismo, o autor busca sublinhar os traços do Jesus profeta que percorreu com coragem os caminhos da Galileia. Nada mais problemático para o cristianismo do que um Jesus sem reino e Pagola está muito atento a isto. É para o reino que Jesus vive, é ele que motiva a sua paixão e dá significado à sua vida. Assinala com precisão que “o que ocupa o lugar central na vida de Jesus não é Deus simplesmente, mas Deus com seu projeto sobre a história humana. Jesus não fala de Deus simplesmente, e sim de Deus e seu reino de paz, compaixão e justiça” (p. 568). São lindas reflexões que trazem à tona o percurso reflexivo original da cristologia da libertação latino-americana. O tema do seguimento de Jesus entra no final, coroando com êxito a reflexão de Pagola. O que Jesus deixou atrás de si foi o projeto de dar continuidade ao seu sonho de fraternidade. Não “pensou numa instituição dedicada a garantir no mundo a verdadeira religião. Jesus pôs em marcha um movimento de ´seguidores` que se encarregassem de anunciar e promover seu projeto do ´reino de Deus` (…). Por isso, não há nada mais decisivo para nós do que reativar sempre de novo, dentro da Igreja, o seguimento fiel à pessoa de Jesus” (p. 569).

Não há como ler este livro de Pagola sem se emocionar. Através do recurso de uma linguagem simples mas rigorosa consegue com felicidade apresentar o itinerário histórico de Jesus e provocar as entranhas de compaixão. É uma obra grandiosa e vai, certamente, deixar rastros importantes na reflexão sobre Jesus Cristo e a dinâmica de seu seguimento na história. Muito acertada e pertinente a decisão da editora Vozes em facultar o seu acesso aos leitores brasileiros.

 

 

Brigando por Cristo. Controvérsias sobre o livro de Pagola – Juan G. Bedoya – IHU On-Line: 17/03/2010

Chamava-se Yeshúa, e ele provavelmente gostava. O nome quer dizer Yahvé salva. Foi dado por seu pai no dia da circuncisão. Era um nome tão corrente naquele tempo que era preciso acrescentar algo mais para identificar bem a pessoa. Em seu povo, as pessoas o chamavam Yeshúa bar Yosef, Jesus, o filho de José. Em outras partes o chamavam de Yeshúa ha-notsrí, Jesus de Nazaré.

Se, como disse o poeta, o primeiro verso é dado pelos deuses, este primeiro parágrafo do primeiro capítulo do livro Jesus. Aproximação histórica destaca o estilo vibrante com que o teólogo Juan Antonio Pagola escreveu 569 páginas sobre o fundador cristão. O livro já vendeu 80.000 exemplares em castelhano, euskera e catalão, e foi traduzido para outros idiomas. É, como se costuma dizer, um best seller. Mas a hierarquia do catolicismo não gostou. A editora PPC, da congregação marianista, ordenou às livrarias religiosas que retirem os exemplares não vendidos. Os livros publicados em euskera pela editora-livraria diocesana Idatz e em catalão pela Claret continuam no mercado. No alvoroço estão implicados cardeais e bispos, aqui [Espanha] e em Roma, a favor e contra.

Os antigos escreveram que Jesus de Nazaré foi executado como um malfeitor porque estorvava os poderosos. Quando a sentença foi cumprida, fora de Jerusalém, junto a uma antiga pedreira, provavelmente no dia 07 de abril do ano 30, já estava claro que o sistema não suportava o empenho do nazareno em anunciar uma inversão da situação com seu programa sobre o reino de Deus e de uma nova justiça.

As disputas sobre o fundador cristão vêm de longe porque a hierarquia do cristianismo cunhou a imagem de um fundador celeste, e não quer controvérsias nem opiniões contrárias. O último exemplo é o Jesus de Nazaré do papa Bento XVI (o teólogo Joseph Ratzinger), publicado no ano passado, também um best seller. No próximo verão sairá o segundo volume e a hierarquia não quer rivais ou comparações, nem em vendas, nem doutrinalmente.

A principal disputa sobre Jesus se centrou em se o nazareno era filho de Deus e não um novo messias. Foi o elemento de exasperação para a hierarquia desde os tempos em que o Paulo de Tarso, autêntico secretário de organização dessa igreja, enfrentou o apóstolo Pedro no Concílio de Jerusalém, realizado em torno do ano 46. De lá para cá, e sobretudo desde o Concílio de Nicéia (em 325), onde o imperador Constantino impôs a paz teológica esmagando a cabeça dos seguidores de Ário, são incontáveis os teólogos que sofrem por ultrapassar as permissões do aparelho. Quando a sabedoria popular cunhou a expressão “Y se armó la de Dios es cristo!” [de difícil tradução, mas que faz referência à veemência com que cristãos e arianos defendiam as suas posições], se referia às consequências, às vezes sangrentas, desses enfrentamentos.

Pagola não discute o dogma de Niceia, mas seus detratores veem o seu Jesus muito humano. Alguns se atrevem inclusive a acusá-lo de ariano. Grande parte das correções introduzidas na nona edição do livro teve por objetivo espantar essa maledicência. Em todo o caso, o Jesus de Pagola não tem esposa nem filhos, come e bebe com pecadores, conversa com prostitutas e não vive preocupado com a impureza ritual. Tampouco tem rechaço algum à mulher, antes pelo contrário. E seu comportamento em sociedade era desconcertante. Nada a ver com o Jesus reinante entre a acomodada nomenclatura romana. Já o deixou escrito Dostoievski no capítulo quinto de Os Irmãos Karamazov, quando se encontram em um calabouço de Sevilha um prepotente Grande Inquisidor e o pobre nazareno crucificado.

O curioso nesta briga episcopal contra o Jesus de Pagola – é assim que esse livro já é conhecido – é que a edição retirada das livrarias, a nona, havia sido corrigida pelo autor para satisfazer a algum de seus censores, e foi publicado com o Nihil obstat et imprimatur do bispo de San Sebastián, Juan María Uriarte. Aconteceu no final do ano passado, antes que este fosse substituído no cargo por José Ignacio Munilla, de caráter mais conservador. O Nihil obstat (Não há impedimento) supõe uma aprovação oficial, do ponto de vista moral e doutrinal, de uma obra que quer ser publicada com as bênçãos eclesiásticas.

Antes de avalizar Pagola, Uriarte se assessorou por três teólogos destacados – entre eles o arcebispo emérito de Pamplona, Fernando Sebastián -, e consultou especialistas em cristologia no mesmíssimo Vaticano. Dois dos relatórios solicitados foram favoráveis ao nihil obstat, e um contrário. Nem por isso. Os críticos continuaram levantando a sua voz, até forçar a editora PPC a retirar o livro. Também cresceram as críticas mais severas a Uriarte por aprová-lo.

Não consta ordem expressa de retirar o livro, nem uma condenação pública sobre essa nona edição. Nem há, nem se espera. A razão é simples. A não ser que o Vaticano fale – a conhecida expressão: Roma locuta, causa finita (quando Roma fala, acabou a discussão), nas trincheiras desta batalha teológica e de poder há prelados de grande peso em cada lado. De um lado, intransigentes com tudo o que soa diferente ou distante, se elevam o cardeal de Madri, Antonio María Rouco, com o poder que lhe confere a presidência da Conferência Episcopal, e o secretário porta-voz desta, o jesuíta Juan Antonio Martínez Camino, também bispo auxiliar de Rouco no arcebispado; do outro, estão prelados que já passaram pela organização episcopal, como o próprio Uriarte, durante anos membro de seu Comitê Executivo, e inclusive o arcebispo Fernando Sebastián, o teólogo preferido do mítico cardeal Tarancón e ex-vice-presidente da Conferência de prelados durante muitos anos.

Em ambas as trincheiras se expressou também o mais notável da atribulada teologia espanhola e levantaram a voz as igrejas de base e o ativo Fórum de Padres. “Queremos manifestar a nossa recusa e indignação ante o fato de que o fazer teológico de um companheiro padre e teólogo volta a ser proscrito, ele que ajudou tantas pessoas simples e comunidades cristãs. Produzem em nós especial e desagradável surpresa as desautorizações entre bispos de mais alto nível”, disse este fórum em um manifesto, na semana passada.

Outro clamor a favor do teólogo guipuzcoano se ergueu em sua própria diocese, a cargo da maioria de seus sacerdotes (252, sobre um censo de cerca de 300). Em uma carta pública o clero expressou sua solidariedade com Pagola e denunciou que este sofre “perseguição e maus tratos”. O ex-vigário dessa diocese, Félix Azurmendi, inclusive publicou no El Diario Vasco, em San Sebastián, um artigo com o título Queremos a verdade, acusando os “setores mais conservadores da Igreja” de perseguir um livro que “ajuda a crer”, e criticando “o modo obscurantista” utilizado. Azurmendi conclui com uma exigência de explicação pública porque, afirma, “a diocese de San Sebastián merece respeito”.

Apesar da atual virulência destas disputas, o conflito remonta ao inverno de 2007, quando a Congregação para a Doutrina da Fé na Espanha (o ex-Santo Ofício da Inquisição) anunciou que estava preparando uma Notificação de censura contra Pagola. Objetivo: desativar os efeitos do livro e frear a sua vertiginosa difusão.

Como Pagola não é um eclesiástico qualquer, aquele propósito teve que superar não poucos obstáculos. José Antonio Pagola (Añorga, Guipúzcoa, 1937) estudou Teologia e Ciências Bíblicas na Universidade Gregoriana de Roma, no Instituto Bíblico Romano e na École Biblique de Jerusalém, e desempenhou o cargo de vigário-geral da diocese de San Sebastián, com o bispo José María Setién. Continua sendo diretor do Instituto de Pastoral guipuzcoano, com Munilla como novo bispo diocesano. É autor de cerca de 20 livros – entre os últimos, Salmos para rezar a partir da vida (2004) e Jesus diante da mulher (2006).

Foi o então bispo de Tarazona – transferido mais tarde para Córdoba -, Demetrio Fernández, quem levantou pela primeira vez a voz contra Pagola. Licenciado em Teologia Dogmática na Pontifícia Gregoriana de Roma e ex-professor de Cristologia no Instituto Teológico San Ildefonso de Toledo, este prelado é membro da Comissão Episcopal para a Doutrina da Fé, encarregada de velar pela reta doutrina na Espanha. Mas sua execração contra Pagola não foi um documento oficial. A diatribe foi publicada apenas no boletim diocesano de Tarazona, com o título O livro de Pagola será prejudicial. Aconteceu no Natal de 2007. Dizia: “Me preocupa profundamente o fato de que este livro se difunda tanto. O Jesus de Pagola não é o Jesus da fé da Igreja. É um livro que se lê com gosto pelo belo estilo literário de seu autor, mas semeará confusão, também na minha diocese, pequena e humilde, que vive influenciada pelos fenômenos de massas”.

O bispo da comissão doutrinal já então temia o sucesso de vendas. “Recebo notícias de que o livro de J. A. Pagola está vendendo feito água. Inclusive em uma das minhas visitas pastorais quiseram me presenteá-lo como o melhor dos presentes”. Concluía seu raciocínio animando “outros, pastores ou teólogos”, para que se ocupassem de um livro “que tanto mal pode fazer aos nossos fiéis, sobretudo os mais simples”.

O veto ficava aberto. Aumentaram os escritos contra Pagola, alguns promovidos a partir da Conferência Episcopal, mas também os apoios, em uma onda crescente que o próprio Pagola se viu obrigado a responder. “São muitos os que me perguntam como estou e o que está acontecendo (…) Estou escutando do meu interior as palavras de Jesus aos seus seguidores: não julgueis ninguém… Não condeneis ninguém. Perdoeis. Conheço bem os sentimentos de Jesus. Por isso rezo pelos que não me aceitam. Faço-o com nomes e sobrenomes. Penso verdadeiramente que, no fundo, não sabem o que estão fazendo”.

Aquele Jesus. Aproximação histórica tinha 539 páginas; o corrigido depois para satisfazer os censores, sem sucesso, chegou a 569 páginas. As primeiras oito edições rapidamente se esgotaram e sem o nihil obstat eclesiástico. Se a Editora PPC não retirou o livro na época foi porque ninguém o pediu. Também não recebeu indicação alguma agora, ao menos não de forma direta. Pertencente ao grupo SM, da Congregação Marianista, a PPC faz parte de um rentável aglomerado editorial com forte presença na América Hispânica. Edita também livros de texto e a prestigiosa revista cristã Vida Nueva, que lançará nesta primavera edições em vários países latino-americanos. Seu diretor, o sacerdote Juan Rubio Fernández, acaba de publicar um livro à maneira do famoso Diario de um padre rural. O capítulo intitulado “Mais diálogo e comunhão” começa com a famosa máxima de santo Agostinho: “Nas coisas necessárias, a unidade; nas duvidosas, a liberdade; e em todas, a caridade”. O padre do livro de Juan Rubio, assim como Pagola em sua carta de queixa, também sente saudades de uma igreja “lar de comunhão e não um quartel blindado”.

Uma condenação expressa da moderna inquisição espanhola ao Jesus de Pagola, com a complacência de Roma, teria retirado o livro das estantes, como aconteceu com a nona edição, apesar de esta contar com o nihil obstat do prelado de San Sebastián. Por que não foi feito? Qual foi o papel do novo bispo de San Sebatián, o forte Munilla, nesta história? Não há respostas, ao menos no momento. Munilla silencia. É impensável que vá desautorizar o seu predecessor, mas também não irá apoiar Pagola. Mas se reuniu com o teólogo censurado, sem transcendência pública alguma, e no momento o mantém no cargo de diretor do Instituto diocesano de Pastoral.

A realidade nua e crua para a hierarquia conservadora é que, como temia o bispo Demetrio Fernández, as tribulações do livro aumentaram a sua difusão, já extraordinária então para um texto de teologia. Nem sequer pôde neutralizá-la a Comissão para a Doutrina da Fé da Conferência Episcopal quando decidiu, em junho de 2008, tornar pública a sua “nota doutrinal” (eufemismo para censura) acusando Pagola de “tergiversar” o sentido da vida de Jesus. Presidida então pelo cardeal de Valência, Agustín García Gasco, já aposentado, a comissão assinalava três deficiências “principais” da obra: “a ruptura que, de fato, se estabelece entre a fé e a história”; “a desconfiança em relação à historicidade dos evangelhos”, e “facilitar a leitura da história de Jesus a partir de pressupostos que acabam tergiversando-a”. Também assinalava como deficiências doutrinais “a apresentação de Jesus como um mero profeta”; a negação de sua consciência filial divina, e a negação do sentido redentor dado por Jesus à sua morte, entre outras.

Frente a essas execrações, abundam os bispos que veem muitos méritos e virtudes no Jesus de Pagola. Mas ninguém o defendeu tanto quanto seu superior hierárquico, o já emérito Uriarte. Ele o fez em diversos lugares, por exemplo, na Universidade de Deusto (diante de todos os segmentos da sociedade basca), e em conferência na Tribuna Euskadi do Fórum Europa. Segundo Uriarte, o livro é uma “tentativa séria de aproximação histórica, honesta, documentada e bem feita”. Também disse que tomou a decisão de apoiar a publicação com o nihil obstat “com todo o coração e a alma”.

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