O Festival do Ano Novo na Babilônia herdou seu nome, Akitu, de um festival agrário sumério do III milênio a.C., o Akiti, celebrado na época da colheita e da semeadura da cevada.
Dois festivais do ano novo eram celebrados na cidade de Babilônia: um durante o primeiro mês do ano, Nisannu (março-abril), na primavera, e o outro durante o sétimo mês do ano, o Tashritu (setembro-outubro), no outono. São dois momentos importantes no calendário agrícola da Mesopotâmia: em Nisannu começavam as colheitas e em Tashritu os campos eram arados e semeados.
A duração do festival variava de cidade para cidade, obedecendo particularidades cultuais e sociais. A festa celebrada no mês de Nisannu é a melhor preservada em escritos recuperados da época helenística. Vamos ver como ela acontecia na cidade de Babilônia.
São 12 dias de festa.
No primeiro dia da festa, o primeiro dia do mês de Nisannu, ao amanhecer, o mubannû (oficial que organizava a mesa de oferendas) descia ao pátio de Marduk com uma chave. Com essa chave, o sacerdote abria o acesso a uma cisterna e jogava algo nela. Enquanto isso, animais para o sacrifício eram entregues no templo Akitu, e os deuses de fora da Babilônia se preparavam para viajar para a capital.
No segundo dia do mês de Nisannu o sumo sacerdote de Marduk (aḫu-rabû = irmão mais velho) levantava-se antes do nascer do sol, banhava-se no rio, dirigia-se ao templo do deus, o Eságil, retirava a cortina que cobria a estátua de Marduk e recitava uma oração. Depois abria as portas do templo e o pessoal do culto (ērib-bītis, os cantores e os sacerdotes das lamentações) entrava para realizar suas tarefas cotidianas. Enquanto isso, os principais deuses de Borsippa, Sippar e Uruk se preparavam com elaboradas cerimônias de vestimenta, o que indicava sua partida iminente no quinto dia.
No terceiro dia o sumo sacerdote recitava uma oração para Marduk e depois deixava entrar o resto do pessoal, tal como fizera no dia anterior. Algumas horas depois, um grupo de artesãos chega ao templo e o sumo sacerdote lhes dá pedras preciosas, ouro e madeira procedentes do tesouro de Marduk para que eles confeccionem estatuetas que serão utilizadas no sexto dia da festa.
No quarto dia, depois da purificação ritual no rio, o sumo sacerdote abria a cortina que protegia as estátuas de Marduk e de sua esposa Zarpanítum e recitava uma série de orações. Mais tarde neste dia o Enuma Elish era recitado do começo ao fim pelo sumo sacerdote. Enquanto isso, o rei se dirige de barco a Borsippa, onde está a estátua do deus Nabú, filho de Marduk. Ele a acompanhará até Babilônia.
No quinto dia o sumo sacerdote repete os rituais dos dias anteriores: purificação no rio, orações diante de Marduk e Zarpanítum e abertura das portas para entrada do pessoal do templo. Em seguida chega um exorcista que purifica o templo de Marduk com incenso e água procedente dos rios Tigre e Eufrates. Purifica também a capela de Nabú que fica dentro do templo de Marduk. Unge as portas da capela com resina de cedro, deposita um incensório no centro da capela e espalha ervas aromáticas. Em seguida, um açougueiro mata uma ovelha cortando-lhe a cabeça e o exorcista purifica o templo com o corpo de animal enquanto recita um exorcismo. Depois ele se dirige ao rio e atira o corpo do animal na água, o mesmo sendo feito pelo açougueiro com a cabeça da ovelha. Depois disto tanto o açougueiro quanto o exorcista abandonam a cidade até o final da festa. O sumo sacerdote cobre a capela de Nabú com um dossel dourado, faz uma oração a Marduk e prepara uma série de oferendas alimentícias. Na sequência o rei, que presumivelmente trouxe Nabú de Borsippa para Babilônia, é escoltado até o Eságil, onde o sumo sacerdote o priva de todos os símbolos do poder real – como o cetro, a cimitarra, o anel e a coroa, deixados diante de Marduk – e o leva diante de Marduk. Ali o sumo sacerdote, golpeia o rosto do rei, o puxa pela orelha até que ele se ajoelhe, ou seja, o coloca na posição de um acusado. Então o rei se declara inocente, dizendo que não negligenciou os deuses, a cidade de Babilônia, o templo de Marduk e nem seus súditos. Depois deste ritual de penitência, o sumo sacerdote, que recita uma oração e garante ao rei que Marduk ampliará o seu senhorio, exaltará seu reinado e destruirá seus inimigos, restitui-lhe os símbolos de poder. Mas, ainda uma vez, dá outro tapa no rosto do rei: se este chora, Marduk está satisfeito; se não chora, Marduk está irritado e seu reinado corre perigo. O dia termina com um sacrifício de um touro branco, feito pelo rei e pelo sumo sacerdote.
No sexto dia Nabú é levado ao templo Ehur-sagtila onde as cabeças das estatuetas fabricadas pelos artesãos, no terceiro dia da festa, são cortadas e estas são queimadas na presença de Nabú. Depois Nabú é levado para o templo de Marduk e é colocado diante de Marduk, em um altar chamado “Altar dos Destinos”.
Nada sabemos do que acontecia no sétimo dia.
No oitavo dia o sumo sacerdote aspergia o rei e o público com água “sagrada” e, em seguida, a estátua de Marduk e as estátuas das outras divindades saem em procissão, indo do Eságil até um templo situado fora da cidade, chamado Akitu. Não sabemos o que ocorria durante a procissão e que tipo de cerimônia se celebrava no templo Akitu. É possível que fosse uma comemoração da vitória de Marduk sobre Tiámat – veja-se o Enuma Elish – quando os deuses que acompanhavam Marduk lhe ofereciam presentes e comemoravam sua vitória.
Nada sabemos do nono dia.
No décimo dia Marduk e os deuses continuavam reunidos em assembleia no templo Akitu.
No décimo primeiro dia os deuses retornam em procissão para Babilônia e, dentro do Eságil se reúnem Marduk, Nabú e os outros deuses e ali determinam os destinos do ano vindouro. Em seguida Nabú volta para Borsippa e temos lacunas sobre o que ainda acontecia na festa, talvez ocorresse alguma cerimônia de casamento ritual entre Marduk e Zarpanítum.
No décimo segundo dia a festa terminava.
O Akitu é um ritual de forte conotação política, no qual o rei exerce função importante.
O ano novo celebra, na primavera, a renovação da natureza. Com a representação da vitória de Marduk sobre Tiámat, como narrado no Enuma Elish – que era recitado – a ordem cósmica fica assegurada sobre a possibilidade do caos, e a ordem política, garantida pelo rei que é fiel a Marduk, é legitimada. O ano que está começando será de prosperidade.
Trechos de algumas das fontes usadas
A declaração de inocência do rei e a resposta do sumo sacerdote, em tradução de COHEN, M. E. The Cultic Calendars of the Ancient Near East. Bethesda, Maryland: CDL Press, 1993, p. 447:
I have not sinned, Lord of all Lands! I have not neglected your divinity!
I have not caused the destruction of Babylon! I have not ordered its dissolution!
[I have not . . . ] the Esagil! I have not forgotten its rituals!
I have not struck the cheek of those under my protection!
. . . I have not belittled them!
[I have not . . . ] the walls of Babylon! I have not destroyed its outer fortications!
(break of approximately five lines)
[… the High Priest recites:] […]Have no fear …
… which Bel has uttered …
Bel [listens to] your prayer, …
He will glorify your dominion, …
He will exalt your kingship, …
On the day of the eshesh-festival…
Cleanse your hands at the Opening-of-the-Door, …
Day and night …
He, whose city is Babylon, …
Whose temple is the Esagil, …
The citizens of Babylon, those under his protection, …
Bel will bless you … forever!
He will destroy your enemy, smite your adversary!
Diz CARAMELO, F. O ritual de Akitu – O significado político e ideológico do Ano Novo na Mesopotâmia. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n. 17, Lisboa, 2005, p. 160:
Em conclusão, podemos dizer que este festival constituía um ciclo ritual longo e complexo, apresentando duas dimensões complementares: uma privada e secreta e uma pública e colectiva. A primeira tinha lugar nos espaços reservados, como o templo ou a bit akiti, intervindo o rei e os sacerdotes; a segunda abrangia e envolvia a população da cidade, fazendo-a participar na renovação da ordem.
Dizem FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, p. 34:
Esta fiesta del Año Nuevo de primavera de la Babilonia del primer milenio tenía, como el Enuma Elish, un trasfondo político e ideológico. Posiblemente, el rey de Babilonia representaba simbólicamente a Marduk en su victoria sobre Tiámat. De la misma manera, el rey asumía el compromiso de preeminencia de Babilonia por encima de sus enemigos. Todo el ritual se enmarca en un periodo de renacimiento político de Babilonia empezado por Nabucodonosor I. Es en este momento cuando —posiblemente— se compuso el Enuma Elish. El retrato que tenemos de la fiesta del Año Nuevo en Babilonia ya nos presenta el estadio final del proceso de entronización de Marduk, por un lado, y la inserción del Enuma Elish dentro de un acto ritual concreto, por otro. La revolución teológica ya se ha producido, la composición del Enuma Elish fue una pieza más y su inclusión dentro de la fiesta más importante del calendario cultual de Babilonia significó la culminación de esta reforma religiosa, desencadenada por un nuevo orden político que intentaba imponer a Babilonia por encima de sus vecinos. Hay que destacar que los símbolos de Anum y Enlil se cubrían durante la recitación del Enuma Elish a lo largo del cuarto día. Este acto es la visualización de las contradicciones teológicas que desencadenó esta reforma religiosa. Los dioses principales, tradicionales del panteón sumero-acadio, no pueden «escuchar» ni «contemplar» la entronización en lo más alto del panteón de un recién llegado como es Marduk.
Diz VAN DER TOORN, K. The Babylonian New Year Festival: New Insights from the Cuneiform Texts and their Bearing on Old Testament Study. In EMERTON, J. A. (ed.) Congress Volume Louven 1989 [Thirteenth Congress of the International Organization for the Study of the Old Testament]. Leiden: Brill, 1991, p. 334-335:
The political significance of the festival is evident, too, from a number of attendant observations. The divine approval of the king was proclaimed on 4, 8 and 11 Nisan, all public holidays. Documents from Southern Babylonia show that officials from outlying areas assisted at the ceremonies as well. This was the time when the king decided about any necessary changes in the administration. According to Assyrian evidence, treaties regulating the royal succession could be concluded on the same occasion. In connection with the festival, amnesty was granted to political prisoners, as Jehoiachin was to experience. Such events are usually connected with the accession to the throne; we know, however, that the installation of a new king might take place at any appropriate time of the year and did not need to be postponed to the beginning of the new year. The Nisan ceremonies are a divine ratification of the royal mandate, annually renewed. In view of its propagandistic effects, it is no wonder that kings attached great importance to the uninterrupted occurrence of the festival, especially in the first full year of their reign.
NOTIZIA, P. Review of BIDMEAD, J. The Akitu Festival: Religious Continuity and Royal Legitimation in Mesopotamia. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2004:
Il capitolo sulla storia degli studi relativi alla festività per l’akitu è esemplare di quanto siano state contrastanti le teorie elaborate a partire dall’inizio del secolo scorso. In principio gli studiosi si concentrarono sul valore teologico del rito (Langdon, Zimmern) che si supponeva celebrare la morte e la resurrezione del dio (e l’identificazione tra l’antico dio Tammuz/Dumuzi con Marduk) o la “magia” dello hieros-gamos che infondeva fertilità alla terra per un nuovo anno. In seguito studiosi come Hooke e Frankfort evidenziarono lo stretto rapporto che legava le pratiche rituali per la festività del Nuovo Anno e gli eventi narrati nel mito dell’Enuma eliå, composto verso la metà del secondo millennio, che descrive l’ascesa di Marduk a sovrano degli dei, l’ordinamento dell’universo e la creazione dell’uomo; arricchirono inoltre le tesi fino ad allora elaborate con concetti nuovi quali quello di “dramma cultuale” e sottolinearono l’importanza del combattimento rituale del dio (Marduk) che trionfa sul Caos (Tiamat) riportando l’ordine nel mondo e quella del sovrano che presiedeva alla processione lungo la Via Sacra. T. Jacobsen successivamente affermò che ad un antico akÎtu di natura agreste (valore fondativo) era stato affiancato il tema della “battaglia cultuale”, trasformandolo in un nuovo veicolo per trasmettere l’ideologia politica e sancire il potere di Babilonia. Lo storico delle religioni Eliade si è soffermato sul valore della ciclicità del tempo, della morte e della rinascita all’interno del rito, suggerendo che la lettura del mito cosmogonico (Enuma elish) servisse a rigenerare il tempo, e contribuisse alla ciclica rinascita del mondo. Gli studiosi più recenti hanno evidenziato il valore sociale e politico della celebrazione dell’akitu, riconoscendo (Van der Toorn) una serie di “riti di passaggio” che portavano al rinnovamento non cosmologico, ma dell’ordine religioso, politico e sociale della Babilonia, mentre Pongratz-Leisten ha analizzato la processione dell’akitu, dimostrando come esigenze politiche e cultuali diverse portassero a celebrazioni differenziate da luogo in luogo.
Fontes
BIDMEAD, J. The Akitu Festival: Religious Continuity and Royal Legitimation in Mesopotamia. 2. ed. Piscataway, NJ: Gorgias Press, 2014.
CARAMELO, F. O ritual de Akitu – O significado político e ideológico do Ano Novo na Mesopotâmia. Revista da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, n. 17, Lisboa, 2005, p. 157-160.
COHEN, M. E. The Cultic Calendars of the Ancient Near East. Bethesda, Maryland: CDL Press, 1993, p. 400-453.
DEBOURSE, C. Of Priests and Kings: The Babylonian New Year Festival in the Last Age of Cuneiform Culture. Leiden: Brill, 2022.
FELIU MATEU, L. ; MILLET ALBÀ, A. Enuma Elish y otros relatos babilónicos de la Creación. Madrid: Trotta, 2014, p. 31-35.
LINSSEN, M. J. H. The Cults of Uruk and Babylon: The Temple Ritual Texts as Evidence for Hellenistic Cult Practice. Leiden: Brill, 2004, p. 78-84.
PONGRATZ-LEISTEN, B. Festzeit und Raumverstandnis in Mesopotamien am Baispiel der akitu-Prozession. Kodikas / Code Ars Semeiotica, vol. 20, n. 1-2, Tübingen, 1997, p. 53-67.
SOMMER, B. The Babylonian Akitu Festival: Rectifying the King or Renewing the Cosmos? The Journal of the Ancient Near Eastern Society, vol. 27, 2000, p. 81-95.
VAN DER TOORN, K. The Babylonian New Year Festival: New Insights from the Cuneiform Texts and their Bearing on Old Testament Study. In EMERTON, J. A. (ed.) Congress Volume Louven 1989 [Thirteenth Congress of the International Organization for the Study of the Old Testament]. Leiden: Brill, 1991, p. 331-344.
Recursos online
Akitu Festival