Marcos: um relato da prática de Jesus

Leia primeiro aqui.

Este é um texto mais curto do que o anterior e em linguagem mais simples, que foi preparado em 1981 para ser usado pelo Serviço de Pastoral Litúrgica da Arquidiocese de Ribeirão Preto em 1982 e que fez parte do Projeto Marcos, um conjunto de atividades pastorais tendo o evangelho de Marcos como centro. O projeto foi estudado na reunião do clero em setembro, em Brodowski, e aprovado na reunião da Coordenação de Pastoral no dia 16 de setembro de 1981 com a presença do arcebispo Dom Bernardo José Miele. O texto da revista Estudos Bíblicos da postagem anterior é mais longo e a abordagem mais acadêmica, mas neste aqui a proposta de leitura de Marcos é a mesma.

Chegar em Marcos de que lado? Geralmente a gente começa pelo autor, data e lugar  em que o livro foi escrito, e as pessoas para quem o autor escreveu. Só depois é que se vai ao texto. 


Vamos percorrer outro caminho. Não é atalho não. Talvez seja até mesmo dar volta. Mas deve valer a pena. Vamos começar pelo texto. Depois que compreendermos o texto e a maneira como foi criado, vamos compreender o resto. É uma proposta.

1. Narrando um prática
De entrada uma coisa chama a nossa atenção em Marcos. Ainda no início do evangelho, Mc 1,21-22, diz o texto: “Entraram em Cafarnaum e, logo no sábado, foram à sinagoga. E ali ele ensinava. Ficaram encantados com o seu ensino, porque lhes ensinava com autoridade e não como os escribas – (os doutores da Lei)”.

Logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus. E o que é que ele ensinava? O texto não diz. Casos como esses vão se repetir por todo o evangelho (Marcos só indica o conteúdo deste ensinamento ou pregação quando trata da paixão (8,31; 9,31) e de ensinamentos particulares (capítulos 11-12). O que significa isto?

É que o texto de Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com seu discurso (seu ensinamento). A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de “palavras” ou de “discursos” de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. E podemos esclarecer: para Marcos a atuação concreta de Jesus, sua prática é que é seu ensinamento. A boa nova não é um ensinamento só em palavras, mas um ensinamento através de determinadas ações concretas.

2. Os atores do texto
Então, percebendo isto, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do personagem principal do texto, que é Jesus. E também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao redor de Jesus ao longo desses 16 capítulos.

Quem são esses personagens?

O personagem principal, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se seus seguidores, os discípulos. Por sinal, o Jesus de Marcos é sempre um Jesus com os discípulos, menos em duas ocasiões; quando os discípulos partem em missão e quando Jesus é preso. Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da barricada, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, chefes dos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus inimigos, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Agora, começando pelo início do evangelho, podemos observar como é que se movimentam estes personagens na construção do texto de Marcos.

3. Caminho programático
Mc 1,1 é o título do livro. Um título que é uma confissão de fé, uma afirmação que Marcos vai demonstrar ao longo dos 16 capítulos. Jesus é confessado como o Cristo e como o Filho de Deus.

Mc 1,2-15, a introdução do evangelho, nos oferece três destaques que vale a pena anotar:
1. Observamos, em primeiro lugar, a importância da voz: do profeta, de João, do céu, de Jesus. A voz do céu interrompe de vez a de João, que desaparece e autoriza a voz de Jesus. Sua pregação começa já nos vv. 14-15.
2. Há, neste início de evangelho, um caminho geográfico seguido por Jesus: Galileia – Judeia – Galileia. Este caminho é programático, ou seja, é o programa geográfico de todo o evangelho. Antecipa, programando, o caminho seguido por Jesus: atuação na Galileia – na Judeia – volta à Galileia, ressuscitado. É bom a gente notar, desde já, que esta geografia de Mc é artificial, não é real.
3. A descida do Espírito inicia um tempo novo, que será o tempo da atuação de Jesus.

4. Um dia de Jesus na Galileia
Mc 1,16-45 descreve um dia de Jesus na Galileia, num arranjo artificial de Marcos. E, neste primeiro dia do texto, já são definidas várias posições:
1. Jesus situa-se em um grupo, para começar a ação própria de sua missão. Este primeiro grupo é formado por seus discípulos Simão, André, Tiago e João, filhos de Zebedeu. Todos pescadores, galileus, gente pobre e marginalizada na sociedade israelita. Esta ação de Jesus acontece em Cafarnaum e arredores, atingindo pouco a pouco toda a Galileia.
2. A ação de Jesus é de três tipos:

  • ensinamento novo, com autoridade
  • expulsão dos espíritos impuros
  • curas

3. Esta ação de Jesus provoca uma estratégia da multidão, isto é, ela usa certos meios para conseguir seu objetivo: procurar Jesus. E Jesus responde com outra estratégia: evitar a multidão, ficando fora das cidades.

5. A subversão da ideologia judaica
Mc 2,1-3,6 vai apresentar cinco controvérsias (discussões) de Jesus com os escribas e os fariseus. A ação de Jesus provoca duas leituras da realidade, duas maneiras diferentes de ver a realidade:

  • a dos seus adversários, que querem guardar a ideologia judaica, e que seguem a Lei e os esquemas sociais da época
  • e a do próprio Jesus, que está baseada num esquema novo: a chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa.

Observamos, portanto, nestas cinco controvérsias, que:
1. A ação de Jesus é sistematicamente apresentada como subversiva da ideologia judaica
2. Os inimigos de Jesus, representados pelos escribas, fariseus e herodianos, utilizam a estratégia da tentação (= provocação), que chega ao máximo na decisão de matá-lo
3. Este conjunto de textos é excelente para mostrar como cada um interpreta os acontecimentos de acordo com o lugar que ocupa na sociedade (“Cada um puxa a brasa para a sua sardinha”, diz o ditado).

Mc 3,6 termina uma primeira parte do texto e está na hora de fazermos um balanço do que aconteceu até aqui. Relendo Mc 1,2-3,6 anotamos quatro coisas importantes:
1. A voz do céu em 1,11 é dirigida a Jesus. Ele é eleito por Deus, que lhe dá a capacidade para sua missão.
2. Em 1,14 Jesus inaugura as suas atividades, começando uma série de ações que provocam algumas perguntas entre os seus ouvintes:

  • Quem é Jesus?
  • Com que autoridade ele age?
  • Será que chegou o momento da intervenção definitiva de Deus na história dos homens?

3. Os adversários analisam a ação de Jesus a partir de seus esquemas sociais e legais. Jesus apresenta suas ações como subversivas da ideologia judaica e as analisa segundo um esquema novo: da chegada do reino de Deus, dentro do qual ele se situa. Isto leva os adversários a decidirem a sua morte.
4. Qual é a estratégia de Jesus? Ele não quer que sua messianidade seja revelada pelos demônios. Estes, como seres não humanos, sabem quem ele é. Também a multidão não deve divulgar que Jesus é o Messias.

6.  Mc 3,7-8,30: Jesus é o Messias, dizem os discípulos
A partir de Mc 3,7 o texto sofre uma reviravolta: começa aqui uma distinção clara entre a multidão e os discípulos: “Jesus retirou-se com os seus discípulos” e a multidão o seguia. Esta separação entre os dois grupos vai sendo realizada progressivamente até chegar ao máximo em 8,29 com a confissão de Pedro reconhecendo Jesus como o Messias. O barco, usado a partir deste momento, será um elemento fundamental para definir o círculo “Jesus + discípulos” que se distancia, geográfica e estrategicamente, da multidão. Mc 3,7-12 é uma espécie de programa do texto que vai até 8,30, onde termina a primeira parte do evangelho de Marcos.

Olhando do alto, podemos anotar em Mc 3,7-8,30 seis elementos de destaque:
1. O barco é um elemento de união destes trechos narrativos. Ele aparece em 3,9 e desaparece em 8,14.
2. Os personagens principais que tomam conta do texto são: Jesus, a multidão e os discípulos. Os adversários aparecem bem menos.
3. O texto separa claramente o ensinamento à multidão e o ensinamento aos discípulos. Somente os discípulos saberão ler as práticas de Jesus como sendo práticas messiânicas.
4. Observando-se o texto, vemos as várias leituras feitas a partir da ação de Jesus. Vê-se também a sua estratégia como resposta a estas leituras. Assim parece que o tema central aqui é o segredo messiânico, elemento fundamental no evangelho de Marcos.
5. Relendo a estratégia de Jesus:

  • em relação aos inimigos: ele evita as cidades; entra às escondidas; deixa-os e vai para outro lugar. O motivo: os adversários querem matá-lo.
  • em relação à multidão: às pessoas curadas por ele (e aos demônios) ele proíbe de falar, para evitar um messianismo político. Por outro lado, ele não rejeita a multidão. Está no meio dela, curando e ensinando. Mas, em geral, ele se afasta quando há um número exagerado de pessoas.
  • em relação aos discípulos: formam um círculo ao redor de Jesus e ele age e ensina-lhes separado da multidão. Insiste para que o reconheçam como o Messias.

6. Mc 8,27-30 é o miolo do evangelho. O barco é substituído pelo caminho. Os discípulos ao redor dele, passam a ser os discípulos que o seguem. Jesus, finalmente, faz diretamente aos discípulos a primeira pergunta:”Quem dizem os homem que eu sou?” E separa claramente a multidão e os discípulos: “E vocês, quem dizem que eu sou?” A resposta de Pedro é fundamental: “Tu és o Messias”. Só os discípulos chegam a compreender a ação de Jesus como messiânica. Pedro é o símbolo dos cristãos de todos os tempos.

7. A subida a Jerusalém
Mc 8,31-10,52 é o passo seguinte. A partir de 8,31 Jesus estará preocupado em mostrar aos seus discípulos que o caminho seguido por ele é diferente da esperança messiânica israelita na libertação do poder romano. Podemos resumir isto em quatro pontos:
1. A partir da confissão feita pelos discípulos, reconhecendo o messianismo, Jesus vai explicar-lhes que tipo de Messias ele é: não um Messias glorioso e rei poderoso, como esperavam os judeus, mas um Messias que sofre e morre na cruz, ressuscitando em seguida.
2. Este ensinamento é dado em parte na Galileia (estar ao redor de Jesus) e em parte no caminho para Jerusalém (seguir Jesus).
3. A subida para Jerusalém mostra uma estratégia precisa de Jesus: ele vai se colocar frente a frente com o pensamento judaico, representado pelos sumos sacerdotes, anciãos, escribas e saduceus.
4. Jesus propõe uma prática messiânica e eclesial oposta à maneira de pensar e de agir da sociedade da época: eles querem dominar, Jesus manda servir; querem guardar a vida para si, Jesus manda perdê-la; querem ser ricos, Jesus prefere a pobreza; fazem de tudo para serem os primeiros, Jesus prefere os últimos; eles querem parecer adultos, Jesus pede para que se tornem como crianças.

8. A rejeição definitiva do judaísmo
Mc 11,1-13,37 mostra o confronto de Jesus com o centro do poder judaico, em Jerusalém, no Templo. Confronto que vai acabar na rejeição definitiva do judaísmo por parte de Jesus e de Marcos. É que devemos pensar que Marcos se preocupa com a vida da comunidade em Antioquia ou na Galileia (talvez em Roma), para a qual ele escreve seu evangelho por volta de 70 d.C. Resumindo em três pontos, observamos que:
1. Nestes textos Jesus age e ensina no Templo, centro do poder religioso judaico. Só que durante a noite ele se retira de Jerusalém para os povoados vizinhos, onde certamente está mais seguro.
2. A prática e o ensinamento messiânicos de Jesus rejeitam o judaísmo em favor de uma abertura do cristianismo aos gentios (os não-judeus). E isto porque os judeus primeiro rejeitam o Messias. Esta abertura ao mundo gentio acontecia nas primeiras comunidades. Seu grande teórico foi Paulo de Tarso, que defendia a salvação também para os gentios que não viviam debaixo da Lei e das obrigações judaicas.
3. O Templo de Jerusalém, simbolizado pela figueira que nada produz, será destruído no ano 70 por Tito, general romano. Marcos mostra que isto é uma consequência da rejeição do Messias pelos sumos sacerdotes, escribas e anciãos.

9. Abandonado por todos, Jesus é executado como rebelde
Mc 14,1-16,8 conta os últimos acontecimentos vividos por Jesus em Jerusalém: é o momento da sua prisão, morte e ressurreição. Vejamos como isto nos é contado por Marcos:
1. É o momento do encontro final entre “Jesus + discípulos” com os adversários. Isto só é possível na medida em que um discípulo, Judas Iscariot, passa para o outro lado e o entrega.
2. Não é só Judas quem o nega. Também Pedro o faz. Mas há uma diferença essencial nas duas rejeições: Pedro nega em palavras, mas não o faz de fato; Judas não o diz, mas faz.
3. O texto tem a preocupação constante de mostrar que Jesus caminhou conscientemente para a sua morte: é a única maneira de abafar o escândalo de seu fracasso, transformando-o em vitória.
4. A partir de sua prisão, Jesus é levado passivamente de um lado para outro, em flagrante contraste com sua atitude tão autônoma e independente quando demonstrava o seu messianismo através de variados sinais.
5. Os seus adversários não aparecem como indivíduos, ninguém é chamado pelo nome, mas são vistos como classe, defensores da ordem judaica. Diante deles, Jesus declara claramente o seu messianismo. Todo o processo é descrito como uma farsa e Pilatos condena Jesus como se fosse zelota, agitador político, “rei dos judeus”.
6. Contra Jesus unem-se o poder judaico, os romanos e a multidão. Multidão nacionalista que prefere libertar um dos seus líderes zelotas. Jesus está complemente só.
7. O evangelho de Marcos termina em 16,8. Não se sabe, segundo seu texto, das aparições de Jesus ressuscitado. As mulheres que encontraram o túmulo vazio nada contam a ninguém. Parece que Marcos esperava a volta definitiva do Messias na Galileia, para breve. O texto se abre para o mundo gentio (não-judeu). Mais tarde, a comunidade, que não entendeu estar completo o texto até Mc 16,8, acrescenta-lhe os vv. 9-20.

10. Quem é o autor do texto?
A tradição identificou o autor com João Marcos, judeu de Jerusalém (At 12,12), companheiro de Paulo e Barnabé (At 12,25;13,5.13;15,37-39), também companheiro de Pedro em Roma (1Pd 5,13).

Mas é preciso tomar cuidado com estas afirmações. O autor foi um cristão da segunda geração cristã! Só isto é que sabemos com toda certeza.

Marcos é o primeiro evangelho a ser escrito, talvez por volta do ano 70, em algum lugar do Império Romano, sendo Antioquia, na Síria, o lugar mais cotado. Ou talvez na Galileia ou mesmo em Roma. Escrito em grego, com um vocabulário simples e popular, Marcos tem como leitores, com certeza, uma comunidade composta em sua maioria de pobres e gentios.

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Roteiro para uma leitura de Marcos

O relato de uma prática: Roteiro para uma leitura de Marcos. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p. 11-21, 1989.

Convido o leitor para uma visita ao Evangelho de Marcos. E recomendo um roteiro para uma leitura contínua do texto. Mas, que critérios seguir?

Com frequência, a leitura que se faz do Evangelho procura a Palavra de Deus dirigida ao eu que leio, em cada passagem. E, sem mais, de tal passagem, tira-se uma mensagem, dita espiritual, que é imediatamente aplicada ao nosso tempo, para dar resposta aos nossos problemas.1

Tal leitura deve ser questionada, pois o texto funciona como um mecanismo que só adquire sentido quando olhado no seu conjunto. E também porque a sociedade em que o Evangelho foi escrito era muito diferente da nossa sociedade atual. Eram outras suas coordenadas econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Ora, o texto do Evangelho não escapa destas instâncias concretas onde foi produzido. Pelo contrário, ele se posiciona em relação a tais situações.2

Portanto, é preciso identificar o posicionamento do texto acerca de seu tempo, o tempo da comunidade, em Roma [observo hoje, em 2015: ou, mais provavelmente, em Antioquia; ou mesmo na Galileia], por volta dos anos 70, como também as atitudes assumidas por Jesus e seus seguidores, na Palestina, por volta do ano 30. Com isto, o leitor fica mais preparado para compreender e atualizar a mensagem evangélica.

Assim, proponho seguirmos os passos de Jesus e dos personagens que se movimentam ao seu redor, segundo o relato de Marcos. Descobriremos que a Boa-Nova foi anunciada em um contexto de intenso conflito e expectativa, e que o Evangelho foi escrito para preservar uma memória proibida que alimentava a luta dos oprimidos.3

O relato de uma prática
Olhando o Evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a atenção do leitor. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava4 na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram assombrados com o seu ensinamento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.

E o que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir ao longo do Evangelho, ou pelo menos, de parte dele, como, por exemplo, em Mc 2,13; 4,1-2; 6,2.6.34. Só a partir de 8,31 é que se indica mais clara e sistematicamente o conteúdo deste ensinamento, como em Mc 8,31; 9,31; 12,35 etc.

O que significa isto? É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de palavras ou de discursos de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.5

Os atores do texto
Então, a partir desta constatação, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do protagonista do texto, Jesus, e também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao seu redor ao longo desses 16 capítulos.

Quem são estes personagens? O protagonista, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se os seus seguidores: os discípulos/os Doze, que representam o Israel institucional, e aqueles que estavam o redor dele, que não pertencem ao Israel institucional.6

Por sinal, o Jesus de Marcos está sempre acompanhado por seus seguidores, exceto em duas ocasiões: quando eles partem em missão e quando Jesus é condenado e morto.

Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da trincheira, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, sumos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus adversários, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.

Um esquema para Marcos
E, de repente, aparece o problema da divisão ou esquema adequado a uma leitura do Evangelho de Marcos.

Cada autor apresenta um sistema diferente. Alguns dividem o Evangelho segundo um esquema histórico-geográfico, outros preferem uma divisão por temas, outros ainda evocam elementos literários para justificar esta ou aquela estrutura do texto. Muitos usam sistemas mistos.7

Há, entretanto, grande consenso  entre os especialistas quanto a ser Mc 8,27-30 o núcleo decisivo do Evangelho, dividindo-o em duas etapas.

O esquema deste roteiro pode ser representado por uma escada de dois lanços, cada um respondendo a uma questão fundamental, degrau por degrau:
1. Quem é Jesus?
2. Que tipo de Messias Ele é?

O patamar entre os dois lanços é ocupado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo (= o Messias)” [segue-se um desenho da “escada”].

O artigo prossegue com os seguintes tópicos:

  1.  A proposta do texto
  2. O anúncio da libertação
  3. Amostras da prática de Jesus
  4. A incompreensão dos adversários
  5. A incompreensão da família e dos conterrâneos
  6. A incompreensão dos discípulos
  7. Quem é Jesus? A definição dos discípulos
  8. A subida a Jerusalém: a opção de Jesus
  9. O confronto com o poder judaico
  10. Jesus frente à morte: derrota ou vitória?

A bibliografia utilizada no artigo, que tem 22 notas de rodapé, foi a seguinte:

ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista: Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988.
BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975.
BRAVO GALLARDO, C. Jesús, hombre en conflicto. El relato de Marcos en América Latina. Santander: Sal Terrae, 1986.
CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977.
CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978.
DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982.
KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982.
LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d.
MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982.
METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981.
PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980; parte seconda, Brescia: Paideia, 1982.
TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979.
VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. RIBLA, Petrópolis, n. 1, 1988.

Notas de rodapé

1. Um dos resultados mais desastrosos da leitura idealista da Escritura é a fuga da realidade e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc. O espiritualismo é fruto deste processo: ao considerar o espírito superior à matéria, ele ignora os vínculos materiais através dos quais os homens se relacionam concretamente e conduz ao isolamento individualista e à negação da história. Entretanto, distingo aqui entre espiritual e espiritualismo. Para o sentido positivo da chamada leitura espiritual da Escritura, cf. VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em Ribla n. 1, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo 1988, Vozes/Metodista/Sinodal, p. 36-37.

2. Geralmente atribui-se a autoria do evangelho em questão a João Marcos, judeu de Jerusalém, companheiro de Paulo e Barnabé e também de Pedro, em Roma. Mas o texto mesmo não menciona o nome de seu autor: é a tradição que atribui este Evangelho a Marcos (cf., por exemplo, o testemunho de Papias, do século II) O que é certo, entretanto é só isso: o autor foi um cristão da segunda geração. Quanto ao local e data de composição alguns estudiosos de Marcos defendem, apoiados em certos indícios do próprio texto, que o Evangelho foi escrito, talvez em Roma, para uma comunidade cristã predominantemente gentia, por volta dos anos 70 [anoto em 2015: Antioquia, na Síria, ou mesmo a Galileia, são locais hoje considerados mais prováveis]. Cf. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d (original alemão, 1972), p. 141-145; KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 112-117.

3. “Não é por acaso que a destruição de recordações é uma medida típica da dominação totalitária. A escravização do homem começa com o fato de se lhe tirarem as recordações. Toda a colonização tem aí o seu princípio. E toda insurreição contra a opressão nutre-se da força subversiva do sofrimento recordado. A memória do sofrimento opõe-se, sempre de novo, aos cínicos modernos do poder político” (METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 128).

4: O verbo didáskein = ensinar, é usado por Mc 17 vezes; dessas, 15 descrevem a  atividade de Jesus. O ensinamento de Jesus acontece só em ambiente judaico, pois implica uma doutrina exposta a partir da Lei (Torá), enquanto a proclamação da Boa-Nova (kêrússein = proclamar, 14 vezes em Mc), nunca se situa na Judeia e em Jerusalém, mas na Galileia e entre os gentios. A proclamação é para os judeus (fora de Jerusalém) e para os gentios, o ensinamento é só para os judeus. Cf. MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24-25.

5. Cf. BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 326-356; CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 163; CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 81-82.

6. J. MATEOS, em interessante estudo de 304 páginas, Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, distingue os dois grupos de seguidores mencionados e esclarece: ao ser chamado de Doze, o grupo simboliza o Israel escatológico-messiânico, a totalidade do povo, enquanto o conceito de discípulos expressa sua decisão de segui-lo. Sobre a relação entre os Doze/discípulos e os outros seguidores que estavam com Jesus, o autor demonstra que não há diferença de posição entre eles. Ambos estão próximos a Jesus, recebem a mesma missão, os mesmo avisos, as mesmas propostas. Cf. as conclusões das p. 247-258. Cf. também as opiniões dos autores que distinguem entre os Doze e os discípulos nas p. 9-20 [do artigo].

7. Cf., por exemplo, DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 32-38, que utiliza elementos literários e geográficos, em composição bastante harmoniosa. Ou DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 35, que oferece três organizações possíveis para o texto: segundo a geografia, segundo o desenvolvimento do drama, segundo as relações entre as pessoas.

Se por acaso, alguém ficou curioso querendo saber mais sobre esta abordagem de Marcos, vou propor outra coisa. Clique aqui.