Para entender o Oriente Médio, segundo Robert Fisk

Para entender o Oriente Médio… tente algumas leituras

A maior dificuldade para escrever com consciência histórica é que a história não terminou. Seja como for, se quiser entender a Al-Qaeda, por exemplo, tente o parágrafo seguinte:

“O homem do deserto não merece crédito por sua fé (…). Ele alcançou essa intensa condensação de si mesmo em Deus porque fechou os olhos ao mundo e a todas as complexas possibilidades latentes nele, que só o contato com a riqueza e as tentações pode trazer à tona. Alcançou uma fé confiável e poderosa, mas em campo tão estreito! Sua experiência estéril roubou-lhe qualquer compaixão e perverteu sua generosidade humana para com a imagem da perda na qual se escondeu (…). Vem daí um gozo na dor, uma crueldade que vale mais para ele que quaisquer bens. (…) Encontrou luxúria na abnegação, na renúncia, na autocontenção. Fez a nudez da mente tão sensual quanto a nudez do corpo. É possível que tenha salvo a própria alma, e sem risco, mas num duro egoísmo.”

É de T.E. Lawrence, em Seven Pillars of Wisdom: a Triumph (1926) [Os Sete Pilares da Sabedoria: Um Triunfo, Rio de Janeiro: Record, trad. C. Machado] – e que perfeição! Sempre lembro dessa passagem quando assisto aos videoteipes de Bin Laden. O campo estreito. A abnegação. A crueldade. Não concordo necessariamente com Lawrence, mas em trechos como esse, percebo-me refletindo cada vez mais profunda e intensamente sobre suas palavras.

Digo isso porque, várias vezes por ano, leitores do Independent pedem-me que sugira “uma lista de leituras” de livros em inglês sobre o Oriente Médio. Não é fácil. A maior dificuldade para escrever com consciência histórica sobre o Oriente Médio é que a história não terminou. A guerra continua. Os dois “lados” – de fato há muitos, muitos lados – produzem narrativas conflitivas. E não aceito a ideia de que se possa oferecer uma lista equilibrada de livros. Há a versão de Israel. Há a versão dos árabes. Há a versão alucinada dos norte-americanos etc. O Oriente Médio é questão de injustiça. Quem contará melhor a história?

No que tenha a ver com a disputa árabes-israelenses, os dois incomparavelmente melhores livros são The Arab Awakening: the history of the Arab National Movement (Londres, 1938) de George Antonius, e The Gun and the Olive Branch (1977), de meu colega e amigo David Hirst. Antonius escreveu em 1938; Hitler já estava no poder há cinco anos – mas dez anos antes de os palestinos serem ativamente assaltados. – E escreveu que:

“O tratamento imposto aos judeus na Alemanha e em outros países europeus é uma desgraça para os autores e para a civilização moderna. A posteridade não perdoará nenhum país que não assuma a sua parcela de sacrifícios para aliviar o sofrimento e o desespero dos judeus. Impor toda a carga à Palestina árabe é miserável movimento de fuga ao cumprimento do dever moral que cabe a todo o mundo civilizado, além de ser moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo, como meio para aliviar a perseguição de outro. A cura para a expulsão dos judeus da Alemanha jamais será a expulsão dos árabes, de sua própria terra (…).”

Foi o primeiro sinal verdadeiramente eloquente do que estava para acontecer, e Hirst completou a narrativa das muito acuradas predições de Antonius, o primeiro autor, parece-me, a enfrentar o romance-lixo Exodus, com o qual Leon Uris agraciou o Estado judeu – para deleite de Ben Gurion, embora devesse ter pensado melhor –, ao desconstruir o “terrorismo”, sem romantizar os refugiados palestinos e seus movimentos de resistência.

Nesse mesmo contexto, deve-se lembrar o trabalho dos “novos historiadores” de Israel, que criaram uma narrativa complementar. Benny Morris foi o mais proeminente pesquisador israelense a provar que foi intenção de Israel expulsar os palestinos e arrancá-los de suas casas às dezenas de milhares em 1948. O fato de que, depois, Morris não tenha feito outra coisa além de reclamar que a limpeza étnica não tenha sido suficientemente eficaz e ampla não diminui a importância de seu trabalho anterior, seminal.

Dizem que F. R. Leavis, certa vez, iniciou um parágrafo com “Como qualquer leitor-que-preste de poesia sabe…”. Então, acho que podemos dizer que “qualquer leitor-que-preste” de livros sobre o Oriente Médio deve ler Edward Said. Um de seus melhores livros, aliás, é sobre música. Mas Orientalism [Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2003] sempre será necessário em qualquer lista. Said fez filosoficamente e historicamente, pela narrativa do Oriente Médio, o que Antonius fez politicamente. Não estou subestimando o trabalho político de Said – embora vários críticos tenham anotado que Said talvez não tenha levado n a devida consideração a vasta literatura “orientalista” que brotou na Itália, na Alemanha e na Rússia. Mas não o estou condenando como o condenaram Al Dershowitz e sua gangue.

A União Soviética, claro, sempre teve problemas com o Profeta, porque Maomé foi comerciante e burguês. Jesus Cristo, pelo menos, nasceu em família de trabalhador, embora não se saiba se José, carpinteiro, possa ser dito Stakhanovita recomendável. Mas devo dizer que o fato de Maria e José terem tido de viajar até Jerusalém para pagar impostos é absolutamente otomano, de tão burocrático. E que nenhum hotel aceitasse hospedar uma mulher grávida, sim, tem sabor de Oriente Médio. Mas, não, não! Não vá eu, agora, virar “orientalista”!

E há também esse brilhante pensador e jornalista libanês, o saudoso Samir Kassir – muito saudoso, porque foi assassinado há quase cinco anos, e a última coisa que vi dele foi o sangue ao lado do carro explodido – cuja monumental história de Beirute, em inglês, estará nas livrarias esse ano (admito: estou escrevendo o prefácio).

Tudo que você algum dia quis saber sobre Beirute – e muito, receio, que você preferiria jamais saber – está no livro de Kassir. Ele lembra como, há cem anos, um jovem capo di capo cristão – um Costa Paoli – tinha o hábito de beijar o rosto dos cristãos libaneses recém assassinados, antes de que fossem sepultados. Era homem elegante – “uma rosa na lapela e lenço perfumado no bolso do paletó”, segundo o professor Edward Atiyah –, e um gângster; vingava-se dos muçulmanos. Naqueles dias, havia milícias e grupos armados de apoio às comunidades cristãs e muçulmanas, e às vezes, havia briga de rua.

Exatamente como o meu colega David McKittrick descobriu que, na Belfast do século 19, as primeiras lutas de rua ocorreram nos mesmos locais onde aconteceram as batalhas dos anos 70s, assim também já se sabe que, na Beirute do século 19, os conflitos entre as milícias armadas aconteceram nos mesmos locais onde eclodiria a Guerra do Líbano de 1975.

Kassir é o primeiro autor cujo único personagem humano é uma cidade, em cuja bela e terrível história vêem os homenzinhos girando em rodas de tortura. Eu não sabia que o subúrbio onde reina o Hizbollah, Ouzai, recebeu esse nome para homenagear o velho divino Imã Ouzai; ou que o Partido Social Nacionalista Sírio – uma tediosa sociedade pan-árabe – inspirou-se, para criar sua bandeira vermelha, branca e preta (com penas cruzadas), nos nazistas; ou que o palavrão (em árabe) sharmut ou sharmuta – “puta” – e que hoje se usa a torto e a direito, surgiu da tão mais gentil e suave “charmante”, francesa. Lawrence e demais autores, por favor, anotem.

O artigo é de Robert Fisk e foi publicado em The Independent, Londres, em 13 de março de 2010: Robert Fisk’s World: Try this reading list if you want to understand the Middle East. Publicado no Brasil pelo Instituto de Cultura Árabe.

Fonte: Carta Maior: 23/03/2010

Dom Oscar Romero

O arcebispo de San Salvador, Dom Oscar Arnulfo Romero, foi assassinado em 24 de março de 1980.

Oscar Romero, um sinal de Deus para nosso tempo. Um depoimento de Luiz Carlos Susin

O Frei Luiz Carlos Susin está, neste momento, em El Salvador, onde participa do Simpósio “A los 30 años del martírio de Monseñor Romero: conversión y esperanza”. De lá, ele enviou, por e-mail, o artigo a seguir, publicado com exclusividade pela IHU On-Line. No texto, Frei Susin relembra momentos da vida de Dom Romero, assim rememora as causas da sua morte violenta. O legado do pensamento e da luta de Dom Romero também está presentes no depoimento. “De modo especial a juventude que nem mesmo o conheceu, e as crianças que intuem nele um pai a quem admirar, estão mobilizados para esta memória de trinta anos. Não porque a Igreja tenha instrumentos institucionais para mobilização, mas por causa desta identificação entre o bom pastor e este povo que conheceu a violência e ainda conhece formas sociais de injustiças”, destacou.

Luiz Carlos Susin é frei capuchinho, mestre e doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na PUC-RS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, dentre as quais citamos “Teologia para outro mundo possível” (Paulinas, 2006).

Confira o depoimento.

Nesse dia 24 de março, por diferentes partes do mundo irá percorrer a memória da morte violenta de Dom Oscar Arnulfo Romero há precisamente 30 anos, em 24 de março de 1980. Enquanto muitos olhares se voltam para San Salvador, a capital do pequeno país de El Salvador, na costa do Pacífico da América Central, ter o privilégio de estar aqui, junto a grupos dos diversos continentes que chegam reverentes, e olhar in loco o significado desta memória trinta anos depois é comovente porque é surpreendente: este povo não seria o que agora é se Dom Oscar Romero não tivesse sido, naqueles anos difíceis, o arcebispo que tomou a defesa do povo em meio ao fogo cruzado entre as forças violentas do Estado e a guerrilha que lutava por outra ordem pública. O próprio Dom Romero, em sua grande sensibilidade, tinha dito que “com este povo não é difícil ser um bom pastor!”

E, de fato, ver gente do povo, famílias inteiras, chegar até a cripta da catedral onde repousam os restos mortais de Dom Romero ou então aos lugares de seu martírio, na pequena casa em que morou ou na capela do “hospitalito” em que foi abatido durante a celebração de uma Eucaristia na manhã da segunda-feira após um domingo de sermão indignado e recheado de “não matarás!”, pode-se ver o quanto este povo salvadorenho tenha sentido nele uma identificação e um amparo que, trinta anos depois, só fez crescer essa aliança pelo bem e pela paz. Quando Dom Romero disse, sabendo que seu assassinato seria questão de pouco tempo, que se o matassem ele ressuscitaria no povo salvadorenho, dizia uma convicção de fé que hoje podemos ver desbordar nessa cidade de San Salvador.

A Juventude el salvadorenha e Dom Romero

De modo especial a juventude que nem mesmo o conheceu, e as crianças que intuem nele um pai a quem admirar, estão mobilizados para esta memória de trinta anos. Não porque a Igreja tenha instrumentos institucionais para mobilização, mas por causa desta identificação entre o bom pastor e este povo que conheceu a violência e ainda conhece formas sociais de injustiças. É bem verdade que, depois que o partido do próprio mandante do assassinato de Dom Romero, o major Roberto D’Aubuisson, perdeu a presidência do país, ainda que detenha a maioria do parlamento e o poder da imprensa e do empresariado mais importante, agora é o próprio novo presidente de El Salvador, casado com uma brasileira que conheceu as Comunidades Eclesiais de Base no Brasil, que se adianta e ele mesmo e seu governo organizam parte das festas em memória de Dom Oscar, algo absolutamente novo, que cria maior espaço para que se realize o que o arcebispo queria: justiça e vida digna para o povo que sofria abusos por parte das elites ricas e poderosas e das forças militares que a apoiavam. Não que ele concordasse com a violência da guerrilha, pois sabia que ela resultava da própria violência institucional e ficava presa à roda da violência da qual a maior vítima, inocente, era a população. A Comissão da Verdade, criada pelas Nações Unidas, apurou que cinco por cento dos atos de violência foram cometidos pela guerrilha enquanto oitenta e cindo por cento dos assassinatos foram cometidos pelo Exército e esquadrões da morte, apoiados financeiramente pelos Estados Unidos. Essa desproporção fala alto. (E cá entre nós, brasileiros: talvez seja esta a razão para tanta obstrução a que se crie uma Comissão da Verdade no Brasil.)

Uma luta sem fim

Mas Dom Romero, ainda que sempre tenha demonstrado sensibilidade e compaixão para com os pobres, e piedade e retidão para com a sua fé e a ética consequente, somente com as circunstâncias dolorosas caiu em si diante da realidade social conflitante e injusta e a decisão difícil a tomar: a perigosa defesa do povo, pela qual iria morrer. Ele tinha sido deslocado de uma diocese interiorana para a capital a fim de acalmar a inquietação de movimentos dentro da Igreja: alguns padres, algumas comunidades, a direção da universidade dos jesuítas. Veio para a capital como um “conservador”, assim se dizia na época. Foram a tortura e a morte violenta de um jovem jesuíta, Rutílio Grande, seguida de outros sacerdotes da diocese e do país, que fizeram Dom Oscar chorar e se indignar. Começou a comparecer a todo lugar de violência e de cadáveres a sepultar, e a preparar com força profética única suas homilias dominicais, que eram escutadas não só com catedral lotada mas em todo o país através do rádio. Hoje, estas homilias estão disponíveis tanto em uma apurada edição crítica como em CD, pois, por questão de verdade, foram todas escritas e gravadas, assim como ele deixou gravado algo como um “diário” diante da iminência contínua de violência a ele mesmo. Hoje são fontes preciosas para conhecer tanto a grandeza de alma e a sabedoria de um grande pastor caminhando em meio a um rebanho ferido como para conhecer uma época tremenda da história não só de El Salvador, mas da América Latina em geral.

Dom Oscar foi “crescendo” ao mesmo tempo em sabedoria e ternura junto com a indignação e a força profética de sua presença e palavra. Pagou o preço de solidão entre seus pares no episcopado do país, com pouco apoio, e inclusive desconfianças de Roma. Mas ganhou amizade e apoio de muitos bispos que já eram experimentados em situações parecidas pela América Latina. No entanto, foram o povo e o clero de San Salvador que o sustentaram enquanto ele se fazia “voz dos que não tem voz”. Depois de sua morte ainda muito sangue inocente foi derramado por El Salvador, sobretudo de militantes cristãos, de catequistas e evangelizadores, e inclusive massacres de centenas de pessoas – três massacres, de 600 a 800 pessoas cada, em aldeias que foram inteiramente devastadas pela violência militar e paramilitar. Outros sacerdotes e finalmente, em novembro de 1989, a comunidade jesuíta da Universidade Centroamericana inteira, seis padres, tiveram a mesma sorte numa noite de terror nesta casa em que estou escrevendo. Dom Romero tinha chegado a afirmar que se alegrava que sacerdotes estavam sofrendo o mesmo destino do povo, e, embora não escondesse a inquietação do medo da tortura, sabia certo que teria também ele o mesmo destino. Só assim a Igreja testemunhava que estava realmente identificada com o povo de Deus. A maioria desses padres, como Dom Oscar, deixou o testemunho de um perdão pessoal junto á exigência de justiça para o povo, e isso deixou marcas na capacidade de cura e de reconciliação de El Salvador.

Dom Romero vive no coração e na memória do povo

Hoje, resta uma ferida grave: a delinquência, sobretudo juvenil e adolescente, as “pandillas” de periferia, entre os pobres e os desocupados. E a tendência das elites impenitentes a tratar inclusive menores com dureza crescente sem reconhecer as causas da atual violência, as causas que são o pecado original de sempre: a apropriação e o enriquecimento de poucos junto à pobreza sem saída da maioria. Em meio a isso, as figuras de Dom Oscar e dos tantos mártires recentes de El Salvador são um contraponto de esperança e de generosidade absoluta, a generosidade da vida doada até à morte, que cria uma lógica de busca de justiça e dignidade em meio aos problemas e sofrimentos que ainda persistem. Nesses dias os jovens, inclusive certamente alguns metidos em “pandillas”, vão liderar uma multidão de povo que vai sair de diferentes pontos da capital para se concentrar e passar uma noite em vigília diante da catedral que guarda os restos mortais de um grande pai da nação, e vão se sentir família. Na cripta, apesar do belo monumento em bronze com o manto dos quatro evangelhos que orientaram as falas fortes do arcebispo, o povo insiste em colocar suas flores, seus símbolos simples e carregados de afeto. Realmente, Dom Oscar Romero vive no coração e na memória do povo de El Salvador.

E vive também na memória da Igreja latinoamericana, que o reverencia nessa data como voz dos povos ainda submetidos. A Igreja primaz dos anglicanos, em Westminster, já o “canonizou” colocando sua imagem ao lado de Martin Luther King e de Bonnhöffer no nicho dos mártires do século XX. Na África, um bispo congolês, morto ao socorrer o povo em meio ao conflito genocida de Ruanda e Burundi na fronteira do Congo, é conhecido por lá como “o Dom Romeiro da África”! E grupos em peregrinação, vindos dos Estados Unidos, do Canadá, dos diversos países da Europa além dos latino-americanos, de variadas denominações cristãos, vem ecumenicamente, como veio o grande teólogo Jürgen Moltmann, prestar homenagem a um grande profeta e mártir de nosso tempo.

Fonte: Notícias: IHU On-Line: 24/03/2010

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