Diversidade linguística ameaçada

Metade das mais de 6 mil línguas do mundo está ameaçada, diz Unesco – DW: 21.02.2009

Unesco lançou nova edição do Atlas Mundial de Línguas em Perigo de Desaparecimento. No Dia Internacional da Língua Materna, linguista alemão vê relação entre pluralidade linguística e preservação da biodiversidade.

Atlas Mundial de Línguas em Perigo de DesaparecimentoNeste sábado (21/02) comemora-se o Dia Internacional da Língua Materna. O dia foi instituído em 1999 pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) para a chamar a atenção sobre a importância da diversidade cultural e linguística no planeta.

A preocupação da Unesco se volta principalmente para as línguas faladas por menos de 10 mil pessoas. Na última quinta-feira, na sede da organização da ONU em Paris, foi lançada a nova edição do Atlas Mundial de Línguas em Perigo de Desaparecimento. O atlas contém informações atualizadas sobre mais de 2.500 idiomas ameaçados em todo o mundo.

O Atlas da Unesco classifica as línguas ameaçadas em cinco diferentes categorias: mortas, fracas, seriamente em perigo, em perigo ou em situação precária. Sua realização foi possível graças à contribuição financeira do governo da Noruega, informou a organização.

 

Mais de 200 línguas desapareceram

Segundo a Unesco, metade das 6.700 línguas faladas em todo o mundo está ameaçada. Dessas, 199 são faladas hoje por menos de uma dúzia de pessoas, como o wichita, língua de 10 habitantes do estado norte-americano de Oklahoma. Na Indonésia vivem os últimos quatro falantes de lengilu.

A organização da ONU informou que, durante as três últimas gerações, mais de 200 línguas desapareceram, tais como o ubykh, uma língua da região do Cáucaso extinta em 1992, quando o último falante do idioma, o fazendeiro turco Tefvic Esenc, faleceu.

Na Europa, o Reino Unido tem 12 línguas em perigo; a Alemanha, 13; e a França, 26. De acordo com a nova edição do Atlas da Unesco, no topo da lista dos países com maior número de línguas ameaçadas aparecem a Índia (196), os Estados Unidos (192) e, em terceiro lugar, o Brasil (190).

 

Apoio governamental à diversidade linguística

A Unesco constatou também que algumas línguas antes em perigo vivenciam hoje uma renascença. Entre essas está o córnico, idioma celta da região da Cornualha, sul da Inglaterra, e o sishee, da Nova Caledônia, arquipélago da Oceania.

O linguista australiano Cristopher Moseley, que dirigiu o grupo de 25 pessoas responsável pelo Atlas, constatou que países com rica diversidade linguística, como a Índia, os EUA e o Brasil, também sofrem o maior perigo de extinção de idiomas.

A Unesco saúda os esforços de países como Peru, Nova Zelândia, Estados Unidos e México que, com sucesso, têm impedido a extinção de línguas indígenas. A vice-diretora de Cultura da Unesco, Françoise Rivière, reconhece o apoio governamental à diversidade linguística, mas acresce que “as pessoas têm que ter orgulho do idioma que falam” para que esse floresça.

 

Biodiversidade e a pluralidade linguística

No arquipélago da Nova Guiné é onde se falam o maior número de línguas no mundo. Papua-Nova Guiné, país da Oceania e que faz parte do arquipélago, é uma exceção entre aqueles com grande diversidade lingüística, pois, segundo o Atlas da Unesco, somente 98 idiomas estariam ali ameaçados.

O linguista alemão Harald Haarmann vê aí uma relação entre a preservação da biodiversidade e a pluralidade linguística. Ele explica que, com a devastação da natureza, segue-se a destruição dos povos indígenas – e de sua língua.

Segundo Haarmann, no arquipélago de Nova Guiné existiriam mais de mil línguas e uma grande variedade de espécies da fauna e da flora. A razão, segundo o cientista, estaria no fato de que a região não é atraente para estrangeiros nem tem recursos naturais. Lá existiriam duas estações: no verão chove e no inverno chove mais ainda, afirmou.

Em consequência, durante séculos, o arquipélago de Nova Guiné permaneceu isolado. O efeito foi a preservação das espécies vegetais e animais, como também da cultura e das línguas dos pequenos povos, disse Haarmann.

 

O Brasil tem 190 línguas indígenas em perigo de extinção – Leticia Mori: BBC – 4 março 2018

Moradores da fronteira do Brasil com a Bolívia, o casal Känä́tsɨ, de 78 anos, e Híwa, de 76, são os dois últimos falantes ativos da língua warázu, do povo indígena Warazúkwe.

Os dois se expressam mal em castelhano e português, e conversam entre si somente em warázu – embora seus filhos e netos que moram com eles falem em português e espanhol.

“Aquela casa desperta, para quem entra nela, uma sensação incômoda de estranheza, como se o casal idoso que vive nela viesse de outro planeta, de um mundo que eles nunca poderão ressuscitar”, escrevem os pesquisadores Henri Ramirez, Valdir Vegini e Maria Cristina Victorino de França em um estudo publicado na revista Liames, da Unicamp.

Com ajuda do casal idoso, esses linguistas da Universidade Federal de Rondônia descreveram pela primeira (e possivelmente a última) vez o idioma do povo Warazúkwe.

Känä́tsɨ (à esq.) e Híwa falam entre si uma língua que só eles conhecem | Foto: Liames/Unicamp O casal nasceu em Riozinho, em Rondônia, mas a comunidade warazúkwe em que viviam foi abandonada nos anos 1960, forçando os dois a se mudar diversas vezes entre Brasil e Bolívia até terem se estabelecido em Pimenteiras (RO).

Segundo o estudo, além de Känä́tsɨ e Híwa, ainda haveria três pessoas que poderiam conhecer o idioma. Um deles, o irmão mais velho Känä́tsɨ, sumiu há anos. Os outros dois, Mercedes e Carmelo, vivem na Bolívia, mas já não conversam mais em warázu.

“Parece que a ‘vergonha étnica’ que os warazúkwe experimentaram foi tão intensa que Mercedes não gosta de proferir palavra alguma no seu idioma e Carmelo afirma que esqueceu tudo”, diz o estudo.

 

País multilíngue

Da família linguística tupi-guarani, o warázu é apenas uma de dezenas de línguas brasileiras em perigo de extinção.

Segundo o Atlas das Línguas em Perigo da Unesco, são 190 idiomas em risco no Brasil.

O mapa reúne línguas em perigo no mundo todo – e o Brasil é o segundo país com mais idiomas que podem entrar em extinção, ficando atrás apenas dos Estados Unidos.

Adauto Soares, coordenador do setor de Comunicação e Informação da Unesco no Brasil, explica que o mapa foi feito com a colaboração de pesquisadores especialistas em cada região e entidades governamentais e não governamentais.

No Brasil, as principais entidades que colaboraram foram o Iphan, a Funai, a Unaids e o Museu do Índio.

Soares explica que foram usados diversos critérios para definir se uma língua está em risco: o número absoluto de falantes, a proporpoção dentro do total da população do país, se há e como é feita a transmissão entre gerações, a atitude dos falantes em relação à língua, mudanças no domínio e uso da linguagem, tipo e qualidade da documentação, se ela é usada pela mídia, se há material para educação e alfabetização no idioma.

“Essa quadro (de línguas em perigo) pode ser revertido, e é por isso que a gente atua”, diz Soares.

A morte de uma língua não é apenas uma questão de comunicação no dia a dia: a preservação da cultura de um povo depende da preservação do seu idioma. “Se a língua se perde, se perde a medicina, a culinária, as histórias, o conhecimento tradicional. No idioma estão a questão da identidade, o conhecimento do bosque, do mato, dos bichos”, explica o linguista Angel Corbera Mori, do Instituto de Estudos da Linguagem, da Unicamp.

 

Mais ainda

O número de idiomas em risco pode ser ainda maior do que o apontado pela Unesco, porque é possível que algumas línguas, que nunca foram estudadas, tenham ficado de fora – o warázu, por exemplo, não está incluso no mapa.

Além disso, é possível que existam dezenas de línguas em perigo em comunidades isoladas, que nunca foram descritas.

Estima-se que, antes da colonização portuguesa, existissem cerca de 1,1 mil línguas no Brasil, que foram desaparecendo ao longo dos séculos, segundo Corbera.

Ele explica que durante o período colonial, os jesuítas começam a usar o tupi como uma espécie de língua geral – o que foi visto pela Coroa portuguesa como uma ameaça. O tupi – e posteriormente outras línguas indígenas – foram proibidos. E quem desobedecesse era castigado.

A perseguição continuou por séculos. Na era Vargas, por exemplo, o português era obrigatório nas escolas, e quem desrespeitasse também estava sujeito a punição.

“A situação só melhorou a partir da Constituição de 1988”, diz Corbera.

Segundo ele, uma das principais ameaças à língua hoje é a invasão dos territórios indígenas. “Políticas de preservação e registro da língua são importantes, mas não adiantam nada se eles não têm território, se são expulsos de suas terras”, diz Corbera.

Alguns grupos que foram perseguidos têm o único registro escrito de suas línguas em trabalhos em naturalistas que visitam o país nos séculos passados. É o caso da língua dos povos do grupo Panará – nomeados pelos colonizadores de Caiapós do Sul – do aldeamento de São José de Mossâmedes, em Goiás, no século 18.

A única descrição linguística dos povos que ocupavam esse aldeia é encontrada em listas de palavras dos europeus Emmanuel Pohl (1782-1834) e Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), como descreve o linguista Eduardo Alves Vasconcelos em um artigo publicado no ano passado.

 

Os últimos

Uma das línguas que sobreviveram, ainda que em estado crítico, é o guató. O idioma tinha, em 2006, apenas cinco falantes, de acordo com a Unesco.

Os Guatô ocupavam praticamente toda a região sudoeste do Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia, até começaram a ser expulsos de suas terras entre 1940 e 1950, segundo o Intituto Sócio Ambiental (ISA), por causa do avanço da agropecuária.

Chegaram a ser considerados extintos pelo governo, por isso foram excluídos de programas de ajuda e políticas públicas, até meados dos anos 1970, quando missionários identificaram índios Guatô e o grupo começou a se reorganizar e lutar por reconhecimento.

Há línguas tidas como vulneráveis – possuem um número maior de falantes, mas ainda são consideradas em perigo. É o caso da língua guajajara, falada por um dos povos mais numerosos.

Há mais de 27 mil guajajaras no Brasil, segundo o sistema de informações do Ministério da Saúde. O guajajara é usado como primeira língua em muitas aldeias, mas nem todos os índios Guajajara falam o idioma. A língua guajajara pertence à família tupi-guarani e é subdividida em quatro dialetos.

 

Extintas

Das 190 línguas citadas pela Unesco, 12 já são consideradas extintas, ou seja, não têm mais nenhum falante vivo.

Uma das que foram extintas mais recentemente foi língua dos Umutina, povo indígena que vive no Mato Grosso.

Quando o Museu do Índio iniciou um trabalho de documentação de línguas, em 2009, ela ainda tinha falantes. Hoje está extinta, segundo a Unesco.

Os Umutina tiveram seu território invadido violentamente no início do século passado, segundo o ISA. Por isso acabaram perdendo sua terra tradicional e sua língua, que era do tronco linguístico Macro-Jê, da família Bororo.

Além disso, centenas de umutinas morreram devido a doenças levadas pelos brancos.

Os que sobreviveram às epidemias tiveram contato com o antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio, antecessor da Funai extinto em 1967). Eles foram educados em uma escola para índios que os proibia de falarem sua língua materna e de praticar qualquer tipo de atividade relacionada à sua cultura, segundo o ISA.

Hoje são 515 pessoas, de acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena, que falam predominantemente português e tentam recuperar a língua com ajuda de idosos e universitários indígenas. Segundo Corbera, o muitas vezes não se consegue recuperar a língua toda, às vezes só o léxico.

“Mas é muito importante, até por questões de identidade”, conta ele.

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