A Teologia e as crises atuais

Há uma entrevista feita por IHU On-Line com Luiz Carlos Susin sobre o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação que merece ser lida.

 

A mudança de eixo da humanidade. O III Fórum Mundial Teologia e Libertação

Recém encerrado, o III Fórum Mundial de Teologia e Libertação reuniu centenas de teólogos e teólogas de todo o mundo, em Belém do Pará, para discutir o tema “Água, Terra, Teologia para outro Mundo possível”. E agora, além das avaliações, surgem também as várias perspectivas e possibilidades que o debate semeou.

Em entrevista especial concedida por telefone à IHU On-Line, o secretário-geral do Fórum, o doutor em Teologia e frei capuchinho Luiz Carlos Susin, ainda no clima do encontro, comenta alguns traços gerais mais marcantes desses cinco dias na cidade de Belém, entre os dias 21 a 25 de janeiro.

Para Susin, um dos objetivos alcançados foi o de “desafiar a teologia a integrar a ecologia, a questão do meio ambiente, da biodiversidade na pauta da teologia”, de forma ecumênica. Quanto à convivência ecumênica do Fórum, destaca, ela já é bastante natural. Mas reconhece que ainda existe uma dívida com a área ortodoxa. E afirma que o modelo do Fórum não está superado, pois o encontro “tem que ser mesmo um espaço aberto para as novidades em termos de experiências, de novos caminhos […] numa espécie de vitrine, de feira, de troca”. “Não se pode exigir do Fórum mais do que ele pode dar”, resume.

Susin cursou mestrado e doutorado em Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Leciona na PUC-RS e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana (ESTEF), em Porto Alegre. É autor de inúmeras obras, entre as quais citamos “Teologia para outro mundo possível” (Paulinas, 2006).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual a avaliação geral do III Fórum de Teologia e Libertação e das principais conferências?

Luis Carlos Susin – Em uma avaliação muito geral ainda, nós podemos sublinhar dois pontos que são destaques e ganhos que nós tivemos. O primeiro é sobre a forma, a dinâmica do Fórum, enquanto proposta de ser Fórum. Desde o primeiro Fórum em 2005, em Porto Alegre, passando pelo segundo em 2007 em Nairóbi, e agora a realização deste terceiro, nós percebemos que ele adquiriu mais fisionomia de Fórum, com múltiplas atividades, múltiplas propostas, formas diferentes, não apenas acadêmicas, não apenas conferências e discussão de idéias, mas também outras iniciativas que os grupos tomaram. Percebemos, então, uma convergência de maneiras de se passar adiante o debate e a conscientização, que dão mais fisionomia de Fórum. Nós tivemos muito mais oficinas. Houve uma multiplicação: passou do dobro a oferta de oficinas em relação ao último Fórum. E tivemos um Café Teológico com grandes possibilidades de exposições, de shows, em que alguns grupos puderam se apresentar com as suas tendas. Quanto ao conteúdo, nós conseguimos, realmente, focar o horizonte que tínhamos, de desafiar a teologia a integrar a ecologia, a questão do meio ambiente, da biodiversidade, enfim, de toda essa questão que hoje ocupa a humanidade, de uma maneira urgente, na pauta da teologia.

IHU On-Line – Quais foram os principais temas debatidos durante o encontro?

Luis Carlos Susin – Nós tivemos, em primeiro lugar, a questão da crise da humanidade, crise axial, alguns chamaram de mudança de eixo da humanidade, que vai além da sua história como a conhecemos, seja por razões de globalização, seja pela crise do modelo, de tal maneira que vamos nos obrigar a fazer uma grande mudança no modo de vida, do que talvez nós nem tenhamos total consciência. Nós só estamos recebendo os primeiros sinais. Isso capitalizou as discussões e os debates.

IHU On-Line – Que conceitos ou pensamentos de fronteira se destacaram no encontro? Por onde a teologia mundial mais avança em termos de pesquisa?

Luis Carlos Susin – Acho que se deveria pensar nisso pelo avesso. Ou seja, onde a teologia sente que ainda há muita lacuna. O que avançou muito foi o que se poderia chamar de pré-teológico, a visão de ordem mais sociológica, filosófica, antropológica, política inclusive, da relação da humanidade com o meio ambiente. Agora, quando se tratou realmente de fazer um debate teológico, o que nós, como teólogos e teólogas, percebemos é que a maioria de nós ainda não se apropria – e também porque não existe muito à disposição – de categorias e de uma linguagem que sejam suficientemente rápidas, claras, flexíveis, fluentes, para poder teologizar, para poder fazer teologia com essas questões. Significa que nós não temos ainda os nossos materiais muito bem afinados, e essa é uma pauta de futuro. Acho que – se há um ganho em termos de perspectiva do Fórum, mas que é um desafio muito grande e importante – vamos ter que trabalhar pela frente o que chamamos de epistemologia, a linguagem para poder corresponder a isso. Nós temos alguns ensaios sobre isso. Há teólogos como [Jürgen] Moltmann [1], o próprio Leonardo Boff [2], que têm trabalhado isso, mas percebemos muitas lacunas nessa área.

IHU On-Line – O Fórum Social Mundial (FSM) que começou hoje (ontem), também em Belém do Pará, coloca o Brasil em foco no sentido da atenção ao território amazônico. Quais foram as perspectivas levantadas pelo Fórum de Teologia com relação ao cuidado da água e da terra do planeta?

Luis Carlos Susin – Falando em termos de uma memória do que aconteceu no Fórum, poderíamos apontar para a intervenção da senadora Marina Silva, que foi a nossa ministra do Meio Ambiente, que realmente levantou o público todo com a sua fala, porque ela tem, com muita naturalidade, uma propriedade, inclusive bíblica – no sentido de que ela tem muito conhecimento da Palavra de Deus, dos Evangelhos e da Bíblia em geral –, para se situar e para interpretar a sua própria luta política pela Amazônia. Ao mesmo tempo, ela nos deixou muito clara a relação da Amazônia com o planeta e também a necessidade de que todos tenhamos, internacionalmente, responsabilidade pela Amazônia. Porque, de um ponto de vista da história e da geografia deste momento, temos que ultrapassar fronteiras nacionais para podermos dar conta dessa questão.

IHU On-Line – Como as recentes medidas de Bento XVI, como a censura ao teólogo jesuíta Roger Haight e a retirada da excomunhão aos quatro bispos lefebvrianos, repercutiram no Fórum de Teologia?

Luis Carlos Susin – Como o Fórum é ecumênico mesmo, seriamente ecumênico – desde o início ele se estruturou no diálogo entre teólogos e teólogas não só de diferentes continentes, mas também de diferentes denominações –, fizemos uma espécie de acordo entre nós de que as igrejas não deveriam ser o foco central do Fórum, porque ele se destina para o diálogo com a sociedade mais ampla. Então, no próprio Fórum, na temática, na programação etc., evitamos discutir esse tipo de assunto. Agora, é claro que pelos corredores, digamos assim, isso também surge. Porque, em última análise, todos temos raízes em comunidades eclesiais, todos temos uma comunidade de fé, uma igreja, e é evidente que a Igreja Católica tem uma importância muito grande nesse conjunto. Então, nós ficamos constrangidos – essa é a palavra. Os outros teólogos e teólogas olham de fora, de longe, com um certo sentimento de coleguismo, de fraternidade. E nós sofremos com esse tipo de coisa, porque, com o ensaio, o debate, a liberdade de pesquisar, de poder experimentar novas linguagens e de ter o estímulo e a confiança, nós sempre temos uma espécie de espada de Dâmocles [3] sobre a cabeça. Por outro lado, percebemos que é até uma questão biográfica do Papa essa tendência a fazer retornar tudo o que é conservador na Europa, porque deve ser uma convicção dele de que é por aí que as coisas podem ser salvas.

IHU On-Line – Emir Sader, recentemente, criticou o FSM afirmando que o encontro se esvaziou, resumindo-se a uma crítica do neoliberalismo, sem propostas e sem conexão com as mudanças sociais. Fazendo um paralelo com a teologia, como o senhor avalia o formato “Fórum de Teologia e Libertação”?

Luis Carlos Susin – Nós estamos em contínua avaliação e vamos continuar agora avaliando por um certo período. Não temos ainda muita clareza sobre isso, mas, de qualquer forma, esse Fórum está superando algumas das instituições que tinham se criado na década de 80 para dar um horizonte maior, por exemplo às organizações que fazem parte do Comitê Organizador desse Fórum, como a Associação Ecumênica de Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo. Até a forma de se chamar – “Teólogos e Teólogas do Terceiro Mundo” – já é inadequada hoje em razão da geopolítica que nós temos. Então, o Fórum está aberto para o mundo assim como ele é.

Eu não concordo com o Emir Sader. Eu concordo mais com o Francisco Whitaker, que o Fórum tem que ser mesmo um espaço aberto para as novidades em termos de experiências, de novos caminhos que se vão traçando em comunidades locais, regionais, para que isso apareça numa espécie de vitrine, de feira, de troca. E essa é a função. Também não se pode exigir do Fórum mais do que ele pode dar. Nesse sentido, o Fórum Mundial de Teologia também pode dar alguma coisa, e é uma espécie de troca de experiências, de maior conhecimento entre todo o mundo das diversas partes, para ouvir linguagens diferentes e, sobretudo, inspirar a pauta da teologia nos próximos tempos. Se nós, por exemplo, aqui em Belém, escutamos bem o que aconteceu nesse Fórum, precisamos ter uma pauta que leve a sério essa urgência, essa lacuna, essa necessidade de trabalhar a nossa linguagem para conectá-la com o que está acontecendo na biodiversidade hoje.

IHU On-Line – Como esteve marcado o diálogo inter-religioso no Fórum, tendo-se em conta um tema tão caro e tão cheio de simbologia a todas as culturas e religiões como a terra e a água?

Luis Carlos Susin – Tem coisas que vão acontecendo mais ao natural. Nós tínhamos, em um certo tempo, a necessidade de cuidar para que houvesse uma boa representação de teólogos e teólogas, no sentido de gênero, homens e mulheres nas mesas, nas presidências etc. Ainda havia aquela tendência de termos muito do patriarcalismo que nos assombra, e acabávamos nos traindo, porque às vezes havia mesas somente de homens e poucas mulheres, até porque as mulheres estavam começando a entrar no espaço da teologia. Hoje, por exemplo, essa preocupação desapareceu. Nem nos interrogamos mais, porque naturalmente aparecem os nomes das pessoas com uma equidade bastante natural entre homens e mulheres. A mesma coisa aconteceu na área da representação de denominações diferentes, de pessoas de diferentes igrejas. Houve um tempo em que tínhamos que nos preocupar que não fossem só católicos, já que os católicos são de uma igreja maior e têm bastantes teólogos e teólogas; ou só luteranos, que entre nós também têm uma boa representação na área de teologia. Nós temos ainda uma dívida com a área ortodoxa. Nós não estamos conseguindo uma boa ligação com essa área. Mas, sobretudo dos três continentes – África, Ásia e América Latina – a representação ecumênica já começa a ser bastante natural. Escolhemos as pessoas pelo que elas são, e elas já vêm aparecendo das diferentes igrejas.

IHU On-Line – Qual a contribuição do Fórum com relação à paz, especialmente neste momento de graves conflitos no Oriente Médio, muitos deles causados por questões religiosas?

Luis Carlos Susin – Neste ano, nós não tivemos, como foco muito explícito, essa questão da guerra, sobretudo com tintas de fundamentalismo religioso. Isso aconteceu na África, há dois anos, quando trabalhamos “Espiritualidade para um Outro Mundo Possível”. E a espiritualidade, nesse caso, era um campo vasto para apresentar as presenças de diferentes tradições religiosas – não só igrejas. O Brasil e esta região, aqui em Belém, não se explicam sem uma interação muito sincrética. Então, naturalmente, nos momentos de oração, nós tivemos pessoas de tradição indígena, que fizeram as suas orações e invocaram a divindade, o Grande Espírito, na forma como o indígena tem na sua tradição; tivemos pessoas dos cultos afro-brasileiros, que também estão misturados com o indígena, são os chamados “encantados”, e também fizeram a sua oração, deram a sua palavra.

E o que percebemos é que eles têm vontade de conviver pacífica e cordialmente com as outras pessoas que estavam lá presentes. E até nos comoveram, porque disseram que estavam vendo com os seus olhos aquilo que os seus antepassados sonharam e não puderam ver, que um dia estariam ao lado de um bispo sem precisar corar de vergonha, sem precisar se esconder. Agora, lá em Nairóbi, no Quênia, há dois anos, tivemos que fazer isso com um certo cuidado, porque as tensões entre certas tradições são mais fortes por causa da mistura de política com religião. E exatamente por isso é que nos comoveu o fato de que havia lá, por exemplo, grupos de mulheres do sul do Sudão e do norte do Quênia que são muçulmanas, cristãs e de religião tradicional africana, que são grupos de convivência, grupos para dançar e rezar juntas e convivem como forma de contrapor-se àquela tendência política de usar a religião para sacralizar a sua violência.

IHU On-Line – Como o Fórum avalia uma suposta “virada à esquerda” em nível internacional, com a recente posse de Barack Obama, além dos demais presidentes latino-americanos? Em que isso contribui nas lutas sociais e cristãs por um mundo mais justo?

Luis Carlos Susin – A expressão “virada à esquerda” não foi usada, porque essa questão de direita e esquerda é uma forma também já problemática e inadequada para a atual geopolítica. Mas vamos dizer que seja isso. Ao menos, é uma saída de um conservadorismo neoliberal e dos interesses do mercado para uma retomada da política como possibilidade de dar orientação e guiar um pouco mais o mercado. É o mínimo que se pode ver no horizonte, até pela crise atual do mercado livre. Nós tivemos esse choque do ano passado para cá, e claro que isso foi às vezes nomeado, assim como foi nomeado o fortalecimento de uma tendência de política de governo mais popular, como foi agora o caso da América Latina, e se acrescentou o caso do Paraguai, com o Fernando Lugo – que, aliás, era membro de uma das instituições do Comitê Organizador do nosso Fórum. Então pode-se imaginar a importância que isso adquire. Mas o nome que foi mais citado foi Barack Obama, porque nós tivemos diversas intervenções de teólogos e teólogas norte-americanos, e também de outras partes, que têm uma esperança de que agora se consiga criar um pequeno desvio para o lado contrário daquele para onde havia ido a política de Bush.

Notas:

1. Jürgen Moltmann (1926-) é professor emérito de Teologia da Faculdade Evangélica da Universidade de Tübingen, na Alemanha. Um dos mais importantes teólogos vivos da atualidade. Foi um dos inspiradores da Teologia Política nos anos 1960 e influenciou a Teologia da Libertação. [voltar ao texto]

2. Leonardo Boff (1938-) é um teólogo brasileiro. Foi um dos criadores da Teologia da Libertação e, em 1984, em razão de suas teses a ela ligadas e apresentadas no livro “Igreja: carisma e poder – ensaios de eclesiologia militante” (Vozes, 1982), foi submetido a um processo pela ex-Inquisição em Roma. Em 1985, foi condenado a um ano de “silêncio obsequioso” e deposto de todas as suas funções. Dada a pressão mundial sobre o Vaticano, retornou a elas em 1986. Em 1992, sendo outra vez pressionado com novo “silêncio obsequioso” pelas autoridades de Roma, renunciou às suas atividades de padre. Continuou como teólogo da libertação, escritor e assessor das comunidades eclesiais de base e de movimentos sociais. É autor de mais de 60 livros nas áreas de teologia, espiritualidade, filosofia, antropologia e mística. [voltar ao texto]

3. Dâmocles é uma personagem de um mito. A anedota aparentemente figurou na história perdida da Sicília por Timaeus de Tauromenium (356-260 a.C.). Dâmocles era um cortesão bastante bajulador na corte de Dionísio I de Siracusa, um tirano do século 4 a.C. Ele dizia que Dionísio era verdadeiramente afortunado por seu poder e autoridade. Dionísio ofereceu-se, então, para trocar de lugar com ele por um dia, para que ele também pudesse sentir o gosto de toda esta sorte e o preço que se paga pelo poder. À noite, um banquete foi realizado, e Dâmocles adorou ser servido como um rei. Somente ao fim da refeição olhou para cima e percebeu uma espada afiada suspensa por um único fio de rabo de cavalo, diretamente sobre sua cabeça. Com isso, o invejoso cortesão entendeu a precariedade do poder real.

A entrevista foi publicada em 28/01/2009.