Em O Capital, Marx comparava o capitalismo a uma religião. As mercadorias são percebidas como ídolos, que têm vida própria e decidem o destino dos homens. Esse argumento foi utilizado pelos teólogos da libertação, como Hugo Assmann, Franz Hinkelammert, Jung Mo Sung, para desenvolver uma crítica radical do capitalismo como religião idólatra. A teologia do mercado, de Thomas Malthus ao último documento do Banco Mundial, é ferozmente sacrificial: exige que os pobres ofereçam suas vidas no altar dos ídolos econômicos. Walter Benjamin, ao escrever sobre isso em 1921, não havia lido O Capital. Ele se inspira no sociólogo Max Weber para analisar o caráter cultual do sistema. Na religião capitalista, a cada dia se vê a mobilização do sagrado, seja nos rituais na Bolsa, seja nas empresas, enquanto os adoradores seguem com angústia e extrema tensão a subida ou a descida das cotações. As práticas capitalistas não conhecem pausa, dominam a vida dos indivíduos da manhã à noite, da primavera ao inverno, do berço ao túmulo (Michael Löwy, em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo e reproduzida por Notícias: IHU On-Line de 13/01/2008)
[Hugo Assmann] fundou o Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), onde, juntamente com o seu amigo Franz Hinkelammert, desenvolveu uma sólida linha de pesquisa sobre a relação teologia e economia. Um dos principais resultados de linha de pesquisa é o livro A idolatria do mercado (em coautoria com F. Hinkelammert, 1989, Vozes), um livro fundamental que merece ser mais estudado e aprofundado. Nesse livro, Assmann desenvolveu uma crítica poderosa aos pressupostos teológicos do sistema de mercado capitalista e das teorias econômicas liberais e neoliberais. Ele desmascarou o que ele chamou de “sequestro do mandamento do amor” e revelou o processo econômico e teórico que culmina, no capitalismo, com a absolutização do mercado que acaba por exigir e justificar sacrifícios de vidas humanas. Ele chamou esse processo de “idolatria do mercado”. O objeto da sua crítica não era o mercado como tal – que ele reconhecia como algo necessário na vida econômica de uma sociedade ampla e complexa –, mas a sua absolutização… (Hugo Assmann: teologia com paixão e coragem. Artigo de Jung Mo Sung, em Notícias: IHU On-Line: 25/02/2008)E a direitona furiosa parece que, desta vez, enfiou a mão no “buraco do cupim” (construído pelo termitídeo Cornitermes cumulans) ou, caso se queira, do aterroada, bagabaga, cupim, cupineiro, cupinzeiro, itacuru, itacurubá, itapecuim, itapicuim, morro de muchém, murundu, surujê, tacuri, tacuru, tapecuim, tapicuém, termiteiro, terroada, torroada, tucuri…
Como se pode ler em Idolatria do mercado? Dizem que o liberalismo é isso. Mas a coisa não faz o mínimo sentido, por Olavo de Carvalho, em Época, 16 de dezembro de 2000:
…se as pessoas não tiverem mais motivos extra-econômicos – isto é, biológicos, psicológicos, lúdicos, éticos ou fantásticos – para comprar o que compram, simplesmente não comprarão mais, a não ser na hipótese de um inconcebível capitalismo imaterial, no qual, todos os produtos tendo sido reduzidos a dinheiro, as pessoas comam dinheiro, vistam dinheiro, leiam dinheiro e troquem dinheiro por dinheiro.
Por outro lado:
…o uso do termo “tóxico”, no plano internacional… era um cliente “subprime”… a injeção de dinheiro dos contribuintes nos bancos para salvá-los da bancarrota vem recebendo o nome de “bailout”…
A semântica da crise – Flávio Aguiar – Carta Maior: 08/10/2008
Em artigo publicado na segunda-feira, 6/10, no Herald Tribune, edição internacional do New York Times, o colunista William Safire, que trata de questões de linguagem, chama a atenção para o fato de que a presente crise de confiança por que passa o sistema financeiro e capitalista como um todo gerou uma semântica própria.
Destaca ele o uso do termo “tóxico”, no plano internacional: “investimentos tóxicos”, “débitos tóxicos”, por exemplo. Esse uso seria análogo ao que em nosso jargão do português do Brasil se faz da palavra “podre”: “dinheiro podre”, por exemplo.
Safire aponta um dado estatístico muito interessante: nos últimos três anos a palavra “tóxico” aparecera em média cinco vezes por semana no Financial Times, referindo-se a coisas como vazamentos de produtos inadequados em rios, ou contaminação de comida por produtos ameaçadores, etc. Com a deflagração da crise financeira, a partir do sistema imobiliário norte-americano (cujo risco Carta Maior já comentara há tempos), o uso da palavra, agora no setor financeiro, pulou para 69 vezes numa semana!
O que seria um “débito tóxico”, que estaria levando ao “envenenamento” de todo o sistema? Baseando-se nas conclusões de um leitor da Malásia, Safie cita a conclusão de que um “débito tóxico” no setor imobiliário seria aquele cujo imóvel, objeto de compra através de uma hipoteca, perdeu valor de tal modo que não serve mais como garantia sequer para pagamento do débito em caso de inadimplência do comprador e hipotecário.
Ou seja, trocando em miúdos: o comprador perdeu poder aquisitivo desde que comprou seu imóvel. Traduzindo: já era meio pobre, empobreceu mais. Ao mesmo tempo, o imóvel que ele comprara, confiando na permanência de uma valorização constante de seu preço, foi desvalorizado pela mesma inflação de compras e hipotecas semelhantes nesse mercado.
Conseqüência: ele não pode pagar, nem mesmo se revender seu imóvel ou passar adiante a hipoteca. Mas ao mesmo tempo o título de sua dívida, como tinha juros altos, foi repassado para outras instituições financeiras, com milhões de outros títulos semelhantes, que os compraram atraídas pelos juros altos que prometiam lucros fabulosos ao longo da quitação da dívida, o que acabou não ocorrendo.
Quem era este cliente empobrecido que se endividou mais ainda e que periga tornar-se o inadvertido bode expiatório dessa crise toda? Era um cliente “subprime”, outra proeza semântica desse “sistema/crise” ou dessa “crise sistêmica” em que parece viver o sistema capitalista, a tal ponto que se pode dizer que as crises fazem parte de sua natureza, ou de seu “estado normal”. “Prime”, em inglês, quer dizer, “de primeira linha”, “de grande relevância”, Nosso sistema bancário brasileiro, quando não usa o próprio termo em inglês, o traduz por “preferencial”: “cliente preferencial”, por exemplo. Agora pensemos no que é, na verdade, a contradição semântica de se dizer que um cliente, ou um empréstimo, ou um sistema de empréstimos, o que foi o caso, é “sub-preferencial”.
Isso quer dizer mais ou menos o seguinte: “esse cliente é ruim, ele está se afogando, ou afogado, mas agora ele se tornou preferencial porque, como ele está nessa situação, tenderá a assumir um empréstimo a juros altos para comprar uma casa cujo preço, ele acha, vai se valorizar, transformando sua dívida em patrimônio”. Não deu certo: o Titanic bateu no iceberg de uma economia recessiva que não tem muito o que fazer com os seus pobres, e tudo começou a afundar. Claro que quem afunda primeiro é a terceira classe; a classe média tenta boiar na situação e a primeira, dessa vez, tenta se agarrar nas boias salva-vidas jogadas pelos governos em aperto. Por que em aperto? Se olharmos para os Estados Unidos e a Europa, mais a Ásia (menos a China), vemos governantes forçados a fazer aquilo que seus programas ideológicos declaravam um anátema diabólico.
E o que eles se viram forçados a fazer? Aqui, como volta a apontar Safire no seu artigo, entra em cena outra operação semântica. A injeção de dinheiro dos contribuintes nos bancos para salvá-los da bancarrota vem recebendo o nome de “bailout”. O termo não foi inventando agora, mas ganhou enorme popularidade. É um termo que, segundo os dicionários abalizados, vem da náutica e da aviação. Quer dizer mais ou menos “drenar para salvar”. No caso de um navio, significa bombear água que tenha entrado em seus porões para fora, a fim de que o navio não afunde. No caso de um avião, significa literalmente saltar de paraquedas.
O uso do termo é adequado à operação contra os “débitos podres”, pois, nessa ótica, a injeção de dinheiro se destinaria a cobrir a falta de ativos provocada pela inadimplência da cadeia financeira como um todo, enredada por suas próprias cordas e ambições de dinheiro fácil, desde o cliente mais pobre até o investidor mais rico.
O destino dessas operações semânticas, mesmo que inadvertido, é salvaguardar o sistema de sua própria falência ideológica. Não se pode dizer simplesmente que está havendo uma “intervenção do Estado”, assim a seco, sem recurso a qualificativos que neutralizem ou minimizem, no plano do pensamento ou da argumentação, a devastação que está sendo provocada pela crise mais aguda do capitalismo provavelmente desde a de 1929. Que a crise vá provocar uma débâcle sistêmica no sistema, ninguém acredita. Muito pelo contrário, a crise provavelmente vai provocar uma maior concentração de capital e de poder político (e militar) do que a já existente.
Como já se escreveu em vários lugares, Estados Unidos e China deverão sair reforçados dessa crise, e a Europa com vários remendos a fazer. Apesar de suas fragilidades, Brasil, Rússia, e Índia (além da China) vem sendo apontados como ilhas com boas possibilidades de flutuação no oceano encapelado que vem por aí. Mas que há um cheiro de débâcle ideológica, há, uma espécie de ritual funéreo em torno do credo neoliberal na santidade e na força autorreguladora dos mercados. É essa crise que as operações semânticas (que, como já disse, não precisam necessariamente ser conscientes nem fruto de uma conspiração governo-midiática ou só midiática, mas podem muito bem ser apenas instintivas) querem ajudar a neutralizar ou minimizar.
Como se vê, a linguagem nada tem de transparente, e pode ela mesma, ser tóxica. Até letal.