O número de apresentações
É muito bom ter esta variedade de horários, 11 ao todo, distribuídos ao longo de 7 dias, por dois motivos: oportunidade para mais pessoas assistirem e facilidade para quem gosta ou precisa observar com detalhes o documentário. Porém, é um verdadeiro “bombardeio” de tumba ou sepulcro de Jesus às vésperas da Semana Santa, em uma cultura como a nossa que, sabidamente, celebra com extrema dramaticidade ibérica, muito mais a “Paixão e Morte de Jesus” do que sua vida, seus feitos e suas propostas. Este “bombardeio” de apresentações não acontece por acaso.
1. A tumba de família de Jesus em Talpiot
A sequência de “descobertas” que se nota no primeiro segmento é a seguinte: evangelhos > Talpiot > ossuários > Jesus, filho de José > Maria > Mateus > Joset. No final do segmento, o telespectador já deveria estar convencido de que esta é, sem dúvida, a tumba da família de Jesus, pois a história de sua família está reconstruída e recuperada através das inscrições em 4 dos ossuários.
Algumas questões, entretanto, se impõem desde o começo:
- Como se fez para que a hipótese de ser esta a tumba da família de Jesus se transformasse em certeza em apenas 22 minutos?
- Quando e com que recursos uma pobre família da Galileia, como a de Jesus, teria construído uma tumba tão elaborada, considerada pelos especialistas como uma tumba de uma família rica?
- Como comprovar que a genealogia de Jesus em Lc 3 é uma genealogia autêntica da família de Maria, como defende Tabor?
- Por que é feito um uso seletivo dos evangelhos? Por que Mateus é desacreditado quando denuncia como complô de lideranças judaicas a história do roubo do corpo de Jesus pelos discípulos, enquanto Lucas e Marcos são fontes seguras para os nomes de familiares de Jesus?
- Começar um documentário e fundamentar suas principais conclusões em uma visão conspiratória da história não é bastante problemático?
- Onde está a percepção de que “evangelho” não é biografia nem livro de história e que, dentro de um evangelho, há vários gêneros literários?
- Por que genealogias teológicas teriam credibilidade histórica, como a de Lucas?
Além de se discutir o uso problemático das fontes, deve-se investigar a relação entre Bíblia e Arqueologia, a arqueologia vista como caça ao tesouro… mesmo que este tesouro seja simbólico, um valor sagrado, uma relíquia, o lugar onde Jesus foi enterrado, por exemplo.
Chamo a atenção, finalmente, para a presença de Jacobovici no filme: sempre alerta, olhar inquiridor, soluções rápidas, mente aberta, inteligente… enfim, uma figura! Ele é um cineasta, um jornalista investigativo ou um personagem? Talvez seja o real protagonista do filme. De qualquer maneira, ele é o “mocinho” do filme. Vejo assim: na ausência das grandes figuras do documentário – Jesus, Maria, Madalena são apenas nomes em caixas de pedra – a figura incomum do cineasta, sempre em primeiro plano, dá segurança ao telespectador, enquanto o guia, soluciona dúvidas, resolve o que parece impossível, se emociona com as descobertas… Enfim, Jacobovici cria uma personalidade com a qual o telespectador pode se identificar sem receio de ficar perdido em suas dúvidas… Só que tudo isto é construído. A “caça ao tesouro” levou inteiros 3 anos! Nada foi encontrado “por acaso”. Caberia aqui uma discussão sobre a relação e distinção entre documentário e ficção.
2. Probabilidades estatísticas
A linha de raciocínio aqui é a seguinte: 3 especialistas contestam que os nomes encontrados indiquem algo de extraordinário, mas nada disso vale, pois a eles são contrapostas as opiniões de James Tabor que diz ser “provável” – para logo passar ao “deve ser” a tumba da família de Jesus – e do matemático Feuerverger, que apenas diz “ser possível”, mas é um matemático e professor de estatística, e isso pesa.
Cabe aqui uma observação sobre a (im)precisão das expressões que estou usando: posso não ter anotado tudo corretamente ao ver o filme! Mas, principalmente, as falas são dubladas… e as dublagens não são tão confiáveis assim! Mas não é só o que é falado que dá respaldo à tese de Jacobovici. O modo como os especialistas são apresentados, inclusive o ambiente em que são filmados, conta muito. Observo, por exemplo, que o matemático Feuerverger é sempre apresentado em ambiente acadêmico clássico, escrevendo fórmulas em tradicional quadro de sala de aula, o que dá respeitabilidade às suas opiniões, embora elas sejam extremamente cautelosas e vagas. Respeitabilidade? Lembro-me de uma das mais difundidas fotos de Einstein, na qual ele está escrevendo fórmulas no quadro… Mais para a frente veremos cientistas fazendo sofisticados exames de DNA e de pátina em modernos laboratórios, utilizando avançadas tecnologias, com marcante presença da eletrônica, em países de forte produção científica, como Estados Unidos e Canadá.
3. Busca da tumba e o ossuário de Caifás
O argumento que preside este segmento é: se Caifás é autêntico, Joset – daí toda a família de Jesus – também o é. De maneira muito clara se sugere o seguinte: a arqueologia oficial aceita muita coisa, desde que não envolva a familia de Jesus. No meu entender, sugere até mesmo um complô eclesiástico para manter a versão oficial das Igrejas. Há um “entulho ideológico” que impede o acesso à tumba de Jesus? Observo este paralelo entre o entulho físico do cano e o entulho simbólico sugerido… Aquele pode ser removido por um simples encanador, enquanto este resiste… A figura de David Mevorah simboliza esta resistência! Então, com quem fica o telespectador? Quer ver o que há além do entulho? Quer remover o seu próprio “entulho ideológico”, herdado através de sua educação religiosa formal? Por que não olhar do outro lado? Não é o que fazem os intrépidos caçadores de tesouros nos conhecidos filmes admirados por milhões?
4. Maria Madalena
Maria Madalena é a chave aqui: reputação restabelecida, liderança consolidada, ordenada (?), enquanto a atitude da hierarquia é colocada sob suspeita. A narrativa oficial é ironizada e substituída o tempo todo, sugerindo a existência de uma visão distorcida desenvolvida ao longo dos séculos. Sobre as estatísticas nada falarei: é assunto complicado, do qual nada entendo, e, por isso remeto o leitor para as explicações sobre o raciocínio de Andrey Feuerverger como estão no biblioblog de Mark Goodacre.
5. Mariamne, Madalena e os Atos de Filipe
Todo o segmento está fundado nos Atos de Filipe e na leitura de François Bovon, culminando no símbolo encontrado ao mesmo tempo em Dominus Flevit e na entrada da tumba de Talpiot. Cujo significado, aliás, permanece desconhecido. Maria Madalena é colocada nas alturas. Em determinado ponto, Tal Ilan chega a dizer que Madalena foi a verdadeira fundadora do cristianismo.
Aqui já se percebe, passado mais da metade do documentário, como o raciocínio é sempre na base de suposições que suportam outras suposições, que, por sua vez, suportam outras… É uma seqüência de: e se… e se… devia haver… se o ossuário… mas se… E desse conjunto frágil de suposições, supostamente fundadas, tiram-se facilmente conclusões, como: logo, claro, incrível… Todo o peso da argumentação recai sobre um frágil condicional. Contudo, para reforçar tal argumentação, a palavra mágica dos documentários aparece de vez em quando: “evidências”. Vamos procurar evidências… as evidências indicam… encontramos evidências…
Neste ponto o documentário já pode colocar na boca dos arqueólogos que examinaram Talpiot em 1980 algo que jamais suspeitaram: 26 anos atrás arqueólogos encontraram ossuários da família de Jesus em Talpiot… Enquanto isso, Jacobovici lança o desafio para sua equipe, mas também para o telespectador: temos de achar a tumba, a tumba da família sagrada, diz ao perceber que estavam na segunda tumba, a tumba intacta, a tumba errada.
6. DNA
Toda a seqüência está fundada no exame de DNA, uma palavra mágica hoje nos meios de comunicação, nos filmes policiais, nos tribunais, que resolve qualquer dúvida. Se o telespectador ainda não estava convencido, aqui não há como escapar: o DNA mostra que Jesus e Mariamne, quer dizer, Maria Madalena não eram filhos da mesma mãe, sendo, portanto, marido e mulher.
O que estamos vendo aqui é liberdade de pensamento em relação às versões oficiais das Igrejas ou independência para chutar em todas as direções? E se os personagens fossem membros da mesma família, mas com outro grau de parentesco? E por que foram retiradas amostras exatamente destes dois ossuários e não dos outros? No debate que é apresentado após o filme, ao serem pressionados sobre isso, Jacobovici e Tabor alegam que os outros haviam sido aspirados, limpos pelo IAA para alguma exposição – não documentada por eles – e por isso não continham nenhuma amostra de DNA que pudesse ser facilmente retirada. Ora, por que não providenciaram a retirada de amostras por métodos mais sofisticados, se ficaram 3 anos trabalhando no documentário? Argumenta Jacobovici que ele é apenas um jornalista, que ele fez o seu trabalho, que apresentou o que achava relevante… e que ele espera que os cientistas prossigam com o trabalho mais sofisticado… Claramente, ele não quer correr nenhum risco de ver sua proposta desacreditada por provas científicas.
7. Descoberta a verdadeira tumba
Encontrada a tumba de Talpiot, o leitmotiv é: emoção pela descoberta. A indicação decisiva vem, diz o documentário, da “visita quase profética de uma mulher cega”. Noto aqui a presença do providencial, o desígnio invisível que guia os caçadores para a descoberta decisiva: “visita quase profética”. Interessante: após mais de 1 hora de convencimento do telespectador, entra-se, de fato, na tumba. É tanta espera, tanta ansiedade, que é um alívio quando ele, telespectador, também entra na tumba guiado pela mão segura de Jacobovici.
8. O décimo ossuário está desaparecido: pode ser o Ossuário de Tiago?
O segmento está todo fundado no Ossuário de Tiago como sendo o ossuário desaparecido da coleção de Talpiot. Ora, quem acompanhou a polêmica sobre o Ossuário de Tiago sabe que tal identificação é bastante problemática. Oded Golan e outros envolvidos com este ossuário foram parar nos tribunais israelenses, julgados por fraude, o processo está em andamento. Claro, nada disso é dito no documentário.
Quero observar aqui que são tantos os dados, tão complexos, tão “científicos”, relatados de maneira tão bem dosada, que um leigo no assunto só pode aceitar o que lhe é apresentado como autêntico, pois não há como distinguir o possível do real, o “se” do comprovado.
9. A pátina combina: o ossuário desaparecido é o Ossuário de Tiago
De maneira quase mágica é resolvido o problema do décimo ossuário desaparecido, recorrendo-se ao controvertido Ossuário de Tiago. Remeto o leitor para a discussão dos especialistas e que foi postado nos biblioblogs. Procure nos links deste post aqui. Agora, o caso do livro de Jonas é, literalmente, “pura picaretagem”. Jesus falava em códigos?
10. Judá, filho de Jesus e Madalena
Um final em grande estilo: finalmente foi encontrado o filho de Jesus. Isto resolve muitos problemas, não? Torna Jesus alguém mais humano, resolve o problema de sua ligação com Madalena e põe um ponto final no irritante debate dos exegetas sobre a identidade do discípulo amado.
Mas ao selar a tumba com seus segredos, deixa aberta a perspectiva de continuação, com “O sepulcro esquecido de Jesus 2”.
Enfim, como disse Milton Moreland, do Rhodes College de Memphis, em encontro regional da SBL nos USA na semana passada: “The fake became the real”. Expressão que significa, em tradução livre, A fraude se transformou em verdade. O que ele está dizendo é que os caçadores de relíquias no Oriente Médio tomaram o lugar da real pesquisa arqueológica. E mais: vendem ao público a ideia de que esta é a autêntica arqueologia.
Não importa as suposições levantadas mas os fatos sim esse nos importa, será que os achados arquelogicos são fraudes? ou será mera coincidência que nesta tumba exista um relacionamento de nomes com os fatos biblicos referente a Jesus e sua familia? pode ter havido no passado uma familia que se alie as caracteristicas da familia de Jesus,se houve é um fato inusitado,como já disse não me interessa os argumentos conclusivos do historiador se ele conclui que Maria era mulher de Jesus que tiveram um filho tudo isto é suposição,mas os fatos sim contra esses não se pode refutar.
Ora, acho que Jonathan L. Reed, que participou do debate após o documentário, disse muito bem: isto é arqueo-pornô. Para dizer que é algo que você sabe que está errado, mas do qual não consegue tirar os olhos.
Jonathan L. Reed é autor, com John D. Crossan, de um interessante livro sobre Jesus: Excavating Jesus: Beneath the stones, behind the texts. New York: HarperCollins, 2002, 298 p. ISBN 0-0606-1634-2.
É bom ler também o artigo publicado por ele no SBL Forum com o título de Response to the Lost Tomb of Jesus.
A arqueologia é “cega, surda e muda”. Precisa ser interpretada. E é aí que se vê no documentário o discurso duplo de que fala François Bovon em seu artigo, também no SBL Forum.
Ou, como diz J. Reed em seu artigo: In both the film and book, a series of experts on archaeology, epigraphy, ancient names, DNA, statistics, and esoteric texts are interviewed. They are not told about the overarching thesis, but each is asked about a single component of the puzzle, which the producers skillfully edit into a compelling story. Confidentiality agreements must be signed for the sake of secrecy, jettisoning peer review, the gold standard of academic integrity. Only the principals involved had the whole picture, and scholars are made marionette-like to play their parts (…) The Lost Tomb of Jesus is not science or archaeology, not historical inquiry or serious journalism, though it includes a smattering of each…
Ora, desde Kant, no século XVIII, quem trabalha com ciência sabe que não podemos conhecer o “noumenon”, o em si, mas sua manifestação, o fenômeno… Que história é essa de que os “achados arqueológicos” falam por si? Quem falou neste documentário foram as mentes que criaram e interpretaram os fatos. Por isso eles podem ser discutidos, e, dependendo de seus fundamentos, aceitos ou rejeitados…
“A arqueologia é “cega, surda e muda”. Precisa ser interpretada.”
Me parece que o mesmo pode ser dito a respeito das religiões critãs e suas bases historiográficas. Sejam evangelos, pergaminhos, livros ou testemunhos, é notório que através dos séculos estes objetos foram transformados em “quase entidades” pelo clero, se alimentando e se desenvolvendo sob influência dos mais diversos contextos hitóricos, sempre em favor da lógica do poder, fosse ele clerical ou monarca. Voltaire e Hume que o digam.
Assim, como poderíamos – não estou entrando no mérito dos métodos utilizados no documentário – legitimar os evengelhos bíblicos, ou mesmo os não bíblicos e outros escritos, sem dar o mesmo tratamento às descobertas e estudos da arqueologia?
Por muito tempo e, me atrevo a dizer, até os dias de hoje, a religião utlizou a “entidade Fé” como critério auto-suficiente para dar validade, veracidade e até aplicabilidade aos seus dogmas.
Este serve muito bem a aqueles à quem a fé basta. Mas será correto privar de crédito os demais seres humanos pensantes e a comunidade científica, rebaixando arqueólogos e cientistas, mesmo que sejam os “tesouros” históricos, materiais etc, ao status de mercenários? Parece que não…
Fosse assim, enterraríamos as discussões e aguardaríamos, em vão, o monopólio da Fé sobre o pensamento teológico e filosófico.
E quanto aos livros biblico antigos enterrados no sepulcro?
Daniel,
Por favor, releia o post anterior: “O Sepulcro Esquecido de Jesus: o filme”. No item 9 falo dos livros encontrados na tumba, transformada, em 1980, em genizá, depósito de manuscritos usados e desgastados, provenientes de alguma sinagoga de Jerusalém. Coisa corriqueira…
Se os apóstolos ou seguidores de um suposto Jesus que não ressuscitou, quisessem passar Seus ensinamentos para a posteridade, teriam eles deixado tais “provas” ou “evidências” todas juntinhas num mesmo lugar, para que no futuro alguém as encontrasse e as tornasse de conhecimento público, derrubando por terra todo o esforço?
Isto é “prova” plantada.