Revista INK da Tyndale House

A revista INK, da Tyndale House, Cambridge, Reino Unido, oferece ao leitor artigos instigantes sobre a linguagem, a história e o contexto cultural da Bíblia. AcessoRevista INK, Tyndale House, Cambridge, Reino Unido gratuito.

Tyndale House é uma comunidade internacional de pesquisa evangélica focada em línguas bíblicas, manuscritos bíblicos e o mundo antigo.

Tyndale House’s termly magazine, Ink, offers thought-provoking articles about the language, history and cultural context of the Bible.

Tyndale House is an international evangelical research community focused on Bible languages, Bible manuscripts and the ancient world.

O que é compaixão, segundo os evangelhos?

O verbo σπλαγχνίζομαι (splanchnízomai) traduz a ideia de ser movido de compaixão, comover-se, uma emoção muito forte, pois tem o significado de sentir com as entranhas. Em o Novo Testamento este verbo é usado somente nos evangelhos.σπλαγχνίζομαι (splanchnízomai) traduz a ideia de ser movido de compaixão, comover-se

O substantivo σπλάγχνα (splánchna), no plural, tem suas origens ainda no grego clássico, quando era empregado para indicar as partes da vítima que eram oferecidas em sacrifício aos deuses. O termo referia-se às partes consideradas mais nobres dos animais: fígado, coração, rins e pulmões. Usava-se também σπλάγχνα (splánchna) para designar os órgãos sexuais masculinos e o útero ou ventre materno como locais dos poderes da concepção e do nascimento.

Porém, σπλάγχνα (splánchna) podia ser usado em sentido metafórico, representando a sede das paixões, ou seja, o lugar dos desejos incontroláveis e dos sentimentos, podendo significar compaixão ou amor. Mas não foi no grego clássico, e sim no judaísmo tardio que o termo passou a expressar a atitude de ter misericórdia, sentir dó, ter compaixão, como sentimentos provenientes do coração.

Para conhecer mais sobre isso, recomendo a leitura de:

:. PERONDI, I. Presenças do verbo mover-se de compaixão (σπλαγχνίζομαι) nos evangelhos sinóticos. Atualidade Teológica, Rio de Janeiro, v. 46, p. 162-173, jan./abr. 2014 (download em pdf)

O objetivo da presente pesquisa é analisar a presença do verbo σπλαγχνίζομαι (splanchnízomai): “mover-se, ser movido de compaixão, comover-se” nos evangelhos sinóticos. Será feita uma breve investigação desde o uso no grego clássico, na LXX e outros escritos pré-cristãos para identificar a evolução do seu sentido primitivo até o uso exclusivamente teológico caracterizando ações compassivas narradas nos Evangelhos sinóticos. E uma análise comparativa ressaltando as semelhanças e diferenças entre o uso do verbo nos evangelhos de Marcos e Mateus em comparação com o evangelho de Lucas.

:. PERONDI, I.; CATENASSI, F. Z. Misericórdia, compaixão e amor: o rosto de Deus no Evangelho de Lucas. Cadernos Teologia Pública, v. 13, n. 118, 2016 (download em pdf)

rahamîm = misericórdia, derivada de rehem = úteroLucas, o autor do terceiro Evangelho, é um escritor habilidoso. Em sua narrativa, revela a salvação em Jesus, passando por traços do rosto de Deus, desenhados na misericórdia, compaixão e amor. Nessa edição dos Cadernos Teologia Pública, objetivamos oferecer um estudo da misericórdia no Evangelho de Lucas. Passamos pela análise do uso dos termos no campo semântico da misericórdia e compaixão pelo terceiro evangelista, para seguir com o estudo de passagens e temas específicos: os evangelhos da infância, o uso intencional da expressão “mover-se de compaixão”, as parábolas de misericórdia. Finalmente, mostramos no Evangelho de Lucas a preferência de Jesus pelos pequenos, o papel privilegiado das mulheres e os grandes perdões que marcam o relato, especialmente o do malfeitor arrependido na cruz. Ao final, a misericórdia é identificada no terceiro Evangelho como programa de vida, que deve fundamentar a prática das comunidades cristãs. Lucas nos ensina que a forma mais justa de enxergar a história é pela misericórdia.

:. Bíblia: misericórdia e compaixão. Estudos Bíblicos, Petrópolis, v. 33, n. 130, abr/jun 2016.

Muito se pode refletir e dizer sobre a misericórdia e compaixão de Deus. Neste número podemos contar com a diversidade de colaboradores que escrevem sobre o tema tanto a partir do Antigo como do Novo Testamento.

:. Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco sobre a fraternidade e a amizade social – 3 de outubro de 2020.

1. «FRATELLI TUTTI»: escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si». Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.

2. Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para dedicar esta nova encíclica à Misericórdiafraternidade e à amizade social. Com efeito, São Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.

:. DA SILVA, A. J. Praticar a solidariedade: observações sobre hesedh na Bíblia Hebraica. Post publicado no Observatório Bíblico em 30.06.2020.

Despertar, espalhar, estimular, multiplicar, praticar, promover, provocar, reforçar, resgatar a solidariedade. Estas são algumas das expressões recolhidas em uma busca no Google por “solidariedade na pandemia”, uma referência às ações solidárias desejadas ou executadas durante a pandemia da covid-19 em 2020. Pois você sabia que no Antigo Testamento existe, em hebraico, um conceito semelhante a solidariedade? É hesedh. Vamos aprender mais sobre ele.

A queda de Cabul

Derrota no Afeganistão

Por Tariq Ali

A tomada de Cabul pelo Talibã em 15 de agosto de 2021 é uma grande derrota política e ideológica para o Império Americano. Os helicópteros lotados que transportavam funcionários da Embaixada dos Estados Unidos para o aeroporto de Cabul lembravam surpreendentemente as cenas em Saigon – agora Cidade Ho Chi Minh – em abril de 1975. A velocidade com que as forças do Talibã invadiram o país foi impressionante; sua perspicácia estratégica notável. Uma ofensiva de uma semana terminou triunfantemente em Cabul. O exército afegão de 300.000 homens desmoronou. Muitos se recusaram a lutar. Na verdade, milhares deles foram para o Talibã, que imediatamente exigiu a rendição incondicional do governo fantoche. O presidente Ashraf Ghani, um dos favoritos da mídia americana, fugiu do país e buscou refúgio em Omã. A bandeira do emirado revivido está agora tremulando sobre seu palácio presidencial. Em alguns aspectos, a analogia mais próxima não é Saigon, mas o Sudão do século XIX, quando as forças do Mahdi invadiram Cartum e martirizaram o general Gordon. William Morris comemorou a vitória do Mahdi como um revés para o Império Britânico. Ainda assim, enquanto os insurgentes sudaneses mataram uma guarnição inteira, Cabul mudou de mãos com pouco derramamento de sangue. O Talibã nem mesmo tentou tomar a embaixada dos EUA, muito menos mirar no pessoal norte-americano.

O vigésimo aniversário da “Guerra ao Terror” terminou, assim, em uma derrota previsível e prevista para os EUA, a Otan e outros que embarcaram na onda. No entanto,O Afeganistão - G1: infográfico elaborado em 17/08/2021 se considerarmos as políticas do Talibã – tenho sido um crítico severo por muitos anos – sua conquista não pode ser negada. Em um período em que os EUA destruíram um país árabe após o outro, não surgiu nenhuma resistência que pudesse desafiar os ocupantes. Essa derrota pode muito bem ser um ponto de inflexão. É por isso que os políticos europeus estão reclamando. Eles apoiaram os EUA incondicionalmente no Afeganistão e também sofreram uma humilhação, tanto quanto a Grã-Bretanha.

Biden ficou sem escolha. Os Estados Unidos anunciaram que se retirariam do Afeganistão em setembro de 2021 sem cumprir nenhum de seus objetivos “liberacionistas”: liberdade e democracia, direitos iguais para as mulheres e a destruição do Talibã. Embora possa estar invicto militarmente, as lágrimas derramadas por liberais amargurados confirmam a extensão mais profunda de sua perda. A maioria deles – Frederick Kagan no New York Times, Gideon Rachman no Financial Times – acredita que a retirada deveria ter sido adiada para manter o Talibã sob controle. Mas Biden estava simplesmente ratificando o processo de paz iniciado por Trump, com o apoio do Pentágono, que viu um acordo alcançado em fevereiro de 2020 na presença dos EUA, Talibã, Índia, China e Paquistão. O sistema de segurança norte-americano sabia que a invasão havia falhado: o Talibã não poderia ser subjugado, não importa quanto tempo permanecesse. A noção de que a retirada precipitada de Biden de alguma forma fortaleceu os militantes é bobagem.

O fato é que, ao longo de vinte anos, os Estados Unidos não conseguiram construir nada que pudesse resgatar sua missão. A Zona Verde brilhantemente iluminada sempre foi cercada por uma escuridão que os seus moradores não podiam compreender. Em um dos países mais pobres do mundo, bilhões eram gastos anualmente no ar-condicionado dos quartéis que abrigavam soldados e oficiais norte-americanos, enquanto comida e roupas eram regularmente transportadas de bases no Catar, Arábia Saudita e Kuwait. Não foi surpresa que uma enorme favela crescesse nas periferias de Cabul, enquanto os pobres se reuniam para procurar o que quer que fosse nas latas de lixo. Os baixos salários pagos aos serviços de segurança afegãos não conseguiram convencê-los a lutar contra seus compatriotas. O exército, formado ao longo de duas décadas, foi infiltrado em um estágio inicial por apoiadores do Talibã, que receberam treinamento gratuito no uso de equipamento militar moderno e atuaram como espiões da resistência afegã.

Esta foi a realidade miserável da “intervenção humanitária”. Embora haja crédito onde o crédito é devido: o país testemunhou um enorme aumento nas exportações. Durante os anos do Talibã, a produção de ópio foi rigorosamente monitorada. Desde a invasão dos Estados Unidos, ele aumentou dramaticamente e agora representa 90% do mercado global de heroína – fazendo com que se pergunte se esse conflito prolongado deve ser visto, pelo menos parcialmente, como uma nova guerra do ópio. Trilhões de dólares foram feitos em lucros e divididos entre os setores afegãos que serviram à ocupação. Os oficiais ocidentais foram generosamente pagos para permitir o comércio. Um em cada dez jovens afegãos agora é viciado em ópio. Os números das forças da Otan não estão disponíveis.

Quanto ao status das mulheres, nada mudou muito. Houve pouco progresso social fora da Zona Verde infestada de ONGs. Uma das principais feministas do país no exílio observou que as mulheres afegãs tinham três inimigos: a ocupação ocidental, o Talibã e a Aliança do Norte. Com a saída dos Estados Unidos, disse ela, eles terão dois. (No momento em que este artigo foi escrito, isso talvez possa ser alterado para um, já que os avanços do Talibã no norte eliminaram as principais facções da Aliança antes de Cabul ser capturada).

Apesar dos repetidos pedidos de jornalistas e ativistas, nenhum número confiável foi divulgado sobre a indústria do trabalho sexual que cresceu para servir aos exércitos de ocupação. Tampouco há estatísticas confiáveis de estupro – embora os soldados norte-americanos usem frequentemente violência sexual contra “suspeitos de terrorismo”, estuprem civis afegãos e deem luz verde ao abuso infantil por milícias aliadas. Durante a guerra civil iugoslava, a prostituição se multiplicou e a região tornou-se um centro de tráfico sexual. O envolvimento da ONU neste negócio lucrativo foi bem documentado. No Afeganistão, os detalhes completos ainda não foram revelados.

Mais de 775.000 soldados norte-americanos lutaram no Afeganistão desde 2001. Destes, 2.448 foram mortos, junto com quase 4.000 contratados norte-americanos. Aproximadamente 20.589 ficaram feridos em ação, de acordo com o Departamento de Defesa. Os números de baixas afegãs são difíceis de calcular, uma vez que as “mortes de inimigos” que incluem civis não são contadas. Carl Conetta, do Projeto de Alternativas de Defesa, estimou que pelo menos 4.200–4.500 civis foram mortos em meados de janeiro de 2002 como consequência do ataque dos EUA, tanto diretamente como vítimas da campanha de bombardeio aéreo e indiretamente na crise humanitária que se seguiu. Em 2021, a Associated Press informava que 47.245 civis morreram por causa da ocupação. Ativistas de direitos civis afegãos deram um total mais alto, insistindo que 100.000 afegãos (muitos deles não combatentes) morreram e três vezes esse número ficaram feridos.

Em 2019, o Washington Post publicou um relatório interno de 2.000 páginas encomendado pelo governo federal dos EUA para anatomizar os fracassos de sua guerra mais longa: “The Afeghanistan Papers”. Foi baseado em uma série de entrevistas com generais dos EUA (aposentados e em serviço), conselheiros políticos, diplomatas, trabalhadores humanitários e assim por diante. A avaliação combinada deles foi condenatória. O general Douglas Lute, o “czar da guerra afegã” sob Bush e Obama, confessou que “não tínhamos uma compreensão fundamental do Afeganistão – não sabíamos o que estávamos fazendo… Não tínhamos a menor noção do que estávamos assumindo… Se o povo americano soubesse a magnitude dessa disfunção.” Outra testemunha, Jeffrey Eggers, um militar das forças especiais da Marinha aposentado e funcionário da Casa Branca no governo de Bush e Obama, destacou o grande desperdício de recursos: “O que recebemos por este esforço de 1 trilhão de dólares? Valia 1 trilhão de dólares?… Depois da morte de Osama bin Laden, eu disse que Osama provavelmente estava rindo em sua sepultura, considerando o quanto gastamos no Afeganistão.” E ele poderia ter acrescentado: “E nós ainda perdemos.”

Quem era o inimigo? O Talibã, Paquistão, todos os afegãos? Um veterano soldado americano estava convencido de que pelo menos um terço da polícia afegã era viciada em drogas e outra parte considerável era de apoiadores do Talibã. Isso representou um grande problema para os soldados americanos, conforme testemunhou um chefe não identificado das Forças Especiais em 2017: “Eles pensaram que eu iria até eles com um mapa para mostrar onde vivem os mocinhos e os bandidos… Foram necessárias várias conversas para eles entenderem que eu não tinha essa informação em minhas mãos. No início, eles ficavam perguntando: ‘Mas quem são os bandidos, onde estão eles?’”.

Donald Rumsfeld expressou o mesmo sentimento em 2003: “Não tenho visibilidade de quem são os bandidos no Afeganistão ou no Iraque”, escreveu ele. “Eu li todos os informes e parece que sabemos muito, mas, na verdade, quando você pressiona, descobre que não temos nada que possa ser acionado. Lamentavelmente, somos deficientes em informação humana.” A incapacidade de distinguir entre um amigo e um inimigo é um problema sério – não apenas no nível schmittiano, mas prático. Se você não consegue dizer a diferença entre aliados e adversários depois de um ataque IED [Nota: improvised explosive device = artefato explosivo improvisado ou bomba caseira] em um mercado urbano lotado, você responde atacando a todos e criando mais inimigos no processo.

O coronel Christopher Kolenda, conselheiro de três generais, apontou outro problema com a missão dos Estados Unidos. “A corrupção foi galopante desde o início”, disse ele; o governo Karzai foi “autoorganizado em uma cleptocracia”. Isso minou a estratégia pós-2002 de construir um Estado que pudesse sobreviver à ocupação. “A corrupção mesquinha é como o câncer de pele, existem maneiras de lidar com isso e provavelmente você ficará bem. A corrupção dentro dos ministérios, de nível superior, é como o câncer de cólon; é pior, mas se você perceber a tempo, provavelmente está tudo bem. A cleptocracia, entretanto, é como um câncer no cérebro; é fatal.” Claro, o Estado do Paquistão – onde a cleptocracia está incorporada em todos os níveis – sobreviveu por décadas. Mas as coisas não foram tão fáceis no Afeganistão, onde os esforços de construção da nação foram liderados por um exército de ocupação e o governo central tinha escasso apoio popular.

O que dizer dos relatórios falsos de que o Talibã foi derrotado para nunca mais voltar? Uma figura importante do Conselho de Segurança Nacional refletiu sobre as mentiras difundidas por seus colegas: “Foram as explicações deles. Por exemplo, os ataques [do Talibã] estão piorando? ‘Isso porque há mais alvos para eles atirarem, então mais ataques são um falso indicador de instabilidade.’ Então, três meses depois, os ataques ainda estão piorando? ‘É porque o Talibã está ficando desesperado, então é na verdade um indicador de que estamos vencendo’… E isso continuou e continuou por duas razões, para fazer com que todos os envolvidos parecessem bem e para fazer parecer que as tropas e os recursos estavam tendo o tipo de efeito em que removê-los causaria a deterioração do país.”

Tudo isso era um segredo aberto nas chancelarias e nos ministérios da defesa da Otan na Europa. Em outubro de 2014, o secretário de Defesa britânico Michael Fallon admitiu que “Erros foram cometidos militarmente, erros foram cometidos pelos políticos da época e isso remonta a 10, 13 anos… Não vamos enviar tropas de combate de volta ao Afeganistão, sob quaisquer circunstâncias.” Quatro anos depois, a primeira-ministra Theresa May realocou as tropas britânicas para o Afeganistão, dobrando seus combatentes “para ajudar a enfrentar a frágil situação de segurança”. Agora a mídia do Reino Unido está ecoando o Ministério das Relações Exteriores e criticando Biden por ter feito o movimento errado na hora errada, com o chefe das Forças Armadas britânicas, Sir Nick Carter, sugerindo que uma nova invasão poderia ser necessária. Defensores conservadores, nostálgicos coloniais, jornalistas fantoches e bajuladores de Blair estão fazendo fila para pedir uma presença britânica permanente no estado dilacerado pela guerra.

O que é surpreendente é que nem o General Carter nem seus substitutos parecem ter reconhecido a escala da crise enfrentada pela máquina de guerra dos EUA, conforme estabelecido em “The Afghanistan Papers”. Enquanto os planejadores militares norte-americanos lentamente despertam para a realidade, seus colegas britânicos ainda se apegam a uma imagem fantasiosa do Afeganistão. Alguns argumentam que a retirada colocará em risco a segurança da Europa, com o reagrupamento da Al-Qaeda sob o novo emirado islâmico. Mas essas previsões são falsas. Os EUA e o Reino Unido passaram anos armando e ajudando a Al-Qaeda na Síria, como fizeram na Bósnia e na Líbia. Esse fomento do medo só pode funcionar em um pântano de ignorância. Para o público britânico, pelo menos, não parece ter funcionado. A história às vezes imprime verdades urgentes em um país por meio de uma demonstração vívida de fatos ou de uma exposição das elites. A retirada atual provavelmente será um desses momentos. Os britânicos, já hostis à Guerra ao Terror, poderiam endurecer em sua oposição a futuras conquistas militares.

Tariq Ali (nascido em 1943)O que o futuro guarda? Replicando o modelo desenvolvido para o Iraque e a Síria, os EUA anunciaram uma unidade militar especial permanente, composta por 2.500 soldados, a ser estacionada em uma base do Kuwait, pronta para voar para o Afeganistão e bombardear, matar e mutilar caso seja necessário. Enquanto isso, uma delegação poderosa do Talibã visitou a China em julho passado, prometendo que seu país nunca mais seria usado como plataforma de lançamento para ataques a outros estados. Discussões cordiais foram mantidas com o Ministro das Relações Exteriores da China, supostamente cobrindo relações comerciais e econômicas. A cúpula relembrou encontros semelhantes entre mujahidin afegãos e líderes ocidentais durante a década de 1980: os primeiros aparecendo com seus trajes wahabitas e cortes de barba regulamentares contra o cenário espetacular da Casa Branca ou o número 10 de Downing Street [Nota: Residência do Primeiro Ministro Britânico]. Mas agora, com a Otan em retirada, os principais atores são China, Rússia, Irã e Paquistão (que sem dúvida forneceu assistência estratégica ao Talibã, e para quem este é um grande triunfo político-militar). Nenhum deles deseja uma nova guerra civil, em total contraste com os EUA e seus aliados após a retirada soviética. As estreitas relações da China com Teerã e Moscou podem permitir que trabalhe no sentido de assegurar alguma paz frágil para os cidadãos deste país traumatizado, auxiliado pela contínua influência russa no norte.

Muita ênfase foi dada à idade média da população no Afeganistão: 18 anos, em uma população de 40 milhões. Por si só, isso não significa nada. Mas há esperança de que os jovens afegãos se esforcem por uma vida melhor após o conflito de quarenta anos. Para as mulheres afegãs, a luta não acabou, mesmo que apenas um inimigo permaneça. Na Grã-Bretanha e em outros lugares, todos aqueles que querem continuar lutando devem mudar seu foco para os refugiados que logo estarão batendo à porta da Otan. No mínimo, refúgio é o que o Ocidente deve a eles: uma pequena reparação por uma guerra desnecessária.

Tariq Ali (Lahore, 21 de outubro de 1943) é um escritor, jornalista e historiador britânico de origem paquistanesa. Escreve periodicamente para o jornal britânico The Guardian, para a revista New Left Review, CounterPunch, a London Review of Books e SinPermiso.

Fonte: Blog da Boitempo – 16/08/2021. Publicado originalmente, em inglês, em Sidecar, blog da New Left Review, em 16 de agosto 2021. A tradução é de Valerio Arcary.

 

Debacle in Afghanistan – Sidecar: 16 August 2021

The fall of Kabul to the Taliban on 15 August 2021 is a major political and ideological defeat for the American Empire. The crowded helicopters carrying US Embassy staff to Kabul airport were startlingly reminiscent of the scenes in Saigon – now Ho Chi Minh City – in April 1975. The speed with which Taliban forces stormed the country was astonishing; their strategic acumen remarkable. A week-long offensive ended triumphantly in Kabul. The 300,000-strong Afghan army crumbled. Many refused to fight. In fact, thousands of them went over to the Taliban, who immediately demanded the unconditional surrender of the puppet government. President Ashraf Ghani, a favourite of the US media, fled the country and sought refuge in Oman. The flag of the revived Emirate is now fluttering over his Presidential palace. In some respects, the closest analogy is not Saigon but nineteenth-century Sudan, when the forces of the Mahdi swept into Khartoum and martyred General Gordon. William Morris celebrated the Mahdi’s victory as a setback for the British Empire. Yet while the Sudanese insurgents killed an entire garrison, Kabul changed hands with little bloodshed. The Taliban did not even attempt to take the US embassy, let alone target American personnel.

The twentieth anniversary of the ‘War on Terror’ thus ended in predictable and predicted defeat for the US, NATO and others who clambered on the bandwagon. However one regards the Taliban’s policies – I have been a stern critic for many years – their achievement cannot be denied. In a period when the US has wrecked one Arab country after another, no resistance that could challenge the occupiers ever emerged. This defeat may well be a turning point. That is why European politicians are whinging. They backed the US unconditionally in Afghanistan, and they too have suffered a humiliation – none more so than Britain… (Read more)

Novelas bíblicas

KAEFER, J. A.; DOS SANTOS, A. S. (orgs.) Novelas Bíblicas: Sabedoria da Bíblia para os dias de hoje. São Paulo: Paulus, 2021, 136 p. – ISBN 9786555622409KAEFER, J. A.; DOS SANTOS, A. S. (orgs.) Novelas Bíblicas: Sabedoria da Bíblia para os dias de hoje. São Paulo: Paulus, 2021

A novela bíblica é um gênero literário por excelência para o exercício da interação entre a comunidade que produziu o texto e a comunidade que o lê e o atualiza. Com suas cores próprias, a novela bíblica é um artifício popular que cresce em importância no período posterior ao exílio babilônico (538-145 A.E.C.). Ela assume o papel da profecia na defesa dos direitos do povo em Israel, mantém a esperança e aponta o caminho a seguir. Numa sociedade que cada vez mais centraliza o poder e a religião, a novela bíblica se torna o respiro do clamor popular. É nessa perspectiva que este livro apresenta as novelas bíblicas de José e seus irmãos, Jó, Rute, Cântico dos Cânticos, Ester, Daniel, Judite e Jonas.

Estudos sobre o Antigo Oriente Médio por Mario Liverani

LIVERANI, M. Historiography, Ideology and Politics in the Ancient Near East and Israel. Abingdon: Routledge, 2021, 338 p. – ISBN 9780367742485.LIVERANI, M. Historiography, Ideology and Politics in the Ancient Near East and Israel. Abingdon: Routledge, 2021

Neste volume, Niels Peter Lemche e Emanuel Pfoh apresentam uma antologia de estudos seminais de Mario Liverani, um dos mais importantes estudiosos do Antigo Oriente Médio. Esta coletânea contém 18 ensaios. Ela representa uma importante contribuição para os estudos bíblicos e do Antigo Oriente Médio, expondo as interpretações inovadoras de Liverani em muitos aspectos históricos e ideológicos da sociedade antiga. Os tópicos variam desde as cartas de Amarna e o épico ugarítico até as “origens” de Israel.

In this volume, Niels Peter Lemche and Emanuel Pfoh present an anthology of seminal studies by Mario Liverani, a foremost scholar of the Ancient Near East. This collection contains 18 essays, 11 of which have originally been published in Italian and are now published in English for the first time. It represents an important contribution to Ancient Near Eastern and Biblical Studies, exposing the innovative interpretations of Liverani on many historical and ideological aspects of ancient society. Topics range from the Amarna letters and the Ugaritic epic, to the ‘origins’ of Israel. Historiography, Ideology and Politics in the Ancient Near East and Israel will be an invaluable resource for Ancient Near Eastern and Biblical scholars, as well as graduate and post-graduate students.

Os precursores de Wellhausen

GRÖGER, M. Wellhausens Wegbereiter. Tübingen: Mohr Siebeck, 2021, 429 p. – ISBN 9783161606625.

As investigações de Julius Wellhausen (1844-1918) no Antigo Testamento, por mais engenhosas que sejam em seu projeto básico, foram de muitas maneiras dependentesGRÖGER, M. Wellhausens Wegbereiter. Tübingen: Mohr Siebeck, 2021 dos grandes precursores de sua disciplina. Em seu estudo, Martin Gröger apresenta sete desses pioneiros: Wilhelm Martin Leberecht de Wette, Leopold George, Heinrich Ewald, Karl Heinrich Graf, Wilhelm Vatke, Abraham Kuenen e Abraham Geiger. Martin Gröger reconstrói seus fundamentos teológico-filosóficos e mostra as consequências das respectivas ‘hermenêuticas historiográficas’ para a interpretação do Antigo Testamento.

Julius Wellhausens (1844-1918) Untersuchungen zum Alten Testament, so genial sie in den konstruktiven Grundlinien sind, waren in vielerlei Hinsicht von den grossen Vorlaufern seiner Disziplin abhangig. Martin Groger stellt in seiner Untersuchung sieben dieser Wegbereiter vor: Wilhelm Martin Leberecht de Wette und seinen historisch-asthetischen Zugang, Leopold Georges Fest- und Kulttheorie, Heinrich Ewalds alttestamentliche Literaturgeschichte, Karl Heinrich Grafs Wende zur redaktionsgeschichtlichen Fragestellung, Wilhelm Vatkes spekulative Methode, Abraham Kuenens Versachlichung der Religionsgeschichtsschreibung und schliesslich Abraham Geigers Hinterfragung christlicher Deutungsstereotypen aus der Position des liberalen Judentums. Martin Groger rekonstruiert ihre theologisch-philosophischen Grundlagen und zeigt die Konsequenzen der jeweiligen ‘historiographischen Hermeneutik’ fur die Interpretation des Alten Testaments auf. Diese Arbeit wurde mit dem Promotionspreis der Friedrich-Schiller-Universitat Jena 2017 ausgezeichnet.

Martin Gröger Geboren 1978; Studium der Ev. Theologie in Jena, München, Leipzig, Stellenbosch und Halle (Saale); 2007–14 Inspektor der Stiftung Schlesisches Konvikt Halle, Wohngemeinschaft für Studierende der Kirchenmusik und Theologie; 2014–18 Vikar der Evangelischen Kirche in Mitteldeutschland in Köln-Nippes; 2016 Promotion in Jena; seit 2018 Pfarrer in Köln.

O trabalho do escriba na antiguidade

AST, R. et alii (eds.) Observing the Scribe at Work: Scribal Practice in the Ancient World. Leuven: Peeters, 2021, XIV + 346 p. – ISBN 9789042942868.AST, R. et alii (eds.) Observing the Scribe at Work: Scribal Practice in the Ancient World. Leuven: Peeters, 2021

Os escribas são ao mesmo tempo fundamentais e invisíveis na maioria das sociedades anteriores à revolução tipográfica do século XV. Estão presentes em cada manuscrito, mas são, frequentemente, desconhecidos como figuras históricas. Este volume coleciona contribuições sobre o ofício do escriba, em diversas mídias, como papiros, tabuinhas e inscrições. E em várias sociedades antigas, abrangendo desde o antigo Oriente Médio e o Egito dos faraós até o mundo greco-romano e Bizâncio. Essas discussões do papel do escriba nas culturas pré-tipográficas contribuem para uma melhor compreensão de um dos principais impulsionadores dessas culturas, e iluminam o processo de transmissão do conhecimento e das tradições.

Scribes are paradoxically both central and invisible in most societies before the typographic revolution of the 15th century, witnessed by every manuscript, but often elusive as historical figures. The act of writing is a quotidian and vernacular practice as well as a literary one, and must be observed not only in the outputs of literary copyists or reports of their activities, but in the documents of everyday life. This volume collects contributions on scribal practice as it features on diverse media (including papyri, tablets, and inscriptions) in a range of ancient societies, from the Ancient Near East and Dynastic Egypt through the Graeco-Roman world to Byzantium. These discussions of the role and place of scribes and scribal activity in pre-typographic cultures both contribute to a better understanding of one of the key drivers of these cultures, and illuminate the transmission of knowledge and traditions within and between them.

Quer saber mais sobre Alexandre Magno?

Recomendo a leitura de

The best books on Alexander the Great recommended by Hugh Bowden – Five Books

Hugh Bowden, entrevistado por Benedict King no site Five Books, recomenda 5 livros sobre Alexandre Magno.Alexandre Magno (356-323 a.C.)

Diz a apresentação:

Alexandre Magno nunca perdeu uma batalha e fundou um império que se estendia do Mediterrâneo ao subcontinente indiano. Desde os primeiros tempos, os historiadores têm argumentado sobre a natureza de suas realizações e quais foram suas falhas, tanto como homem quanto como líder político. Aqui, Hugh Bowden, professor de história antiga no King’s College de Londres [desde 1989], escolhe cinco livros para ajudá-lo a entender as controvérsias, o homem por trás das lendas e por que as lendas assumiram as formas que assumiram.

Hugh Bowden é autor de livros como Classical Athens and the Delphic Oracle: Divination and Democracy, Mystery Cults in the Ancient World e Alexander the Great: A Very Short Introduction.

Hugh BowdenAliás, recomendo o site Five Books para vários outros temas. Os entrevistados são respeitados especialistas em suas áreas e a leitura de suas entrevistas são muito proveitosas.

Sobre Alexandre Magno, em minha História de Israel, confira aqui e aqui.

E, na sua opinião, qual foi a causa da morte de Alexandre Magno? Vote nesta enquete aqui.