Ora, ora, os exegetas burgueses vieram visitar o proletário.
Era assim que Frei Rosário Jofilly (1913-2000) recebia o Benjamim, o Emanuel e eu lá em sua morada na Serra da Piedade, MG, a 1746 metros de altitude. Isto acontecia uma ou duas vezes a cada janeiro e a cada julho, desde 1977.
Pois desde 1977, Benjamim Carreira de Oliveira, de Belo Horizonte, MG, Emanuel Messias de Oliveira, de Governador Valadares, MG e eu – nós três, ex-colegas de Roma com Mestrado em Bíblia – passamos a nos encontrar no Asilo São Luiz, – apesar do nome, um orfanato – das Irmãs Auxiliares de N. S. da Piedade, pertinho de Caeté, MG, aos pés da Serra da Piedade, para estudar nas férias.
Primeiro em janeiro. Depois em janeiro e julho. Ficávamos na “Casa do Padre”, que era reservada para nós. Irmã Genoveva cuidava da gente. Estudávamos e preparávamos aulas, cada um em sua área bíblica específica, cerca de 10 horas por dia. Sem TV e sem telefone. Só levávamos livros. Trocávamos muitas ideias e fazíamos caminhadas pela fazenda. Fizemos isso, todos os anos, durante 26 anos, até 2003.
E íamos, os “exegetas burgueses” no dizer dele, visitar o Frei Rosário lá no alto da Serra, para trocar ideias e tomar um copo de vinho acompanhado pelo extraordinário queijo da Serra.
Nestes dias estou recuperando fotos antigas e colocando-as no Instagram. E cheguei, em janeiro de 1982, nas fotos que tenho com Frei Rosário.
Por causa disso, descobri também um texto muito bom que conta a história de Frei Rosário e suas atividades na Serra da Piedade. Foi publicado no jornal Opinião, de Caeté, em 14 de março de 2019. Escrito por J. C. Vargens Tambasco, engenheiro e escritor, ex-diretor Industrial da Cia. Ferro Brasileiro, que residiu em Caeté de 1977 a 1995.
Reproduzo aqui o texto do José Carlos Vargens Tambasco: 70 anos que o Frei Rosário chegou à Serra da Piedade
Sem bulhas nem matinadas, para conduzir soluções ao que vinha se arrastando desde o século XVIII, frei Rosario Jóffily chegava na Serra da Piedade
O Cardeal e a Serra
Em 1946, D. Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta era elevado à dignidade do Cardinalato. Em 07 de maio do mesmo ano, o Cardeal Motta visitava Caeté. Nessa oportunidade recolheu-se por várias horas ao Santuário de Nossa Senhora da Piedade, em orações e meditação. Muito provavelmente meditava re refletia mais profundamente sobre o futuro daquele seu, tão caro, Santuário. Certamente, este era o objeto principal da sua visita.
Ao retornar, dirigiu-se à cidade de Caeté. Já no bairro José Brandão, foi homenageado pelo Diretor Industrial da Companhia Ferro Brasileiro, sendo recebido na Casa de Hóspedes dessa empresa, para um lanche informal. Não sabemos o que foi tratado, pelo Cardeal, nessa breve reunião. Contudo, é bastante provável que ele tenha sondado as intenções da diretoria da empresa quanto ao futuro que imprimiria às atividades de mineração da “canga”, minério de ferro muito abundante na jazida do Descoberto, cuja autorização de lavra já fora concedida, pelo Departamento Nacional da Produção Mineral, à concessionária que a representava.
Empresarialmente, tratava-se de uma situação normal de exploração industrial, para a qual a empresa se preparava desde 1938. Durante muito tempo, a Companhia Ferro Brasileiro fora abastecida em minérios de ferro pela atividade de terceiros; a partir dos anos 1940, ela passou a seguir a via da verticalização da produção e, nesse sentido, adquiriu as minas de Trindade, do Gongo Soco e da Serra da Piedade. Estudos conseqüentes foram produzidos por engenheiro de minas do grupo francês, controlador dessa sociedade, o que definiu as condições de exploração mais convenientes para a Usina Gorceix .
Contudo, a mineração que se pretendia fazer, era a do aproveitamento dos capeamentos de canga; os corpos minerais subjacentes, de hematita compacta, não seriam explorados. Era uma decisão estratégica, que não implicaria em investimentos de porte, salvo aquele investido na propriedade da terra, a qual também se tornaria em reserva florestal para a futura produção de carvão, dada a sua extensão e ao ambiente ecológico propício. Dessa forma, Trindade e Gongo Soco foram exploradas, até o esgotamento da canga, minério muito conveniente para a marcha dos pequenos altos-fornos a carvão vegetal.
Durante os anos 40, já se preparavam os estudos para a exploração do mesmo tipo de minérios, na Serra da Piedade e, nesse sentido, os estudos foram intensificados. Verificou-se que o minério mais conveniente para a exploração econômica, era o situado na parte do Descoberto, cuja área era de propriedade do Asilo São Luís.
Desde o 7 de maio de 1941, a Congregação das Irmàs Auxiliares de Nossa Senhora da Piedade havia firmado acordo com a Companhia Ferro Brasileiro, segundo o qual estaria garantida a participação em royalties legais, à primeira instituição, pela fruição da exploração dos minérios de ferro e de manganês, pela segunda, nas jazidas localizadas nas terras das antigas fazendas Morro Velho e Pedro Paulo, cuja propriedade mineral era, agora, do Asilo São Luís.
O Cardeal Motta constatava, assim, que desde a sua partida do Asilo São Luis – onde viveu seus primeiros momentos como padre, tendo sido o coadjutor do Monsenhor Domingos Pinheiro – a Serra da Piedade voltara a um estado de abandono, em tudo semelhante àquele que ocorrera após o afastamento do Padre Simplício, havia já 74 anos passados. Nova ameaça rondava a Serra portentosa, e o Cardeal o pressentia: a exploração mineral naquele ecossistema dotado de excepcional microclima, e conjunto paisagístico de pequena extensão, mas de elevada importância para Minas Gerais, porquanto também sede de tradições históricas, culturais e religiosas, de nenhum modo desprezáveis.
Não se esquecendo de suas origens mineiras, o Cardeal nutria particular afeição pelo Santuário de Nossa Senhora da Piedade e pelo Asilo São Luis, instituição onde viveu seus primeiros anos de sacerdócio, antes de ser convocado a novas missões, que dali o afastaram. Não obstante ser, naquele momento, Cardeal Arcebispo de São Paulo, desejava tomar à si, também, as preocupações quanto à defesa daquele Santuário. Ainda mais, sabia-o, o Arcebispado de Belo Horizonte também se encontrava de mãos atadas para o encaminhamento de uma solução mais imediata para o problema, faltante que era do elemento humano indicado para a tarefa; além disso, havia as consequências sociais que poderiam eclodir, de uma ação intempestiva, eventualmente exercida contra o prestígio de uma indústria muito bem posicionada na opinião pública de Minas Gerais. E, finalmente, haveria que considerar-se os meios financeiros que pudessem suprir os rendimentos indispensáveis à continuidade da obra social, que era o Asilo São Luis. Era imperioso que aguardassem tempos melhores para qualquer ação.
Contudo, sua visita ao Santuário, mostrava-lhe também quão insensato era, em nome de um suposto desenvolvimento industrial local, descaracterizar aquele patrimônio natural. No centro de suas reflexões não era esquecida a realidade social girando em torno da Companhia Ferro Brasileiro, em sua usina de Caeté, que na época mantinha cerca de 2500 operários na Usina Gorceix, e outros tantos nas atividades rurais e de mineração: era o expressivo total de 25.000 almas, que eram mantidas com os salários pagos pela empresa.. E não era questão prejudicar o funcionamento desse magnífico complexo industrial, através medidas violentas de enfrentamento direto. Decididamente, a Serra da Piedade precisava de um guardião que, antes de tudo, fosse dotado de sensibilidade social, além de ser homem de fé e de vontade férrea na perseguição dos seus objetivos, mesmo que estes parecessem inacessíveis, no momento.
O frade e a Serra
Atuando na cidade de São Paulo, havia um religioso com um tal perfil. Tratava-se de um frade dominicano, então com 36 anos, com doutorado em Teologia, e regendo uma cadeira de Filosofia na PUC de São Paulo. Era, entretanto, dotado de personalidade irrequieta, que ainda não discernira sua verdadeira missão, mas que julgava entrevê-la na vida contemplativa, como ermitão e restaurador de algum velho convento colonial, dos quantos ainda existiam na orla marítima do estado de São Paulo. Ou, quem sabe, naquele de São João da Barra, no estado do Rio de Janeiro?
Procurando um caminho para a realização de tais projetos, frei Rosário Joffily buscou o aconselhamento do Cardeal Motta que, sem mostrar entusiasmo pelas idéias expostas, dissera-lhe considerar que “ele ia muito bem no que fazia, na Universidade”. Não obstante, prometeu-lhe pensar sobre o assunto e voltar a conversar com ele.
Dias depois, o Cardeal Motta o convocava para um encontro, à tarde; conta-lhe que, naquela manhã, recebera um presente que o agradara muito: era uma imagem de Nossa Senhora da Piedade. Considerou que, talvez, aquele fato fosse um sinal, porque o Santuário de Nossa Senhora da Piedade, de Caeté, era local tradicional em Minas Gerais, mas, estava ameaçado pela ação de uma mineradora de ferro. Quem sabe, Frei Rosário poderia ajudar, de alguma forma, na preservação desse Santuário?
Frei Rosário relatou ao autor desta “Comunicação” que, após muito pensar, sentiu que aquela era uma vontade de Deus. E aceitou o desafio.
Em 19 de março de 1949 – como ele próprio gostava de assinalar, no dia de São José – Frei Rosário Joffily se alojava no Santuário da Serra da Piedade, para ali permanecer durante os próximos 51 anos e 5 meses.
Permitam-me os leitores, nesse ponto, algumas lembranças sobre o final da jornada desse religioso, exemplar na sua fé e no cumprimento de sua missão apostólica:- Durante a segunda semana do mês de agosto de 2000 – provavelmente no dia 9, próximo à hora do Ângelus – dirigindo-se aos seus aposentos, ao subir os degraus externos ao mesmo, desequilibrou-se, caindo de costas. Em conseqüência, fraturou o crânio e foi socorrido pelo padre Virgílio Rezi e pelo sr. Leandro Garcia, que lá se encontravam. Transportaram- no à Santa Casa de Caeté, de onde o removeram para o Hospital Madre Teresa, em BH. Ali, frei Rosário chegou consciente, posto ter preenchido, do próprio punho, os documentos para a sua internação.
Frei Rosário foi submetido a uma cirurgia para descompressão craniana, com todo o sucesso. Com muito boas respostas neurológicas, o pós-operatório transcorreu sem novidades maiores. Subitamente, ele foi acometido por uma pneumonia dupla e, na madrugada do dia 17 foi transferido para o CTI daquele hospital. No dia 19, este Autor foi admitido ao CTI, para visitar Frei Rosário, por 5 minutos: ele recebia ventilação mecânica e dormia, sedado. Naquele momento, frei Rosário já era vítima fatal da septicemia que o acometera. Dificilmente haveria possibilidades de recuperação para ele, salvo as esperanças escatológicas dos seus irmãos na fé.
Para aqueles que tiveram longa convivência com Frei Rosário, era muito triste ver aquele homem, outrora tão resoluto e determinado, ali, exposto em uma fragilidade indizível… Naquele momento, em pensamentos, dei o meu adeus ao amigo querido de tantas jornadas. Ele faleceria no dia 25 seguinte.
A luta do frade pela consolidação do Santuário
Frei Rosário Joffily – na vida do século nomeado Jovino Joffily – era nordestino, de tradicional família do Rio Grande do Norte, da linhagem dos Albuquerque Maranhão. Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, o primeiro governador do Rio Grande do Norte, eleito por aclamação popular, caso raro na História da República Velha, foi o seu avô. Frei Rosário costumava dizer que seus ancestrais, saídos do Minho, em Portugal, escolheram o Brasil e o seu Nordeste, desde 1530…
Nasceu na Cidade da Paraíba (hoje, João Pessoa), em 6 de janeiro de 1913, onde seus pais estavam residindo, transitoriamente. Foi educado com os avós maternos, em Natal, onde completou os cursos primário e secundário. Transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde completou o curso colegial e iniciou o superior.
Era primo de Mário Pedrosa, cuja casa frequentava, e onde fez conhecimentos com boa parte da intelectualidade daquela época, no Rio de Janeiro. Entre esses, conheceu Alceu de Amoroso Lima, de quem sempre guardou grande admiração, assim revelando a fonte de sua conversão ao cristianismo. De fato, ele revelaria, bem mais tarde, que a maioria dos seus amigos da época pertenciam ao “Partidão” (Partido Comunista Brasileiro). Dizia ele ter procurado encontrar alguma lógica no marxismo, mas jamais a encontrou; ressalvava, contudo, jamais ter sido um capitalista, sendo essencialmente um socialista.
Realmente, aos 21 anos, em 1934, iniciou o seu noviciado, tendo pertencido, antes, à JUC (Juventude Universitária Católica). Sua conversão não foi a única naquele grupo de jovens, pois se deu também com 15 outros amigos de Jovino, todos participantes da JUC, três dentre esses jovens, Jovino entre eles, tornaram-se Dominicanos; os 12 restantes, orientaram- se para a Ordem dos Beneditinos.
Os estudos religiosos superiores foram realizados na França, onde frei Rosário passou todos os anos da 2ª Guerra Mundial. Regressou ao Brasil após o término do conflito, radicando-se em São Paulo, onde se encontrava em 1948.
Voltamos a encontrar frei Rosário na Serra da Piedade, durante o segundo trimestre de 1949. Ele travou conhecimento com as pessoas que conduziam a vida econômica e social da cidade de Caeté, inclusive com os diretores, gerentes e operários da Companhia Ferro Brasileiro. Também estabeleceu os laços necessários com os administradores públicos do Município.
Na Serra, ponderava e agia com tranqüilidade, pensando em como prover as necessidades mais prementes, de forma a fazer crescer o movimento das romarias ao Santuário: água, energia elétrica e estrada de acesso.
Através dos seus contatos com os operários da CFB, soube que, outrora, havia cerca de uma dezena de anos, houvera uma usina hidro-elétrica montada no ribeirão Caeté, no local denominado Fecho do Funil, próximo à Usina Gorceix. Essa geradora fornecia energia elétrica à cidade de Caeté. Usina pequena, com capacidade limitada a 48 kW, tinha o seu gerador acionado por uma turbina Pelton, adequada às pequenas quedas de água. A usina fora desativada em 1942, após uma grande enchente que destruiu parte considerável das suas instalações.
Frei Rosário descobriu que as partes essenciais dessa usina ainda se encontravam no depósito de recuperados da Prefeitura, conseguiu que essas partes fossem doadas ao Santuário, iniciando a sua recuperação.
Com a ajuda de Antonio Januário Pinto, mestre de mecânica da CFB, além de outros operários mais, frei Rosário fez com que esse equipamento fosse reinstalado no ribeirão do Descoberto, próximo ao Asilo São Luís, com inteiro sucesso. Uma linha de transmissão com tensão de 220 V foi construída, alimentando o Asilo e o Santuário. Em 1950, pela primeira vez na sua História, o Santuário de Nossa Senhora da Piedade era iluminado com luz elétrica.
O passo seguinte seria o de dotar o Santuário com o volume de água potável exigido pelo movimento das romarias. Tendo superado a etapa do suprimento da energia elétrica com a potência possível, frei Rosário providenciou a importação de 4 bombas centrífugas, para água, capazes de bombear a água a uma altura de 150 m. Implantadas próximas ao eixo da trilha de subida da encosta, cada bomba alimentava um dos reservatórios intermediários. Do córrego Descoberto, a primeira bomba recalcava a água ao primeiro reservatório, elevado de 150 m do nível da primeira bomba; daquele, a segunda bomba aspirava a água, para então elevá-la até o próximo reservatório e, assim, sucessivamente.
A primeira bomba foi implantada junto a uma das nascentes do Descoberto, e abrigada no buracão, espécie de embocamento de mina aurífera descontinuada, até hoje existente naquele local, à margem da antiga estrada para Caeté.
Essas bombas, tendo sido recebidas em fins de 1950, em 1951 já estavam instaladas e operando normalmente. Era uma nova etapa de desenvolvimento do Santuário, que se consolidava, quase um século após os importantes trabalhos de construção de um reservatório de água, empreendidos por frei Luís de Ravena, naquele cume. Foi um evento marcante.
O sistema de bombeamento fora concebido e importado com a ajuda da própria gerência local da CFB, que colaborava com o Santuário, colocando à sua disposição as oficinas e máquinas-ferramentas; os operários e profissionais da empresa também davam a sua parcela de contribuição, trabalhando na execução das obras da Serra, após os seus horários normais de trabalho na usina. Grande foi o espírito de colaboração de todos, como podemos aduzir do testemunho de José Zanon Filho e de Jorge de Oliveira Soares:
(…) Nós éramos alunos do SENAI da CFB [Escola Profissional mantida pela CFB, em convênio com o SENAI], e fazíamos estágio nas oficinas da Usina Gorceix. Vez por outra o Januário [Antonio Januário] mandava a gente tornear uma ou outra peça para o ‘Frei”.(…) Às vezes o “Frei” vinha ao nosso torno e, ele mesmo, fazia a sua peça. Com a nossa formatura [2ª turma de profissionais formados naquela Escola], convidamos o “Frei” para celebrar a missa na Igreja de São Francisco. Ele aquiesceu com muita cordialidade. Desde então fortaleceu-se a nossa amizade.
(ENTREVISTA, 2002; 4 de fevereiro)
Frei Rosário soube conquistar aquela juventude operária da cidade de Caeté, dia após dia, como podemos ver pelo testemunho de José Muniz Macedo:
(…) Conheci Frei Rosário em 1956, por ocasião da formatura da 4ª turma de profissionais do Colégio SENAI-CFB. Resolvemos comemorar a formatura passando a noite na Serra da Piedade. Lá chegando, procuramos o “Frei” e pedimos a devida autorização. Ele não só nos acolheu, como organizou, de imediato, uma vigília à Nossa Senhora da Piedade, o que nos ocupou toda a noite. Na manhã seguinte, ele nos ofereceu um magnífico café da manhã…
(Ibidem)
A este, segue-se outro depoimento, agora de José Zanon Filho, evidenciando a capacidade e o espírito de liderança de frei Rosário:
“Logo após a nossa formatura, ele nos convidou para jantarmos na Serra. No fim do jantar, ele nos comunicou: “vocês vão conhecer o Rio de Janeiro.” Disse-nos que pagaríamos 50% do valor da passagem de avião, o que ele obteria com amigos; a permanência no Rio seria sem despesas, porque ficaríamos em casas de religiosos(…) Metade ficou no Convento dos Dominicanos e metade no Mosteiro de São Bento. Passamos 10 dias no Rio: Imagine! Nós, rapazes de Caeté, que nem Belo Horizonte conhecíamos, e fizermos um passeio destes! Um dia ele nos disse: “Agora, vocês vão visitar meus pais.” E lá fomos, para o Jardim Botânico, onde eles moravam, e fomos muito bem recebidos. O pai do Frei era um senhor baixo, portando um cavanhaque que lhe dava o ar de professor; sua mãe [de Frei Rosário] era uma senhora muito simpática. (…) Ao chegarmos ao Rio, o Irson [Irson Alcântara] teve uma crise de apêndice, tendo sido internado e operado. O Frei cuidou de tudo! (…) Ao voltarmos, ele nos disse: “Agora, vou arranjar um passeio para vocês, em São Paulo.” E, em 1954, lá fomos nós, de “Vera Cruz” [trem de luxo que fazia a linha Rio-Belo Horizonte, para São Paulo, baldeava-se em Barra do Piraí-RJ, onde se embarcava no “Santa Cruz”
(Ibidem).
Era esse o modo através do qual frei Rosário conquistava os seus colaboradores, turma após turma formada que, em última análise, não eram “seus colaboradores”, antes do Santuário. No caso em apresentação, aquele grupo permaneceu fiel ao Santuário até a data atual, garantindo a conservação dos seus diversos equipamentos eletro-mecânicos e eletrônicos.
Entre os jovens especialistas em eletro-mecânica da CFB, um se destacava pela sua habilidade em enrolar bobinas de motores: Ilton Alcântara. Frei Rosário aprendeu, com ele, a técnica de enrolar motores, inclusive a do tratamento das bobinas, por imersão nos vernizes isolantes especiais. Em breve ele se igualava a Ilton, tendo-o superado quanto à capacidade de calcular, matematicamente, os seus parâmetros elétricos. Não teve tempo de ensiná-lo ao Ilton, pois que este veio a falecer de mal súbito, muito jovem ainda.
“Para Frei Rosário, a aprendizagem da reparação dos motores era coisa essencial, porquanto, dado o nível de instabilidade de tensão de sua usina geradora, a queima de motores era frequente, e era ele quem os reparava”.(Ibidem. Fala de José Zanon Filho).
Frei Rosário se orgulhava muito dessa habilidade. Certa vez ouvimo-lo comentar que todo frade deve desenvolver uma dada habilidade manual, a qual possa garantir-lhe a manutenção com o seu próprio trabalho. Quando chegou à Serra, a habilidade que possuía era a de trabalhar o couro mas, depois de suas “aventuras tecnológicas” na Serra, adquirira uma nova habilidade, que era a de enrolar motores, e estava consciente de bem o fazer. Tal habilidade era muito conveniente nos tempos que agora corriam para o Santuário, ainda mais que, convivendo em um meio operário de alto nível de capacitação tecnológica, podia falar-lhes como um igual, até em seu “dialeto tecnológico” próprio, sem jamais ter sido um padre- operário.
O Santuário, desde o início de 1952, estava convenientemente servido de energia elétrica e de água. Podia, agora, receber os seus romeiros mais condignamente, faltando apenas a estrada de acesso que permitiria um maior e mais cômodo afluxo humano.
Portanto, também era a hora de preocupar- se com a limitação, ou preferencialmente, com a extinção da atividade mineradora na Serra, bem como da sua maior proteção ecológica.
Entre as amizades que fizera, após sua chegada à Serra da Piedade, estava aquela de Nelson de Sena, a quem Frei Rosário tinha em grande consideração. Como a vários outros mineiros ilustres, consultou-o sobre a questão que o preocupava, com relação à atividade mineradora na Serra. Político experiente, Sena fê-lo ver que não seria fácil conter a mineração, porquanto ela estava armada de todas as exigências e direitos legais para exercer sua atividade. Além disso, completou o seu conselheiro, havia uma possível questão social, caso a mineração fosse parada abruptamente. Frei Rosário considerou que, nessas condições, não valeria a pena iniciar qualquer ação, pois que seria perdê-la na certa. Outros caminhos deveriam ser encontrados.
Quando ainda morador de São Paulo, Frei Rosário conhecera Rodrigo de Mello Franco Andrade, com quem estabelecera grande amizade. Por ocasião de uma das suas viagens entre Belo Horizonte e Rio, encontrara Rodrigo no aeroporto da Pampulha. Rodrigo mostrava- se particularmente feliz, porquanto vinha de obter o tombamento de dois importantes sítios históricos, o sítio onde se travara a batalha dos Guararapes, em Pernambuco, e o de São Miguel das Missões, no Sul do Brasil, onde os Jesuítas catequizaram os Guaranis.
Frei Rosário declarou-se verdadeira e agradavelmente surpreso, porquanto julgava que o SPHAN apenas cuidasse do tombamento e preservação de obras de arte e edificações com significado histórico. Porém, quanto aos sítios históricos…
Era o que ele precisava para o encaminhamento do problema da Serra da Piedade!
De pronto, colocou o problema para Rodrigo, pedindo que o ajudasse no tombamento da Serra da Piedade. Este se mostrou interessado na questão. Lembrava-se da Serra e do seu Santuário, que visitara quando ainda jovem, com cerca de 17 anos. Por certo, durante o resto da viagem, teriam discutido sobre os destinos desses monumentos geológicos de Minas Gerais, entre os quais o Cauê, que já estava com o seu destino traçado e em breve não seria mais que “uma fotografia pendurada na parede”, na expressão do ilustre poeta itabirano, e colaborador administrativo de Rodrigo, Carlos Drumond de Andrade. Falou-se sobre o pico do Itabira, igualmente, ameaçado; e de um forte, mas incerto, movimento para a sua preservação, que estava sendo esboçado; agora, a Serra da Piedade…Era preciso agir.
Rodrigo recomendara que fosse obedecido certo modus faciendi, de forma a consolidar de modo definitivo, sem possibilidades de reversões, qualquer tombamento executado: em primeiro lugar, que o interessado pelo tombamento fosse o proprietário do bem tombado, em sua maior parte; segundo, que os procedimentos fossem sucessivos e que as preocupações visassem, primeiramente, o essencial, pois que o acessório viria de per se.
Dessa forma agiu Frei Rosário Joffily, que passou a trabalhar no sentido de completar as propriedades do Santuário, através retificações de limites, compras de posses e faixas limítrofes, de tal sorte que, em pouco tempo, a região Sudoeste da serra, que era a mais problemática, em 1954 estava regularizada, conforme planta das propriedades do Santuário.
Entrementes, Frei Rosário procurava obter compromissos de convivência da mineradora e da própria CFB, posto que a exploração já se aproximava perigosamente do local onde estava situado o primeiro Passo de Adoração e Reflexão, no início da subida da Serra.
Porém, sua ação junto à CFB, inicialmente promissora, a partir de um certo momento parecia não mais frutificar. Carta do Bispo Coadjutor de Belo Horizonte, dirigida ao Gerente de Usina, sr. Louis Poupet, abordava amargamente a pouca atenção que vinha sendo dada aos contatos com o vigário do Santuário, bem como com aquelas cartas emanadas das autoridades religiosas, sobre o mesmo assunto.
Outra carta, do Cardeal Motta, datada de 4 de janeiro de 1955 e dirigida à alta direção da CFB, fora incisiva: Pedia a atenção daquela diretoria para a devastação que a CFB fazia na Serra, através da sua mineradora. Chamava a atenção dos diretores sobre as obrigações daquela indústria face à preservação dos sítios históricos e de tradição, diversamente do que se fazia atualmente com o Pico do Cauê. A Serra da Piedade não poderia vir a ser um novo desastre histórico-cultural em Minas Gerais, pensava a alta hierarquia eclesiástica de Minas Gerais.
Benedito Efigênio Galantini, topógrafo da CFB, prestando serviços à mineração, encontrava-se em trabalhos de levantamentos topográficos da área minerada, muito próximo ao primeiro Passo da trilha da Serra, quando viu frei Rosário pela primeira vez. Era um fim de tarde do ano de 1951, sem que ele saiba precisar em que data. Frei Rosário subia a trilha da Serra, cavalgando um burrico. Ele parou e dirigiu-se ao topógrafo, inquirindo: ” Onde estão os marcos da Companhia?” E Galantini lhe disse que estavam próximos dali, mas que dado o adiantado da hora, ele não poderia mostrá-los, ao que Frei Rosário retrucou: “Não faz mal. Veremos isso em outra ocasião.”
Quer isso dizer que Frei Rosário começava, então, sua procura para as definições dos limites das terras do Santuário. E, efetivamente – é, ainda, Benedito Galantini quem no-lo confirma: a primeira planta para Registro Torrens começou a ser elaborada em 1952, mas o primeiro registro deu-se em 1954. A primeira retificação de divisas foi realizada com a Fazenda do Ouro Fino, então de propriedade do sr. João de Resende Costa [Não confundir com o seu homônimo, o Arcebispo de Belo Horizonte.]
Logo após, houve a compra de direitos de posse, na Fazenda do Morro Velho, no lado Sudoeste. Em 1955, já havia uma planta de propriedades, que permitiria o início de um processo de tombamento. Efetivamente, em 17 de julho de 1955, o Reitor do Santuário fazia um pedido formal, ao Diretor do SPHAN, para o início do Processo para tombamento da Serra da Piedade.
O Processo caminhou célere, pois que em 22 de agosto de 1955, o chefe do SPHAN-MG, informava ao sr. Rodrigo de Mello Franco Andrade que procedera buscas sobre a historicidade da Ermida de Nossa Senhora da Piedade, encontrando-as na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais, vol.II, p. 198 Em 6 de setembro de 1956, em ofício dirigido a Frei Rosário Joffyli, Rodrigo Andrade comunicava o deferimento, em definitivo, do pedido de tombamento do sítio e das construções existente nas propriedades do Santuário.