Quem dá mais?
Por Saul Leblon: Carta Maior – 21/02/2014
O que de pior poderia acontecer ao Brasil nesse momento seria reduzir a eleição de outubro a uma gincana para a escolha do melhor amigo dos mercados. Esta semana Eduardo Campos abriu o seu baú e mostrou um pedaço dos dotes que pretende oferecer à praça.
Em troca de apoio e indulgência dos mercados, o neto que envergonharia o avô quer entregar um mandato fixo ao BC, com metas plurianuais de inflação e superávit fiscal.
Uma espécie de outro país dentro do Brasil.
Ao lado de um Presidente da República escolhido pelo voto direto, teríamos um presidente da republica do dinheiro. Com autonomia, e dotado de ferramentas calibradas e com abrangência suficiente para induzir e condicionar o destino do desenvolvimento, os limites da democracia, a sorte da sociedade.
Assessores do tucano Aécio Neves, sendo o economista Edmar Bacha o mais loquaz entre eles, não deixam por menos.
Um revival do PSDB no poder faria tudo isso e muito mais, asseguram pregoeiros de bico longo.
Por exemplo: deflagraria um choque de ‘eficiência’ com a derrubada em série de tarifas sobre importações.
O que sobrasse da indústria local e do emprego seria de primeira linha, garantem.
Outro arquiteto de países paralelos, o tucano Pérsio Arida, acha pouco a independência do BC.
Para ir além, sugere a independência da própria moeda nacional em relação ao governo.
Seu projeto, antigo fetiche do neoliberalismo verde-amarelo, é assegurar a conversibilidade automática do Real em relação ao dólar.
Viraria um anexo do dólar.
Terceirizar a moeda de uma nação é o equivalente econômico a renunciar ao monopólio da força por parte do Estado: abdica-se de um dos instrumentos cruciais na defesa do interesse público para entregar a sua gestão ao apetite privado.
A politica monetária vira uma espécie de Ucrânia nas mãos dos francos atiradores dos mercados.
O governo Dilma, sob as turquesas das agências de risco e da guerra de expectativas da mídia e do capital financeiro, falou a língua que eles entendem na última 5ª feita.
A oito meses das eleições, o governo cortou R$ 44 bi em investimentos, rebaixou a expectativa de crescimento do PIB para 2,5% e fixou o superávit fiscal em 1,9% do PIB.
O monólogo que anuncia ‘tempos difíceis’ vai impondo a sua ordem unida na frente da produção, do dinheiro, do emprego e da própria política.
Por tempos difíceis entenda-se a ampliação da margem de manobra dos capitais especulativos, que passam a ter na cambaleante recuperação das economias ricas um ponto de fuga adicional.
Graças a ele, amplificam seu já robusto poder chantagem sobre nações, governos e candidatos do mundo em desenvolvimento.
Ninguém sabe exatamente qual o fôlego ou a consistência da dita recuperação.
Depois de quase sete anos de colapso da ordem neoliberal, os indicadores mostram um saldo de terra arrasada no emprego e nos índices sociais e saneamento financeiro.
Por exemplo: hoje os fundos de investimento e de pensão tem 31% mais dinheiro do que o saldo anterior à crise. Com uma bolada equivalente a 75% do PIB mundial, eles detém um poder de comando apreciável sobre bolsas, moedas, governos e economias carentes de capitais, de um modo geral.
A narrativa conservadora faz o resto ao festejar o poder coercitivo adicional dessa alavanca , a cada suspiro na ‘recuperação’ das economias ricas.
O cheiro da virada de ciclo já basta.
Massas monstruosas de capitais se movimentam pelo mercado, ou apenas ameaçam faze-lo, ‘precificando’ hoje um amanhã que ninguém tem a certeza de quando virá nem como será.
Não importa: a incerteza é a água dos cardumes especulativos.
Governos, povos e nações precisam de chão firme: planejamento, regulação, metas de investimento, planos de crescimento de longo prazo.
O dinheiro grosso e os magos da arbitragem, ao contrário, respiram melhor debaixo do oceano da incerteza.
Ao não se confrontar as duas lógicas sanciona-se um esbulho.
O do jornalismo econômico, por exemplo, que mantém intacta a fé nas virtudes do laissez faire , como se 2007/2008 nunca tivessem existido no calendário econômico mundial.
A crítica cerrada ao Brasil por ‘ter abandonado’ as reformas amigáveis abafa uma pergunta básica: ‘Onde estaria o país hoje se a sua condução na crise tivesse sido obra dos sábios tucanos, por exemplo?’
O espelho europeu oferece a inquietante pista de que seríamos agora um grande Portugal.
Ou uma dilatada Espanha – um superlativo depósito de desemprego, ruína fiscal e sepultura de direitos sociais, com bancos e acionistas solidamente abrigados na sala VIP do Estado mínimo (para os pobres).
Incorporar os imperativos das agencias de risco, sem abrir uma discussão com a sociedade sobre os desafios da transição em curso no desenvolvimento brasileiro, pode gerar no imaginário social o efeito de uma gigantesca empresa demolidora.
Marretas sabidas golpeiam dia e noite a confiança erigida ao longo de uma década de construção negociada da democracia social no país.
O desafio progressista é fazer o contraponto desse desmonte.
Mesmo ao ceder no varejo –quando inevitável– é crucial reafirmar as linhas de passagem no atacado e distinguir um projeto de desenvolvimento da mera contabilidade pró-mercados.
O quadro latino-americano e mundial sinaliza uma inflexão de tempo histórico.
Não por acaso o site de O Globo desta 5ª feira editava como irmãs siamesas as imagens dos conflitos em Caracas e em Kiev.
A mensagem é nada sutil: afrontar o mainstream leva ao caos.
Não por coincidência, no mesmo dia, Obama emitia ordens imperativas a Maduro e ao governo da Ucrânia.
Mitigada a crise no front interno das nações ricas, cuida-se de restabelecer a ordem nos quintais indóceis.
É nesse ponto que o timming das ações do governo – de qualquer governo – faz enorme diferença na reordenação em marcha da correlação de forças.
Cada gesto, cada decisão, cada anúncio adquire uma dimensão estratégica; a forma como as providências são comunicadas, ademais de sua projeção e escopo mais geral, sobre o qual não pode pairar dúvida , ganha importância decisiva na disputa pelos corações e mentes da sociedade.
Uma crise de incerteza tem um tempo certo para ser abortada, ou derrotará o governo –a produção, o emprego e o imaginário social.
Os tempos são outros; a globalização tornou tudo mais difícil, alega-se.
E é verdade.
Mas é verdade também que a lógica dos mercado não vai resolver os problemas que ela mesma criou.
Não se pode amesquinhar o único espaço no qual esse poder imperial se defronta com um outro de igual para igual: a luta política na democracia.
O governo Dilma disse aos mercados nesta 5ª feira como pretende zelar pelos seus interesses.
É preciso que diga, a partir de agora — e de forma contundente na campanha— como um novo mandato progressista vai construir hegemonia dos interesses sociais mais amplos na travessia para o novo ciclo de desenvolvimento brasileiro.