Fui escolhido em 2006 como o biblioblogueiro do mês de setembro. Na ocasião fui entrevistado por Jim West, e esta entrevista foi publicada no site Biblioblogs.com definido como an aggregate of blogs geared toward Biblical Studies, ou seja, um agregado de blogs voltados para os Estudos Bíblicos. Confira Featured Blogger Interviews para as várias entrevistas dos biblioblogueiros. A minha pode ser lida aqui.
Reproduzo, a seguir, minha entrevista.
Blogger of the Month for September 2006
Jim West Interviews Airton José da Silva
Editorial Note: Airton José da Silva is the author of the site Ayrton’s Biblical Page.
JW: Professor da Silva, would you please introduce yourself to our readers?
AS: Airton está bom. Eu nasci em 1950 em Patos de Minas, Minas Gerais, Brasil, e vivi meus primeiros nove anos na fazenda de meus pais. Minha família é de tradição católica, e acabei fazendo estudos de Filosofia em dois tradicionais seminários de Minas Gerais. Em 1970, aos 19 anos, fui para a Europa para estudar Teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, Itália, onde fiquei 6 anos, tendo obtido o Mestrado em Teologia Bíblica, curso que foi feito parcialmente na Gregoriana e parcialmente no Pontifício Instituto Bíblico (= PIB).
Ao voltar ao Brasil, após algum tempo em minha cidade trabalhando como assessor exegético para a diocese, transferi-me em 1979 para Ribeirão Preto, SP, para lecionar na Faculdade de Teologia local e também na Faculdade de Teologia da PUC de Campinas, SP. Vivo em Brodowski, pequena cidade próxima a Ribeirão Preto. Dedico-me exclusivamente à Bíblia, e, de vários anos para cá, somente à Bíblia Hebraica.
JW: Thank you. Would you care to tell us how you became interested in academic study of the Bible?
AS: As causas mais remotas devem estar ligadas ao fato de eu ter crescido, no Brasil, em um ambiente no qual ocorreu intenso processo de reforma eclesial, desencadeado pelo Concílio Vaticano II e pela Conferência de Medellín, levando, como se sabe, à legitimação e ampliação da Teologia da Libertação. A conseqüente renovação dos estudos teológicos, os novos espaços conquistados pela Bíblia na liturgia, na catequese e na pastoral devem ter exercido forte influência em minhas escolhas. Pouco a pouco a Bíblia deixou, em minha juventude, de ser “coisa de protestante”, preconceito bastante difundido entre os católicos brasileiros da época, para ser, de novo, o livro da Igreja, de todas as igrejas cristãs.
A opção pelos estudos acadêmicos de Bíblia, porém, ocorreu, de maneira mais imediata, em Roma. Eu diria que fui influenciado especialmente por brilhantes colegas brasileiros que estudavam no PIB, e com os quais eu convivi no Colégio Pio Brasileiro, e por alguns professores da Gregoriana que me fizeram gostar de Bíblia, como G. Bernini de quem, se dizia, dormia com os livros de Gerhard von Rad debaixo do travesseiro…
E, que não me levem a mal os teólogos, mas fui influenciado até pelas atitudes autoritárias de alguns professores de Teologia — rigorosos jesuítas — que me desgostavam por defenderem, em minha opinião, certas ideias que tinham mais a ver com crença do que com ciência. Não sei bem porque, mas sempre vi os estudos bíblicos como mais científicos e objetivos do que outras áreas da Teologia. Embora, confesso ter ficado fascinado com as leituras de Küng, Moltmann, Metz, Rahner, Congar, Schillebeeckx, Gutiérrez, Boff…
Por outro lado, em meus devaneios de criança, olhando a paisagem do alto das montanhas da fazenda onde nasci — Minas Gerais é o mais montanhoso dos Estados brasileiros – eu me via realizado no dia em que fosse um cientista… Não ria! Sonhos de criança! Mas, voltando à realidade, na escola sempre gostei de História, Geografia, Línguas e Literatura. Li muito, desde cedo, desde os 4 anos de idade, por influência de minha avó materna, filha de uma professora famosa na região. Eu era “o bisneto da Professora” e devia, um dia, ser professor, diziam ao meu redor.
Em Roma, estudei em uma Universidade com colegas de umas 75 nacionalidades diferentes e com professores de uma dezena de países. Convivi com muitas línguas e culturas e com a História que transpira da própria cidade de Roma. Creio que os ingredientes para o estudo acadêmico da Bíblia já estavam de certo maneira à mão. Bastava que, no momento certo, fossem levados ao fogo. E foi o que ocorreu: em determinado momento eu tive a certeza de que queria ser um biblista pelo resto de minha vida.
JW: Why Hebrew Bible in particular?
AS: Na verdade, trabalhei um bom tempo com o Novo Testamento, estudando e lecionando especialmente o Evangelho de Marcos, as Cartas de Paulo e o Grego do NT. Tive a oportunidade de estudar com Jacques Dupont, por exemplo, o que me levou às parábolas e ao tema de minha Dissertação de Mestrado sobre Mt 25,1-13, com orientação do Professor Ugo Vanni.
Por outro lado, estava começando naqueles anos o uso cada vez mais persistente dos métodos sincrônicos nos estudos bíblicos, e eu me envolvi com estudos linguísticos e literários de Saussure, Benveniste, Barthes, Greimas, Umberto Eco, Genette, Todorov e tantos outros que nem me arrisco a citar todos.
Além disso, motivado pela luta contra a ditadura militar que persistia no Brasil desde 1964, luta na qual a Igreja estava fortemente envolvida, embrenhei-me pelo marxismo e pela leitura sociológica da Bíblia. Na França saía, naquela época, a obra de Fernando Belo, na qual Marx e Marcos caminhavam lado a lado, numa mistura bastante exótica até de abordagem estruturalista de Barthes com o marxismo de Althusser e a psicanálise de Lacan. Esta obra, por exemplo, gerou grande entusiasmo entre os estudantes de Bíblia.
Apesar de tudo isso, desde a época de Roma eu era fascinado pela História do Antigo Oriente Médio e pela Literatura Profética. O já citado professor Bernini me ensinou a gostar de Jeremias, e no PIB estudei com Alonso Schökel, J. Alberto Soggin, Ernst Vogt, Robert North, Rémi Lack e outros professores de Bíblia Hebraica. Se tento avaliar hoje mais corretamente as suas posturas, não creio que fossem hipercríticos — no PIB da época sempre se caminhava com independência, mas prudência — porém, eram mestres que nos incentivavam a encontrar nossos próprios caminhos. Isto tudo teve sua participação em minhas escolhas.
JW: As a scholar of the Bible, what drew you to “blogging” about it?
AS:Quando comecei a ler sistematicamente os biblioblogs de Mark Goodacre, James Davila e o seu, foi que surgiu a ideia de começar o meu próprio blog. Como tenho uma página dedicada a estudos acadêmicos de Bíblia desde 1999, percebi que um biblioblog poderia ser a solução para algumas coisas que estava querendo fazer com mais agilidade. Como, por exemplo, ter um espaço mais flexível para comentar a relação da Bíblia com o mundo atual, acompanhar o debate acadêmico sobre a “História de Israel”, noticiar descobertas arqueológicas importantes e/ou polêmicas, transmitir em português para meus visitantes – que nem sempre leem inglês ou alemão – os temas mais significativos do debate bíblico atual, estabelecer contato com outros biblioblogueiros, comentar os atuais conflitos do Oriente Médio.
Assim, quando acompanhei, através dos biblioblogs, o debate de 2005 na SBL CARG – The Pleasures, Pains and Prospects for Biblioblogging — vi que era chegada a hora: o Observatório Bíblico foi criado no dia 07/12/2005 e neste dia escrevi: “Este biblioblog é uma ferramenta jornalística associada ao meu site, do qual faz parte. Quer oferecer ao visitante comentários recentes sobre as interpretações arqueológicas, históricas e exegéticas relevantes para o estudo da Bíblia (…) Para ficar sabendo o que está acontecendo no mundo dos estudos bíblicos, venha visitar, com frequência, o Observatório Bíblico”.
JW: Do you think that blogging will continue to be an important instrument for scholarly work?
AS: Esta não é um pergunta fácil de ser respondida, pois implica em apostar em desconhecido futuro. Mas, em princípio, minha resposta é positiva. E cheia de esperanças. Acredito que este seja um espaço privilegiado para um debate aberto e franco sobre o trabalho acadêmico, desde que não seja um substitutivo do mesmo.
Percebo, contudo, vários riscos no blogar: pode tornar-se uma espécie de vício para quem gosta de escrever, tomando precioso tempo que poderia ser dedicado à leitura de livros e artigos e à pesquisa exegética, já que um computador ligado o tempo todo na Internet é uma séria ameaça a muitas outras atividades, porque é, de fato, muito envolvente; pode substituir as páginas tradicionais na web, coisa que eu não gostaria de fazer com a minha, porque creio que aquele é um espaço que possibilita maior profundidade acadêmica; de repente, todos nós podemos estar muito ocupados escrevendo sobre as mesmas coisas, sem acrescentar muita coisa ao conhecimento humano; podemos ficar envolvidos na leitura de feeds por várias horas diárias… e há mais riscos.
Mesmo assim, acredito que, sendo criteriosos, temos uma formidável ferramenta ao nosso alcance, coisa jamais sonhada quando eu era um estudante em Roma e lutava com uma máquina de escrever manual para fazer meus trabalhos que só eram acessíveis a dois ou três amigos. Um blog é uma ferramenta democrática.
JW: What sort of blogs do you make use of yourself?
AS: Principalmente biblioblogs. Uma parte está em meu blogroll, mas há mais biblioblogs em meu leitor de feeds. Consulto também alguns blogs de grandes jornais de alguns países e blogs de TI.
JW: Your blog always contains a variety of interesting pieces. You have wide ranging interests. Do you think the Bible has relevance for today or is it simply a collection of ancient documents of interest only to antiquarians?
AS: Vejo que, na leitura da Bíblia aqui no Brasil, há duas tendências: uma, que faz da leitura bíblica um instrumento para incentivar a organização popular e a consciência crítica, mas não pára na Bíblia e sim desemboca na vida; outra que produz uma reificação da Bíblia, conduzindo a uma espécie de “sionismo cristão”, tendo como meta a Igreja, na reestruturação de uma neocristandade. Estou com a primeira tendência: sempre defendi que a Bíblia tem relevância para o mundo atual.
Porém, a leitura bíblica quando aplicada à realidade atual pode ser por demais genérica, privilegiando uma linguagem utópica e encontrando sensíveis dificuldades em fazer a passagem dos princípios éticos para propostas políticas concretas. Tal leitura tende a fazer da política objeto de crença, e isto é muito ruim. Estas dificuldades, entretanto, podem ser enfrentadas com o uso de instrumentos socioanalíticos válidos, tanto na leitura da Bíblia quanto na leitura da realidade social atual. Enquanto a leitura histórico-crítica ajuda a desvendar melhor o próprio texto da Bíblia, a mediação socioanalítica ajuda a compreender melhor o contexto. Donde a pertinência de uma abordagem sociológica.
JW: If you had to restrict your blogging to either Hebrew Bible related items or to current events, which would you choose, and why?
AS: Coerente com minhas convicções, eu não faria essa escolha, ou a Bíblia ou a realidade atual. Isto por várias razões, das quais cito três:
1) A permanência só na Bíblia a absolutiza e a torna vítima das atrações do populismo, um fenômeno muito forte no Brasil. Explico: na medida em que as igrejas dão voz e vez ao povo através da intervenção da consciência crítica hierarquizada e institucionalizada, elas se legitimam em sua prática pelo processo de identificação do “povo brasileiro” com o “povo de Deus”. Esta atitude é semelhante à do populismo político brasileiro que explora a ideia de unidade nacional para manter o domínio das elites sobre as classes populares. Os dois jogos se completam e se amparam na relação entre o político e o religioso. Esta atitude soteriológica tem suas regras: cada ato humano, mais ou menos político, pouco importa, é transfigurado pela leitura teológica que o insere no plano divino global de salvação do homem. De certo modo, as igrejas recriam a sociedade brasileira mediante o filtro teológico. E é aí que aparece o papel da Bíblia: ela é usada pelas igrejas como “chave sagrada” para entrar na consciência do povo e lhe dar a medida da realidade. Repito o que disse acima: este processo é muito ruim, pois estamos lidando com um jogo invertido, já que não há real interesse em transformar as estruturas sociais em benefício do povo, mas sim em salvaguardar os privilégios das igrejas. No Brasil atual temos muita religião e pouca fé…
2) A segunda razão é, para mim, evidente: o estudioso do mundo bíblico não pode ficar alheio aos graves conflitos que acontecem hoje no mundo. É espantoso que um biblista consiga “tirar água de pedra” quando está analisando um texto bíblico, mas seja incapaz de sair de sua “torre de marfim” para a “torre de Babel” do mundo atual e dialogar com a pluralidade das culturas e das linguagens. No caso dos atuais conflitos do Oriente Médio, o silêncio dos biblistas sobre o que acontece ali é o resultado de uma cumplicidade com aqueles que estão matando multidões de seres humanos para sustentar os excessos do consumismo capitalista. O biblista é um privilegiado por sua formação e pelos instrumentos de análise ao seu alcance: como ele pode viver no mundo atual como se ele não existisse? Não vejo inocentes nesta situação…
3) Por último eu diria que quatro elementos devem ser levados em conta em uma leitura da Bíblia que eu chamaria de sócio-histórica-redacional: a. os contextos da época bíblica; b. a produção dos textos bíblicos; c. os contextos atuais; d. os leitores atuais dos textos. O sentido da Bíblia, segundo este modelo, não está nem no nível dos contextos da época bíblica e/ou dos contextos atuais, nem no nível dos textos bíblicos ou da vivência dos leitores, mas na articulação que se forma entre a relação dos textos bíblicos com os seus contextos, por um lado, e entre os leitores atuais e seus contextos. Ou seja: da Bíblia não devemos esperar fórmulas a copiar ou técnicas a aplicar, mas o que ela pode nos oferecer é o que eu chamaria de “competência hermenêutica”, dando-nos a possibilidade de julgar por nós mesmos as situações novas e imprevistas com as quais somos continuamente confrontados.
JW: Your blog is in Portuguese. Do you have any plans on expanding to a bilingual edition?
AS: Isto é uma limitação, pois o português é pouco conhecido, enquanto o inglês é a “língua geral” do mundo atual. Porém não tenho, por enquanto, planos de fazer uma edição bilíngue, já que isto aumentaria meu trabalho de maneira significativa. Mas não descarto a hipótese. Um dia, quem sabe…
JW: I’d like to change subjects now. What do you do for fun? What are your hobbies outside academic interests?
AS: Como é costume no Brasil, jogava futebol quando estudante. Nos tempos de Roma estudei alguns anos de violão clássico, mas hoje não me dedico mais, só aprecio a boa música. Gosto de ouvir os clássicos e o jazz. Descanso lendo literatura e, por incrível que isso possa parecer, física relativista e quântica, pelo menos em nível de divulgação, já que não tenho estudos superiores nesta área. Admiro Einstein acima de tudo e gosto de cosmologia. Gosto de Fórmula 1 e sou um fã incondicional de Ayrton Senna. Mas o que mais gosto é das montanhas de Minas Gerais, onde costumo me refugiar quando em férias.
JW: What one thing about you might our readers find unusual or particularly interesting?
AS: Quando estudante em Roma, passava parte de minhas ferias de verão na Alemanha, trabalhando na Daimler-Benz em Sindelfingen e isto foi uma experiência diferente: morar em uma família alemã em Böblingen, de cultura e costumes tão diferentes, trabalhar em uma fábrica de mais de 30 mil operários me ajudou a entender “outros mundos”. E para terminar: meu maior sonho como biblista é um dia escrever um comentário a Jeremias, meu profeta preferido.
JW: Professor, thank you for your time. Your blog is highly informative and we thank you for it.
AS: Foi uma honra. Obrigado por esta entrevista em setembro, nosso Mês da Bíblia, em homenagem a São Jerônimo, o Homem da Bíblia, falecido em Belém em 30 de setembro de 420 aproximadamente.
foi uma satisfação conhecer um pouco mais do professor.
Luiz Paulo Larcher, Curitiba
Foi um privilégio ler este artigo. Vou me aprofundar mais nos temas. Tantas coisas pueris ganham destaque e esse blog não tem o seu devido destaque. Obrigado, sr. Airton. Saúde.
Fui aluno do Prof Airton… Sempre cortês, disponível, educado, atencioso em tudo e com todos… dando atenção a todo tipo de dúvidas que os alunos apresentavam…
Gostaria de ter o contato dele, para entabular encaminhamentos de situações que podem gerar esclarecimentos ao público dele, e aos meus estudos/alunos.
Abraço.
Mário Maróstica