A teologia entende a Amazônia?

Teologia Amazônica: o reencontro entre o ser humano e a natureza. Entrevista especial com Antonio Carlos Teles da Silva

Com mais de seis milhões de hectares, a Amazônia, reconhecida como Patrimônio da Humanidade pela Unesco, tem tanta diversidade natural que está dividida em 23 eco-regiões. Cerca de 60% de toda essa diversidade fica em território brasileiro, dando vida a nove Estados do país.

Não é novidade nenhuma, porém, a relevância dos riscos que esse imenso ecossistema vem enfrentando por causa da ganância do homem. Mas como seu próprio nome indica, essa guerreira, como as amazonas da mitologia grega, está na vanguarda da nossa civilização.

“O que acontecer à Amazônia aponta para o que pode acontecer ao planeta”, afirma o doutor em Teologia Antonio Carlos Teles da Silva. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o estudioso da cultura e da religiosidade da Amazônia afirma que a região tem uma “importância simbólica crucial no atual momento, como símbolo do desafio ecológico”.

Teles, que irá participar dos debates do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação, em Belém do Pará, nos próximos dias 21 a 25, é graduado em Teologia pelo Seminário Presbiteriano do Norte e licenciado em História pelo Centro Universitário Metodista do Sul (IPA). É também mestre e doutor em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST), de São Leopoldo, com pesquisas que abordam, respectivamente, “As origens do Movimento Ecumênico na Amazônia Paraense” e “O Ethos Cultural Amazônico em Dalcídio Jurandir”, em que aborda a obra do escritor marajoara como aporte para a construção de uma Teologia Amazônica.

 

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais questões, críticas e desafios que o debate ecológico apresenta à teologia?

Antonio Carlos Teles da Silva – Sem dúvida, o principal acento é de natureza ética, de responsabilidade amorosa para com a criação de Deus. De certa forma, o cristianismo justificou, historicamente, o antropocentrismo que está na raiz da atual crise ecológico-ambiental. Isso significa a necessidade de elaboração de uma nova antropologia, que tenha a competência reintegradora e que reaproxime amorosamente o ser humano e a natureza. É obvio que essa reconstrução contém uma inerente crítica aos padrões atuais de desenvolvimento e progresso, bem como ao estilo de vida das sociedades atuais, voltados para a competição e o consumo.

IHU On-Line – Que contribuições e críticas os recursos éticos e espirituais das tradições religiosas podem oferecer para contribuir com o debate sobre desenvolvimento e sustentabilidade e para o enfrentamento da crise ambiental atual?

Antonio Carlos Teles da Silva – Aqui, temos a necessidade de perceber a surpreendente convergência entre os novos rumos da ciência moderna e de algumas tradições espirituais milenares. Desde Einstein e a relatividade, as novas percepções sobre a natureza da realidade, possibilitadas pela física quântica, por exemplo, demonstram que a nova ciência se aproxima de tradições como o Taoísmo, das religiosidades andinas e, no caso específico, da religiosidade de culturas amazônicas originárias. Não há saída para a atual crise ecológica planetária sem uma profunda transformação cultural, que passe pela compreensão da integralidade da criação, que é uma percepção presente em muitas dessas tradições.

IHU On-Line – Como o imaginário de sobre o “futuro” que caracteriza a escatologia cristã se situa em relação às preocupação com o futuro próprias da ecologia atual? Em que ajuda? Em que atrapalha?

Antonio Carlos Teles da Silva – Existe uma escatologia elaborada nos centros hegemônicos que aponta para o abandono das preocupações históricas presentes em função de uma visão fatalista e muitas vezes catastrófica em relação ao futuro do planeta. Trata-se de um determinismo pré-milenista [1], que transfere todas as esperanças humanas para o âmbito da transcendentalidade. Sem dúvida, essa é uma visão condicionada ideologicamente que exerce uma função politicamente desmobilizadora. Há um texto bastante conhecido no Apocalipse, capítulo 21, dentre tantos outros, que apontam para outra forma de compreensão: o Reino de Deus se concretiza historicamente, dentro do mundo presente, através de novos céus e de uma nova terra, transformada e redimida pela boa vontade e pela harmonia entre os seres humanos. A obra redentora de Deus em Jesus Cristo concretiza o grande propósito divino de harmonia tanto dos seres humanos entre si, como entre os seres humanos e a natureza. O Reino de Deus se concretiza historicamente nesse convívio belo e benfazejo sobre esta terra. A esperança cristã é antes de tudo a realização desse propósito divino.

IHU On-Line – Quais podem ou devem ser os traços de uma teologia ou paradigma teológico que assume o compromisso com a causa ecológica?

Antonio Carlos Teles da Silva – O compromisso libertador ecológico da teologia deve partir da compreensão de que a miséria e a crise ecológica são faces de uma mesma realidade, e têm causas comuns, como a ambição e a sede ilimitada de poder e consumo. Dessa forma, a intuição básica da teologia da libertação de opção pelos mais fracos continua pertinente ante as agressões ao meio ambiente. São realidades indissociáveis, e, como enfatiza Leonardo Boff, numa situação de desastre ecológico, as primeiras vítimas são os mais pobres. Ao mesmo tempo, esse compromisso deve partir de uma compreensão adequada da realidade. Os novos paradigmas científicos referidos apontam para a necessidade de uma concepção integral da realidade, das múltiplas interconexões e da teia de relações que constitui a vida. É necessária a superação do paradigma científico da modernidade, não por ser errado, mas por ter se tornado obsoleto e não dar mais conta da complexidade que se apresenta. Superação do paradigma mecanicista cartesiano baseado em causa-efeito pelo paradigma holístico de múltiplas inter-relações. A teologia há de perceber a complexidade da realidade que, ao invés de estranha, é bela e convidativa. É necessário que a elaboração teológica se deixe enredar por aquilo que Fritjof Capra [2] chama de Teia da Vida. Assim, a teologia contribuirá na construção de uma nova cultura planetária, integrada e ecológica.

IHU On-Line – O senhor afirma que a Amazônia não pode mais ser uma “espécie de subtema da questão ecológica”. Como a teologia interpreta a importância dessa região?

Antonio Carlos Teles da Silva – A teologia ainda não consegue interpretar a importância da Amazônia. De forma geral, há uma enorme ignorância nacional sobre o que é a Amazônia e quem são os amazônidas. Na verdade o processo de destruição da região assenta-se nessa ignorância. A Amazônia adquiriu uma importância simbólica crucial no atual momento, como símbolo do desafio ecológico. De certa forma, penso que o que acontecer à Amazônia aponta para o que pode acontecer ao planeta. Isso tem sido percebido especialmente no exterior, e, infelizmente, no Brasil, ainda impera esse desconhecimento, ou, no mínimo, a não-consideração dessa importância. A concepção hegemônica sobre a Amazônia descreve um império do natural, do selvagem e do exótico, ao mesmo tempo em que invisibiliza o histórico, o humano e o cultural. Isso está no cerne da sequência de políticas oficiais equivocadas, implantadas sem consideração às peculiaridades regionais, como por exemplo as grandes migrações compulsórias sob o discurso do vazio demográfico, entre outras tantas. As representações construídas sobre a região, “pulmão do mundo”, “inferno verde” etc., também colaboram para a construção mítica em detrimento do real cotidiano das populações. Proponho uma releitura da Amazônia a partir de sua própria culturalidade, ou uma leitura do mundo a partir da cosmologia cabocla. Essa releitura, privilegiando a cosmovisão cabocla ribeirinha, é meu suporte para uma reflexão teológica sobre a Amazônia. Levo em conta que esse ethos cultural passa por uma violenta erosão, com evidente perda de capacidade de convívio harmonioso com o meio. Ao mesmo tempo, qualquer alternativa para a região passa, necessariamente, pela redescoberta dessa culturalidade herdada das antigas populações indígenas. Penso que, diante dessa realidade, a teologia tem uma enorme tarefa em repensar a região a partir de sua opção pelo invisibilizados, compreendendo essa culturalidade única como fundamental para o enfrentamento do desafio ecológico.

IHU On-Line – Qual é o papel das populações locais, dos governos e das igrejas para manter vivo esse ecossistema?

Antonio Carlos Teles da Silva – O movimento ecumênico na Amazônia tem uma história rica de defesa das causas da região. Nasceu no inicio da década de 1980, a partir das mobilizações populares contra a violência agrária no Araguaia e pela libertação dos padres franceses Aristides Camió e François Gouriou, presos injustamente com mais 13 posseiros, dando origem ao Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA). O Ecumenismo na Amazônia tem compromissos de origem com a defesa da região, de seu povo e de sua cultura. Infelizmente, com raras e honrosas exceções, esse movimento tem sua articulação enfraquecida ultimamente, por conta principalmente da submissão de algumas igrejas à lógica do mercado religioso e à competitividade eclesiástica. Em muitos casos, os compromissos de luta e solidariedade têm sido substituídos pela prioridade ao crescimento institucional. Os compromissos assumidos com a unidade e com as lutas populares diluem-se em função de práticas religiosas de resultados imediatos. Isso é trágico. Na prática isso tem se constituído numa enorme perda na capacidade de mobilização e luta. Perde-se uma oportunidade histórica de mobilização da população local em defesa da Amazônia, desperdiçando a possibilidade do testemunho de uma espiritualidade envolvida na causa amazônica e ecológica junto tanto às populações locais, como junto aos governos.

IHU On-Line – Como a cultura amazônica pode nos ensinar a lidar com os símbolos e as realidades da água e da terra?

Antonio Carlos Teles da Silva – As culturas originárias amazônicas, herdadas das milenares culturas indígenas possuem uma tradição profunda e inerentemente ecológica. Fugindo aqui de qualquer idealização, é possível afirmar que, nessas culturas, água, terra, árvores, animais, enfim, todos os elementos que constituem a natureza são considerados como possuidores de consciência e vida. Todos são seres de relações, que geram uma cultura de comunhão e que se manifesta em intensas relações simbióticas de harmonia e complementariedade mútua. A modernidade chegou à Amazônia como crise, de forma distorcida e incompleta, baseada no pressuposto de oposição inerente entre cultura e natureza. A natureza-lar-aconchego passou a ser tratada como empecilho ao progresso e ao desenvolvimento. Essa concepção está explicita em muitas das primeiras visões sobre a Amazônia e nos escritos dos primeiros intérpretes da região, como grande exemplo, Euclides da Cunha. Essas concepções, baseada ainda no positivismo, se concretizam na região por meio das políticas de governo, especialmente no período militar. Os resultados são óbvios: a violenta erosão do ethos cultural originário pela imposição da mentalidade de competição e consumo. O caboclo amazônico tornou-se o principal poluidor de seu mundo. Isso é o pano de fundo da devastação que a região sofre.

IHU On-Line – Como se dá a mobilização social e ecumênica pela defesa da Amazônia e pelo compromisso com a realidade local?

Antonio Carlos Teles da Silva – Alguns pressupostos da Teologia da Libertação precisaram ser necessariamente revistos, o que gerou uma grande diversificação de temas e enfoques, com aprofundamento de temas específicos, trazendo à tona a questão ecológica como um dos temas mais urgentes e decisivos. Essa reciclagem mantém os pressupostos e intuições básicas fundamentais, como a opção pelo desfavorecidos e o compromisso com a dimensão humana acima da dimensão econômica, mantendo-se assim a postura crítica à estrutura de desigualdade e à economia de mercado. Como já foi dito, a questão dos pobres e a questão ecológica são indissociáveis. A Teologia libertadora-ecológica que se desenha parte do pressuposto elementar que, mantendo-se o atual nível de exploração e exaustão dos recursos naturais, o planeta chegará a um ponto irreversível, colocando em risco a própria existência da vida sobre sua face. Fica evidente a dimensão da urgência e a necessidade da teologia ultrapassar sua índole especulativa e tornar-se fator de mobilização. Penso que o Fórum realizado na Amazônia pode representar um marco decisivo, desde que não se repitam os erros cometidos sobre a região, de apenas se trazer respostas prontas, sem perceber e entender a região como ela é. Um exercício fundamental nesse momento crucial de reflexão será ouvi-la, perscrutar seu povo e sua cultura, e perceber, nessa cultura periférica e em franca erosão, pistas decisivas para uma teologia profundamente ecológica.

IHU On-Line – Quais são os principais desafios e possibilidades que a Teologia da Libertação enfrenta hoje, no que se refere à temática da ecologia?

Antonio Carlos Teles da Silva – Logicamente o próprio tema já indica o eixo principal de compromisso libertador-ecológico para outro mundo possível. Como já foi dito, ecologia e libertação são eixos indissociáveis. Penso que referências de uma cultura inerentemente ecológica podem ser encontradas na vivência dos próprios caboclos amazônicos. Minha preocupação principal é fazer uma releitura da Amazônia a partir de sua culturalidade como suporte para uma Teologia amazônica. Penso que mais do que teologia na Amazônia seja possível uma Teologia Amazônica, que considere, além da culturalidade, a cosmovisão e a índole cabocla, incluindo sua condição humana e existencial.

IHU On-Line – Pode esboçar alguns pontos principais que vão ser debatidos no Fórum, especialmente na conferência que o senhor vai apresentar?

Antonio Carlos Teles da Silva – Proponho algumas ênfases específicas, como a questão identitária, ante a rejeição da condição cabocla, consequência da invisibilização histórico-cultural. Faço essa leitura a partir da obra do escritor caboclo marajoara Dalcídio Jurandir, cujo ciclo enfoca essa condição de vida. Dalcidio Jurandir, embora possa ser incluído entre os melhores escritores da literatura nacional, sofre igualmente a mesma invisibilização, sendo praticamente um desconhecido do público leitor.

Outra ênfase que julgo fundamental é a importância da água como definidor de um determinado modo de vida e, consequentemente, da identidade cultural cabocla. A partir da relação peculiar das populações caboclas ribeirinhas do Marajó com a água, refletida nos seus modos de vida, na sua cosmologia e no seu ethos cultural, tão íntima e profundamente retratados por Dalcídio Jurandir, podemos intuir uma Teologia cujo nexo central de compreensão seja essa relação ontológica entre o ser humano e a natureza-água. Portanto, numa perspectiva libertadora-ecológica, uma possível Teologia das Águas Amazônicas deve pretender ir muito além de uma postura e de um apelo meramente preservacionista em relação à natureza. Mesmo não podendo prescindir dessa defesa ambiental, vislumbramos a possibilidade de um mergulho de alma e corpo inteiros nas implicações ontológicas dessa vivência simbiótica, abrindo outras possibilidades promissoras de uma Teologia de reencanto e reencontro entre o ser humano e a natureza. Dessa forma, a proposta de uma Teologia das Águas Amazônicas, de cunho inerentemente libertador e ecológico, deve ter como ênfases norteadoras, entre outras possíveis, alguns pressupostos essenciais:

Reconhecimento do lugar vital da água não apenas para a sobrevivência humana, mas também para seu autorreconhecimento, enquanto parte de um projeto criador no qual há propósito e amor. Reconhecimento da culturalidade das águas como elemento decisivo para um convívio amigável e parceiro, numa nova dimensão na relação entre o ser humano e a natureza. Percepção da extraordinária capacidade de autorregulação e autorregeneração do mundo das águas amazônico, como sistema aberto a novas possibilidades de convívio simbiótico. Reconhecimento da convergência entre as percepções da nova ciência multidisciplinar holística, e o ethos cultural original amazônico, naquilo que possui de intimo entrelaçamento com a natureza-água, e o ser humano como partícipe dela, tendo-a como parte de si próprio.

Notas:

1. O pré-milenismo defende que a segunda vinda de Cristo se dará antes da inauguração do reino que durará mil anos (o milênio). Então, inaugura-se um novo milênio de paz, quando Ele estará na terra reinando. Os pré-milenistas ensinam que, na segunda vinda de Cristo, os santos que estiverem vivos e os que estiverem mortos receberão corpos glorificados e imortais. Eles encontrarão Cristo nos ares e retornarão para governar com ele a terra por mil anos. Esse período anos será de paz e justiça mundial. No final desses mil anos, Satanás será solto de sua prisão e reunirá um exército de incrédulos. Haverá um período de perturbação, com uma grande batalha (a do Armagedon). Cristo, então, ressuscitará todos os incrédulos que tiverem morrido ao longo da história, e estes comparecerão diante dele para o julgamento final.

2. Fritjof Capra nasceu em 1939 e é um físico austríaco, cientista, ambientalista, educador e ativista. Ganhou fama internacional após lançar “O tao da física” (Cultrix, 2000), no qual discorre sobre os paralelos entre a física quântica e o misticismo oriental. Também é de sua autoria “O ponto de mutação” (Cultrix, 1982), que já está em sua 25º edição, em que explora as mudanças no paradigma social que acompanham as descobertas científicas. Atualmente, vive em Berkeley, na Califórnia. Fundou o Center for Ecoliteracy, uma instituição que forma profissionais para ensinar ecologia nas escolas. É professor do Schumacher College, um centro de estudos ecológicos na Inglaterra. Em português, foram publicados, entre outros, os livros: “A teia da vida” (Cultrix, 1997), “Alfabetização ecológica” (Cultrix, 2003) e “A ciência de Leonardo Da Vinci” (Cultrix, 2008).

Fonte: IHU – 19/01/2009