Jung Mo Sung fala sobre Hugo Assmann

Hugo Assmann: teologia com paixão e coragem

Jung Mo Sung

Faleceu no dia 22/02/08 Hugo Assmann, um dos principais teólogos da libertação. Na verdade, ele foi mais do que teólogo, foi um pensador que se guiou pelo seu compromisso pessoal –existencial e espiritual– com pessoas oprimidas e excluídas das condições dignas de vida e se utilizou e dialogou com as mais diversas áreas de saber para desenvolver idéias sempre profundas, críticas e provocantes.

A sua produção teológica é de difícil classificação se seguirmos as divisões clássicas da teologia. Os seus principais textos teológicos não têm como principal objeto de análise as questões dogmáticas sobre Deus ou Igreja. Não porque ele pensasse que esses temas fossem menos importantes, mas porque ele acreditava que as principais questões teológicas no mundo contemporâneo se encontram fora do campo especificamente religioso ou teológico. Ele fez das práticas de libertação o seu objeto principal de reflexão –como ele e tantos outros teólogos da libertação se propuseram no início da Teologia da Libertação – e assumiu como os seus temas de reflexão os desafios que surgiam dessas práticas.

Ele foi um dos primeiros e principais teólogos da libertação que percebeu que os capitalistas e os seus ideólogos tinham uma grande capacidade de manipular a dimensão simbólica do ser humano e os mitos mais profundos da sociedade. Utilizando-se dos seus estudos do marxismo crítico em Frankfurt, em especial com Adorno, e dos diálogos com colegas teólogos/as e militantes cristãos, já no início da década de 1970 ele começou a centrar suas reflexões teológicas na crítica da dimensão religioso-teológica do capitalismo.

Após vários exílios, em San José, Costa Rica, ele fundou o Departamento Ecuménico de Investigaciones (DEI), onde, juntamente com o seu amigo Franz Hinkelammert, desenvolveu uma sólida linha de pesquisa sobre a relação teologia e economia. Um dos principais resultados de linha de pesquisa é o livro A idolatria do mercado (em co-autoria com F. Hinkelammert, 1989, Vozes), um livro fundamental que merece ser mais estudado e aprofundado.

Nesse livro, Assmann desenvolveu uma crítica poderosa aos pressupostos teológicos do sistema de mercado capitalista e das teorias econômicas liberais e neoliberais. Ele desmascarou o que ele chamou de “sequestro do mandamento do amor” e revelou o processo econômico e teórico que culmina, no capitalismo, com a absolutização do mercado que acaba por exigir e justificar sacrifícios de vidas humanas. Ele chamou esse processo de “idolatria do mercado”. O objeto da sua crítica não era o mercado como tal –que ele reconhecia como algo necessário na vida econômica de uma sociedade ampla e complexa–, mas a sua absolutização.

Criticar todas as formas de idolatria para que nós pudéssemos nos abrir para o mistério do amor de Deus foi uma das tarefas que Assmann sempre levou muito a sério. Todas as formas de certeza sobre Deus e os seus desígnios e “projetos” – sejam da direita ou da esquerda – era para ele uma forma de idolatria. E como todos os tipos de idolatria sempre exigem sacrifícios dos mais pobres e fracos, Assmann sempre teve coragem de criticar também a tentação de idolatria nas esquerdas em geral e também na cristã.

Em uma longa conversa por telefone, uns 15 anos atrás, ele me disse quase como um desabafo: “Jung, não podemos perder a parresia!” Não perder a coragem de dizer a verdade é um desafio e tanto, especialmente quando a brutalidade das opressões e das injustiças levam muitos a pensarem que as críticas devem ser dirigidas somente contra os dominadores. Mas ele sabia que há posições práticas e teóricas das esquerdas e da TL, que alimentam nas lideranças e nos “pseudo-profetas” uma auto-imagem de “radicais”, mas também aumentam o ainda mais o peso nos ombros dos mais “pequenos” e/ou levam a equívocos estratégicos. Por isso, fiel à sua vocação de intelectual comprometido com causas populares, ele também criticava pensamentos e propostas de pessoas que ele considerava companheiros de luta.

Essa coragem e a forma apaixonada com que ele escrevia e falava expliquem, talvez, porque ele, que foi sem dúvida um dos teólogos e analistas sociais mais competentes na crítica do capitalismo, tenha sido tão pouco convidado para as grandes e muitas atividades na área de “pastoral social” promovidas pela Igreja Católica. Em mais de 20 anos de relacionamento (primeiro eu fui seu aluno, depois um discípulo-amigo), ele nunca se queixou abertamente dessa situação de certa marginalização nas instâncias institucionais do “cristianismo de libertação” (ele não usava essa expressão, mas penso que ele concordaria comigo que ela expressa melhor a amplitude do que ocorreu no cristianismo da A.L. desde 1960, mais do que a “teologia da libertação” ou “igreja dos pobres”), mas não era difícil perceber nele um incômodo inevitável com essa situação.

Uma questão que pode nos ajudar a entender a diferença ou a característica de Hugo Assmann na abordagem das questões teológico-sociais aparece em uma tese de Vico, que eu estudei com Hugo no mestrado. Vico critica a filosofia (e nós acrescentamos na discussão a teologia) por considerar somente o homem como ele deve ser, enquanto que os modernos que surgiam consideravam o homem como ele é e tentam aproveitá-lo na sociedade. Para Assmann, muitos dos equívocos das práticas pastorais, sociais e políticas das esquerdas têm como uma das causas o equívoco antropológico de se basear no “ser humano que deve ser” e não no ser que é e que pode ser. Pensamos e agimos mais a partir do que deveria ser (“o homem/mulher novo/a; o Reino de Deus, etc…), sem preocuparmos suficientemente com o ser humano e a vida em sociedade como realmente “é”, e como “pode ser” dentro dos limites da condição humana e da história. Entre o que é e o que deve ser ou desejamos que seja, há o campo do que pode ou não pode ser.

A busca por compreender melhor o ser humano como ele é e o que torna possível a existência e o funcionamento de sociedades tão amplas e complexas como as nossas levou Hugo a estudar os mais diversos campos de conhecimento, como economia, neurociências, sistemas complexos, mecanismos auto-reguladores e auto-organizadores na biologia e na economia/sociologia, biologia da cognição, etc. Tudo para compreender o que leva as pessoas, grupos, igrejas, instituições, sociedade a serem tão insensíveis ao sofrimento de tantas pessoas e à realidade da exclusão social; para contribuir na superação dessa situação para uma onde todas as pessoas pudessem viver uma vida digna e prazerosa; para desmascarar os mecanismos idolátricos que estão presentes nas nossas sociedades e nas nossas vidas pessoais.

Nos últimos anos, convivendo com sequelas de um acidente vascular cerebral e outros problemas de saúde, ele estava meditando muito sobre a noção de “Deus interior”. A ideia-guia das suas meditações era uma frase de Santo Agostinho: “Deus me é mais profundo a mim do que eu a mim mesmo”. Ele preferia a tradução “Deus me é mais íntimo a mim…”. Nas últimas conversas que tivemos, ele sempre voltava a essa ideia e estava começando explorar a noção de “Deus andarilho”, uma “espiritualidade nômade”, um Deus que não se deixa aprisionar por templos, igrejas, instituições ou teologias, mas que caminha no meio da humanidade. Como ele estava internado em uma casa de saúde e sem acesso a Internet, ele me estimulava a fazer essas pesquisas e compartilhar com ele. As suas últimas reflexões teológicas –que ficaram registradas em algumas notas escritas com dificuldade em seu caderno– seguem a mesma linha teológica de toda a sua vida: a busca do Deus que está além de todas as nossas certezas e tentações idolátricas e das práticas “libertárias” educacionais e sociais que sejam expressão dessa busca.

Eu o vi pela última vez um dia antes da sua remoção para hospital e UTI, onde faleceria cinco dias depois. Ele me reconheceu, mas estava já muito enfraquecido com início de pneumonia e de falência renal. Os seus olhos estavam mirando longe.

Ele viveu a vida de uma forma apaixonada, com emoções fortes em todos os sentidos. Para quem não o conheceu pessoalmente, é difícil compreender quem foi Hugo Assmann. Mas os seus textos estão aí para nos mostrar a sua grande contribuição para a Teologia da Libertação e também na área de educação (onde ele também atuou a partir da década de 1980). Para finalizar esta pequena homenagem ao meu mestre-amigo, eu quero citar um texto dele, escrito em 1973, que dá uma amostra do seu compromisso, da paixão com que ele fez a teologia e da atualidade do seu pensamento:

“Se a situação histórica de dependência e dominação de dois terços da humanidade, com seus 30 milhões anuais de mortos de fome e desnutrição, não se converte no ponto de partida de qualquer teologia cristã hoje, mesmo nos países ricos e dominadores, a teologia não poderá situar e concretizar historicamente seus temas fundamentais. Suas perguntas não serão perguntais reais. Passarão ao lado do homem real. Por isso, como observava um participante do encontro de Buenos Aires, `é necessário salvar a teologia do seu cinismo`. Porque realmente frente aos problemas do mundo de hoje muitos escritos de teologia se reduzem a um cinismo.” (Teologia desde la práxis de liberación, p.40)

Fonte: IHU – 25.02.2008