Jim West fala hoje, em seu blog, da violência na África, em ‘God Left Africa A Long Time Ago’ [Obs.: blog falecido, link sepultado] e, entre outras coisas, menciona:
“Sudan, Chad, Kenya, and other ‘death zones’ keep Africa in the news- and not in a good way. What’s going on there? Are death and violence simply the way disputes are best settled? Clearly not. So why, then, are they the chosen means by so many in Africa?”
Acabo de ler um artigo em Carta Maior: A questão do Quênia. Escrito por Flávio Aguiar no dia 31.01.2008. Recomendo. Nada entendo da África. Mas gostaria de entender.
Minha compreensão é que devemos falar da África no plural: há muitas “Áfricas”, geográfica, étnica, cultural e politicamente distribuídas no continente africano. Não se pode simplificar. Depois, há o que Tim Bulkeley já escreveu como comentário ao post do Jim: a violência hoje existente na África é resultado, em grande parte, da intervenção colonialista e imperialista do Ocidente. Por onde passaram as potências capitalistas, exacerbou-se o rastro de ódio. Muitos especialistas dizem ser esta a causa maior, embora não a única, das guerras atuais.
O que choca um ocidental dos Estados Unidos ou da Europa é que lá a guerra é “suja”. Como diz Flávio Aguiar:
[O que vemos no Quênia são] “massacres mútuos entre Kikuyus e Luos, perpetrados a golpes de machete, de porretes, ou com pneus em chamas presos aos pescoços das vítimas. São imagens de uma ‘guerra suja’, em contraste com as ‘guerras limpas’, intervenções cirúrgicas e assépticas para os interventores, apesar dos milhares de mortos do outro lado, que as potências do mundo hoje costumam patrocinar e praticar”.
Mas toda guerra, para os derrotados, é suja. Como diz Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas: “Guerra diverte – o demo acha”. Ou guerra é “só o contrário do que assim não seja”.
Mas deve existir, Jim, algumas centenas de bons livros, em inglês, que analisam com competência a situação das várias “Áfricas” e contextuam historicamente os correntes conflitos.
O artigo de Flávio Aguiar, A questão do Quênia
Por entre o crescente frenesi em torno da terça-feira, 5 de fevereiro, onde primárias democratas e republicanas ocorrerão em duas dezenas de estados norte-americanos, a imprensa europeia de hoje está tomada por relatos sobre a situação do Quênia, que se deteriora no que é descrito já como campanhas de massacres ou enfrentamentos étnicos, entre Kikuyus, grupo do atual presidente, Mwai Kibaki, e Raila Odinga, da oposição, dos Luo.
É difícil penetrar mais a fundo em diferenças programáticas – se existem – entre esses dois candidatos que se enfrentaram nas eleições presidenciais do fim do ano passado e que foram o estopim dos atuais enfrentamentos, sob acusações de que o presidente Kibaki teria comandado uma fraude eleitoral para ser declarado vencedor.
Toda a descrição da cena remonta a citação de massacres mútuos entre Kikuyus e Luos, perpetrados a golpes de machete, de porretes, ou com pneus em chamas presos aos pescoços das vítimas. São imagens de uma “guerra suja”, em contraste com as “guerras limpas”, intervenções cirúrgicas e assépticas para os interventores, apesar dos milhares de mortos do outro lado, que as potências do mundo hoje costumam patrocinar e praticar.
Como quase toda nação africana moderna, o Quênia tem um passado confuso e complexo de intervenções vindas de fora. É necessário inicialmente compreender que estamos falando de um dos berços da humanidade. Os traços de humanoides, hominídeos, australopitecos e demais antepassados ou primos distantes do homo sapiens remontam respectivamente a 20, 6, ou 2 milhões de anos.
Desde milhares de anos as terras do Quênia foram cenário de caravanas e povos invasores, desde os árabes, depois os europeus: primeiro os portugueses, depois os alemães e finalmente os ingleses, que ocuparam os planaltos interiores com plantações de chá.
A ocupação inglesa provocou uma série de revoltas e sedições desde o começo do século XX, todas reprimidas com notória brutalidade pelos ocupantes. Foi assim na década de 20 com os movimentos de reivindicação trabalhistas, e foi assim logo depois da Segunda Guerra, quando surgiu o primeiro movimento organizado de independência nacional e luta pela terra, conhecido com o nome, dado pelos ocupantes, de a Revolta dos Mau Mau, que, entre eles, chamavam-se de “combatentes da liberdade”. Em todas essas revoltas, inclusive a dos Mau Mau, a participação dos Kikuyus foi preponderante.
A repressão contra os Mau Mau foi notória e espetacular. Houve, primeiro, uma repressão simbólica. Declarados um grupo terrorista, de fanáticos assassinos de fazendeiros brancos, os Mau Mau foram estigmatizados na literatura e no cinema. O mais famoso filme dessa laia, que assisti aterrorizado (pelos “cruéis Mau Mau”) numa matinê dominical do cinema Capitólio, em Porto Alegre, foi Safari, com Victor Mature no papel principal, como um fazendeiro branco que tem o filho e o resto da família assassinados pelos “fanáticos” e se dedica ao seu extermínio, o que consegue depois de muita perseguição e assassinatos.
Informações mais equilibradas dizem hoje que de fato houve violência dos Mau Mau contra famílias de fazendeiros ingleses, mas que ela foi esporádica. Havia mais perseguições contra africanos que colaboravam com os ingleses, o que não elimina nem absolve violências praticadas. Mas os Mau Mau se caracterizavam sobretudo por serem independentistas, por desejarem atrair outras etnias para sua causa, e por lutar pela posse da terra, esbulhados que se sentiam pelos colonos europeus.
Em compensação, a repressão britânica foi exemplar. Oficialmente, de 1952 a 1959, ano em que a rebelião foi considerada extinta, houve 13 mil mortos em consequência das ações militares ou da repressão política. Dos Mau Mau, morreram 10.173, sendo que destes, 1.574 foram mortos por enforcamento. O número de prisões passou de 70 mil, grande parte sem processo nem julgamento.
Entre as consequências dessa repressão em meio a uma luta desigual, descrevem-se hoje 1) a conclusão a que os britânicos chegaram de que seria impossível no Quênia estabelecer um governo de minoria branca, como queriam os fazendeiros; daí abrirem caminho para a independência liderada por um governo formado por africanos, o que se efetivou em dezembro de 1963, sob a liderança de Jomo Kenyatta, um Kikuyu que fora preso e condenado a 7 anos por ocasião da revolta dos Mau Mau; 2) a independência se fez num país em que a repressão, como não é incomum nesses casos, se assentou sobre rivalidades e perseguições tribais, impedindo a formação de um sentimento de unidade nacional mais profundo.
Desde a independência, a luta política no Quênia vem se dando no interior do grupo que “sucedeu” a Kenyatta, centrado nos políticos herdeiros da frente liderada por ele onde predominaram os de origem Kikuyu. Esses grupos, a começar pelo próprio Kenyatta, exerceram uma repressão dura contra seus oponentes, aponto de num dado momento, o Quênia tornar-se um país de partido único. Isso que, aparentemente seguiria um modelo comunista, se dava, no entanto, num país pobre, em que a maioria da população vive com menos de 1 dólar por dia, e integrado, durante e depois dos anos 90, às vagas das políticas neoliberais que impediam a concentração de possibilidades de reerguimento estatal para alavancar um desenvolvimento. O resultado desses quadros sucessivos foi o agravamento da “tribalização” das lideranças políticas, seguidas denúncias de corrupção, o que aparece como uma luta por um botim de verbas públicas, de financiamentos estrangeiros e até das ajudas humanitárias provindas de organismos internacionais e de ongues sobretudo religiosas e europeias, e uma concentração de poderes cada vez maior nas figuras presidenciais, Daniel Moi, que sucedeu Kenyatta, e ficou anos no poder, e agora Kibaki, que sucedeu Moi. Tudo isso num cenário de miséria e favelização crescente das cidades, sobretudo de Nairóbi, cuja estimativa populacional fala em 4 milhões de habitantes, mas cuja estimativa não oficial fala em mais de 6 milhões. Kibera é uma das maiores e mais pobres favelas do mundo, e ali, em meio às lutas com machetes e porretes, disputam-se tanto migalhas e barracos mínimos quanto o poder que isso representa, em termos locais e em termos de obtenção de favores dos “de cima”. Teme-se que logo depois dos machetes venham as metralhadoras, e que o país possa dividir-se num sul Kikuyu e num norte Luo.
O Quênia é um país de paisagens extraordinárias. Quando lá estivemos, em janeiro de 2007, para cobrir a 7a. jornada do Fórum Social Mundial, além da cobertura fizemos (a Carta Maior – veja nossas reportagens e crônicas) uma viagem ao parque Masai, o sudoeste de Nairóbi, onde conhecemos alguns dos membros desse povo-pastor, antigamente nômade. Lá conversei longamente, junto com o Marcel Gomes, com Maripet Ole Nkoile, um pastor de cabras, ovelhas e reses, a quem carinhosamente apelidei de “filósofo”.
Maripet tentava entender as mudanças por que passavam seu país e seu povo, com a crescente chegada do turismo e seus fornidos dólares, com a educação sendo aberta para todos e para as meninas, e me confessava olhar tudo isso com esperança, mas também com temor. Ficamos amigos, prometi mandar-lhe um postal de S. Paulo, onde eu morava então. Cumpri a palavra, mandei. Espero que ele possa me responder. Com mais esperança do que medo.