Mídia ‘abafa’ investigações contra PSDB
Segundo relatos de jornalistas das principais redações do país, há ‘ordem velada’ para se poupar candidaturas tucanas. Equipes são destacadas para investigar suposta venda do dossiê, enquanto pautas sobre relação de tucanos com sanguessugas são vetadas.
Um dos últimos boletins eletrônicos de campanha do presidente Lula afirma que o “ódio” de alguns meios de comunicação pela esquerda tem “motivos simples, embora inconfessáveis”. “Acostumados ao controle que detinham sobre a opinião pública desde a redemocratização do país, alguns meios de comunicação não se conformam com a situação atual, em que a maior parte do povo vota em Lula, contra a opinião da maior parte da mídia, que é alckmista. O que mais incomoda estes setores da direita e dos meios de comunicação são as mudanças na estrutura social brasileira”, diz o texto.
Nas últimas semanas, depois da eclosão da crise do dossiê contra Serra, o presidente tem feito duras críticas ao comportamento da imprensa. Em discurso feito em Porto Alegre nesta segunda-feira (25), Lula disse que a cada erro que companheiros do partido cometem os jornais reagem como se “tivesse caído uma bomba atômica”, repercutem “meses e meses”. Já o erro dos adversários sai “no dia seguinte das páginas dos jornais”.
Estaria Lula exagerando nessa avaliação? Na última terça-feira (26), o jornal O Globo publicou uma matéria intitulada “Ataque de Lula à imprensa provoca reações”, que afirma que, na opinião de jornalistas e políticos ouvidos pelo jornal, o “episódio da compra do dossiê contra o candidato do PSDB ao governo do Estado de São Paulo, José Serra, foi criado por integrantes do partido de Lula, não por jornalistas”.
A reportagem ouve, no entanto, somente fontes que confirmam a tese de que a cobertura estaria equilibrada. Na reportagem, o jornalista Alberto Dines, do “Observatório da Imprensa”, afirma que o discurso de Lula é “esquizofrênico” e que a mídia “tem se comportado muito bem”. A outra fonte ouvida é o diretor de redação do jornal O Estado de S. Paulo, Sandro Vaia, que diz que a imprensa está cumprindo sua obrigação ao cobrir e dar espaço em suas edições ao episódio, sem “partidarismos”. O ombudsman da Folha de S.Paulo aparece dizendo que a imprensa tem agido corretamente ao dar visibilidade ao caso.
Ninguém discorda disso. No entanto, onde estaria o acompanhamento da imprensa do outro lado desta história? Por que nossas equipes de jornalismo investigativo não foram atrás, como a mesma profundidade, das informações que o dossiê trazia? Como foram determinadas as linhas de coberturas dos jornais, revistas e da televisão acerca do caso?
No dia 18 de setembro, poucos dias depois da prisão de Gedimar Passos e Valdebran Padilha em São Paulo, a análise interna de Marcelo Beraba, ombudsman da Folha de S.Paulo, dizia que parecia “correta até aqui a cobertura jornalística da Folha do dossiê contra Serra que os Vedoin tentavam vender para um membro do PT e uma revista. Desde sábado o jornal está bem informado, deu destaque necessário nas Primeiras Páginas, tem dado espaço para as várias acusações e para as várias defesas e explicações e tem tratado as acusações ainda não confirmadas com cautela”. Dois dias depois, no entanto, destacava que a “Folha relegou a uma nota pequena e sem destaque, no final da edição, à continuação da investigação que iniciou no interior de São Paulo seguindo as pistas reveladas pela entrevista dos Vedoin à IstoÉ e que relacionam os ex-ministros José Serra e Barjas Negri à máfia dos sanguessugas. Aliás, o título da nota – “Ex-prefeito admite ter sido pago por Abel”, página A14 – é impossível de ser decifrado. Quem é Abel?”.
Já no dia 21, Beraba afirma que “sumiu, na Edição SP, a única notícia que dava seqüência às investigações que a Folha vem fazendo do envolvimento de tucanos com a máfia dos sanguessugas. Na Edição Nacional, a nota “Barjas Negri é investigado em Piracicaba” está na página A7, mas depois caiu”. No dia seguinte, o ombudsman aponta uma mudança importante na manchete da primeira página:
“A Edição Nacional circulou com a declaração do presidente à TV Globo: “Lula põe ‘a mão no fogo’ por Mercadante”. Mais tarde, com o depoimento de um dos Vedoin à Polícia Federal, o título mudou: ‘Vedoin isenta Serra do caso sanguessuga’. Embora as palavras dos Vedoin já não mereçam grande credibilidade, tantos depoimentos e entrevistas contraditórios já deram; o jornal, ao optar por mais esta declaração, deveria ter colocado na formulação da manchete ou da linha de apoio a informação completa: Vedoin disse que não sabia de indícios contra Serra, mas voltou a acusar Abel Pereira de receber propinas na gestão do também tucano Barjas Negri, sucessor de Serra. O título interno contempla as duas informações e mostra que a Primeira Página teria condições de ter feito formulação parecida – ‘Vedoin isenta Serra, mas acusa sucessor’. Como está, a manchete da Folha faz parecer que a única preocupação do jornal é isentar o candidato do PSDB ao governo de São Paulo, e não a apuração do esquema dos sanguessugas que teria se apropriado do Ministério da Saúde nos governos FHC e Lula”.
As críticas à cobertura do jornal continuam até esta quarta-feira (27), quando Beraba afirma que desapareceu, na Edição SP da Folha, a meia página de noticiário sobre o suposto envolvimento do ex-ministro Barjas Negri (PSDB) no escândalo dos sanguessugas publicada na Edição Nacional. “Os títulos das reportagens da Edição Nacional que caíram: ‘Presidente de CPI vê prova contra tucano’, ‘Empresário daria à Justiça papéis contra tucano’ e ‘Abel agora diz que foi duas vezes à Saúde’ (página A7). Para abrigar o noticiário dos debates que terminaram tarde, a Edição SP teve de excluir algumas reportagens publicadas da Edição Nacional. Precisavam ser exatamente as referentes ao noticiário sobre o suposto envolvimento dos tucanos?”, questiona o ombudsman.
Dentro das redações
As decisões acerca da cobertura da Folha de S. Paulo, que são apontadas, mas não explicadas, pela crítica interna da redação, não são exclusivas do jornal cujo presidente – Luis Frias – é amigo pessoal de José Serra. Em veículos do mesmo grupo, vale a regra do faz de conta: faz de conta que Abel Pereira – o empresário ligado ao PSDB que também estaria envolvido em negociações do dossiê – não existe.
“Como Abel [Pereira] não está preso, não está indiciado, então faz de conta que ele não existe. Mas ele também estava negociando o dossiê com Vedoin; havia um leilão de informações, independente do conteúdo ser verdadeiro ou falso. Era preciso investigar por que ele estava lá. Mas o que se faz é repercutir o que sai no jornal impresso do dia. Então, se a Folha não dá, aqui também não sai nada. Parece que, por alguma razão, as pessoas não conseguem entender que há um outro lado da história”, disse à Carta Maior um jornalista que trabalha numa empresa do Grupo Folha.
“Aqui não há uma pressão para que o Serra apareça bem, mas todo mundo sabe que a ordem de cima é pra poupá-lo. Se vier algo concreto contra ele, vamos dar. Mas se for uma situação nebulosa – como acontece com informações sobre outros políticos que acabam publicadas – não damos”, explica outro profissional que trabalha na empresa.
Em outro grande jornal de São Paulo, cuja linha editorial é claramente favorável aos tucanos, a cobertura da crise recente foi “como o de sempre”. “Ataquem os inimigos e finjam-se de mortos com os amigos”, relatou um repórter. “O foco da pauta desses dias foi todo no bando que comprou o dossiê, mas ninguém se preocupou em ir atrás do dossiê. A pauta do dia já vem pronta, na verdade: o repórter chega e já dizem pra ele pra onde ele vai correr. Aí ele vai pra rua, apura o que pediram pra apurar e acabou”, explica outro jornalista do mesmo jornal.
Segundo os repórteres de uma das revistas semanais de maior circulação, há uma clara diferença de comportamento entre o período “padrão” e os períodos de “crise”. As informações chegam, são apresentadas pela equipe de reportagem, mas não ganham continuidade na pauta.
“Não há uma ordem explícita. Há pequenos boicotes internos e você nunca sabe se isso é voluntário”, diz um jornalista do semanário. “Você até tenta furar o bloqueio. Apura, mostra, mas a pauta não anda. É inexplicável”, completa.
Na época da crise do mensalão, qualquer informação contra o governo era usada pela revista para confirmar a tese de autoritarismo e aparelhamento do Estado. Quando alguma coisa vazava “do outro lado” – por exemplo, quando surgiu a relação entre Marcos Valério e o tucano Eduardo Azeredo –, e não havia como sonegar a informação do leitor, “a matéria se transformava numa análise sociológica de como a política é suja no Brasil. Ou seja, uma matéria é a sujeira de um partido. A outra, é a sujeira da política no geral. Aí essas informações caem na vala comum”, explica um dos jornalistas do veículo.
Pelos relatos – e pelo fato de todos os jornalistas temerem falar abertamente sobre a cobertura política que seus veículos realizam –, fica nítido que há uma pressão clara dos donos dos meios de comunicação não apenas para que a cobertura siga determinada orientação, mas também para que não se discuta isso publicamente.
Na televisão
Na maior emissora de TV do país, o clima na redação não é diferente. Na semana passada, a Rede Globo não falou, em nenhum momento, que 70% das ambulâncias da Planam foram liberadas durante a gestão do PSDB, quando Serra estava à frente do Ministério da Saúde. A emissora também não enviou uma equipe até Piracicaba, para investigar Abel Pereira e as suspeitas que pesam sobre o ex-secretário-executivo de José Serra e atual prefeito da cidade, Barjas Negri. Durante a crise do mensalão, a emissora colocou repórteres investigando a fundo as denúncias contra Antônio Palloci em Ribeirão Preto. Mas Piracicaba parece que foi “esquecida” desta vez.
Esta semana, a emissora entrou na cobertura do “caso Abel” de forma tímida, mas com espaço para manipulações sutis. Na última terça-feira, em entrada ao vivo no jornal Hoje, o repórter da TV Centro-América, afiliada à Globo em Mato Grosso, disse que Abel Pereira esteve em Cuiabá na véspera da entrevista para a revista IstoÉ, e que Pereira é ligado a Barjas Negri, ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso (Negri assumiu o ministério quando da saída de Serra). À noite, o texto da edição do Jornal Nacional descrevia Negri como “ex-ministro do governo anterior”. Osvaldo Bargas, Jorge Lorenzetti e Freud Godoy são descritos dezenas de vezes ao dia como petistas. Mas Abel Pereira não pode ser tratado como lobista de um ex-ministro e prefeito tucano.
Com didatismo, a emissora relaciona o presidente Lula e os corruptos de seu governo e do partido envolvidos com a história do dossiê. O mesmo não acontece com Serra, Negri, Pereira, Vedoin e os deputados mensaleiros do Mato Grosso, que na época eram do PSDB. A pergunta que o telespectador se faz é: “Lula não sabia de nada?”. Mas ao eleitor não é dada a chance de se perguntar: “E Serra, não sabia de Abel? Se Barjas Negri era seu braço direito, como Serra não sabia dos sanguessugas atuando ali tão perto?”
O desequilíbrio da cobertura da Globo contaminou também o acompanhamento dos candidatos à presidência. Desde o início da campanha, a recomendação dos editores era a de que as entrevistas dos candidatos nas ruas deveriam ser sempre propositivas. Nada de críticas ou provocações aos adversários. No caso do PCC, por exemplo, o candidato petista ao governo de São Paulo não podia aparecer cobrando do governo do PSDB/PFL por que a polícia paulista havia perdido o controle do crime organizado. No entanto, diariamente se vê no Jornal Nacional as críticas dos demais candidatos a Lula.
Na quarta-feira (20) da última semana, Geraldo Alckmin foi agraciado com 1´20” no Jornal Nacional. Os outros candidatos tiveram 30 segundos. A justificativa dos editores cariocas foi a de que tratava-se do lançamento do programa de governo do PSDB, daí o tempo maior. No entanto, as declarações de Alckmin neste dia não foram sobre seu programa, mas atacando a corrupção do governo Lula. No dia do lançamento do programa de governo de Lula, na última semana de agosto, o candidato recebeu 1´30” – exatamente o mesmo tempo dado ao PSDB, incluindo espaço para Fernando Henrique criticar o presidente em seu discurso no Jockey Clube.
“Na redação, as pessoas estão com o estômago revirado. Ninguém duvida da necessidade de mostrar essa quadrilha de pseudo-sindicalistas que tentaram comprar o tal dossiê. Mas e o outro lado? E os sanguessugas tucanos? O que vemos, é um massacre ininterrupto no ar”, contou à Carta Maior um jornalista da TV.
Credibilidade em jogo
Em seu site pessoal, o repórter da Globo Luiz Carlos Azenha avalia que o que acontece hoje é um “espetáculo de hidrofobia que, lamentavelmente, não se fez quando a Vale do Rio Doce foi privatizada ou quando surgiram denúncias de que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso comprou votos no Congresso para garantir seu direito à reeleição”. “Embora isso não justifique o banditismo de integrantes do governo Lula, está claro que sanguessugas, vampiros e mensaleiros começaram a agir no governo FHC. O que fez a Polícia Federal, então? E Aristides Junqueira (sic), o engavetador-geral da República?”, questiona Azenha.
O repórter diz que se sente à vontade para escrever sobre o atual governo porque investigou e denunciou alguns de seus integrantes. “Mas o trabalho de um jornalista deve ser guiado pela imparcialidade. A pior coisa que um repórter pode fazer é trombar com os fatos”, afirma.
Nos bastidores do jornalismo, não são poucas as histórias do poder de José Serra junto aos donos dos meios de comunicação. Certa vez, ele teria ligado diretamente para Boris Casoy e pedido a cabeça de um repórter que não havia feito a “pergunta combinada” a ele numa entrevista de rua. Também não são poucas as inclinações das chefias às políticas conservadoras.
Na avaliação de Luís Nassif, em post publicado esta semana em seu blog, é evidente que há uma competição entre praticamente todos os grandes veículos da mídia para saber quem derruba Lula primeiro. “Está-se tentando repetir a história, quando o momento seria propício para o veículo que se colocasse acima das paixões, recuperasse a técnica jornalística e se comportasse como magistrado, duro, inflexível, porém justo, colocando a preocupação com o país acima das conveniências de momento”, escreveu o jornalista.
Para Nassif, a virulência do editorial de domingo (24) da Folha de S. Paulo adotou um estilo inspirado em Carlos Lacerda. Lacerdista ou não, é fato que há uma guerra declarada da mídia ao governo e uma onda – não necessariamente articulada, porque nem precisa ser – para poupar tucanos e fingir que nada se passa do lado oposto do muro. Pesquisas quantitativas e qualitativas – como as divulgadas pelo Observatório Brasileiro de Mídia – mostram como isso se reflete no tempo e no espaço de textos negativos ou positivos dados pela imprensa a cada um dos candidatos. Dentro das redações, os movimentos são sutis. Por enquanto, as pesquisas eleitorais mostram que, apesar da artilharia, o efeito surtido questiona a eficiência da estratégia. Resta saber se, depois das eleições, o caminho escolhido pela imprensa brasileira não afetará sua credibilidade e sua capacidade de continuar influenciando a opinião pública.
Fonte: Bia Barbosa – Carta Maior: 29/09/2006