O Mino voltou

O Blog do Mino Carta está de volta… Depois de breve aparição, sumiu de novo. Mas o Mino está aí, vivíssimo.

 

Uma entrevista

Mino Carta: De Veja à CartaCapital, um olhar sobre comunicação – Portal Vermelho Dia: 13/05/2013

Aos 80 anos, o homem que comandou a criação da Veja e hoje dirige a CartaCapital não baixa a guarda. Ataca as novas gerações de jornalistas e diz que a grande mídia perdeu o poder de influenciar a opinião pública nacional. Leia a seguir a íntegra da entrevista do jornalista concedida ao jornal O Povo e publicada nesta segunda-feira (13).

O jornalista Mino Carta esconde, involuntariamente, as oito décadas de vida com um entusiasmo quase juvenil na defesa de suas ideias. O mesmo tom agitado que o move nos ataques ao que considera “imbecilização” brasileira contemporânea acompanha sua análise sobre a desperdiçada vocação natural do País para ser um “paraíso terrestre”. Efeito, avalia, da herança da longa escravidão que até hoje mantém vivo entre nós o clima de Casa Grande e Senzala.

O olhar dele sobre o momento nacional é duro, especialmente quando visto sob a ótica do jornalismo e da política. A justiça vai na mesma linha. A conversa é permeada por termos como “imbecil”, “idiota”, “calhorda” acompanhando suas apreciações sobre personagens, públicos ou de sua convivência pessoal, uma ênfase que muitas vezes parece desnecessária diante de um diálogo que o tempo todo flui sob a artilharia verbal de um genovês que vive no Brasil desde 1946.

Confira os trechos principais da conversa com Mino, que aconteceu na manhã do dia 17 de abril deste ano, quando de sua passagem por Fortaleza para lançar o mais novo livro “O Brasil”.

Depois de tudo que o senhor viveu, das experiências boas e ruins que vivenciou, seria jornalista se lhe fosse dada uma segunda chance?
(risos) Não sei, sinceramente, não sei. Vou lhe dizer, com toda sinceridade, que eu não queria ser jornalista, embora sendo neto e filho de jornalista.

O senhor resistiu inicialmente à ideia, então?
É que não era meu objetivo. Eu teria gostado de ser escritor ou pintor.

O senhor diz que não queria, mas acabou sendo jornalista, com sucesso, inclusive. O exemplo mostra que a profissão prescinde da vocação ou é o contrário?
Não, não prescinde, absolutamente. A vocação é absolutamente necessária e começa pelo fato de você ter de lidar com desembaraço com a escrita. Fazendo referência à minha geração de jornalista, quando tínhamos que ter, independente da formação acadêmica, um ótimo conhecimento da língua e precisávamos ter, portanto, leituras frequentes e profundas, texto impecável. Agora, só para completar aquela ideia inicial, não queria ser jornalista, mas acabei sendo jornalista, acabei até, num primeiro movimento, dirigindo uma revista especializada em carros mesmo sem entender nada de carro….

O senhor não dirige, inclusive…
Não, não dirijo. No entanto, acabei comandando a revista e foi um sucesso. Era, então, um jornalista a serviço de uma ideia que não era necessariamente a minha. Quando fui trabalhar no Estadão, e fui muito bem tratado, até pelo fato de o meu pai já ter trabalhado lá e ser uma pessoa muito querida. Ele, que morreu apenas dois meses depois que comecei a trabalhar no jornal, era uma pessoa muito querida e eu terminei herdando um pouco essa condição que havia deixado lá após 17 anos. Bom, fui muito bem tratado e tal, mas, evidentemente, as ideias dos senhores Mesquita não batem com as minhas, algo que não me impedia de ser leal no desempenho da minha função. O que realmente mudou a minha visão do jornalismo foi a ditadura, com a chegada da censura. Isso corresponde à minha ida para a revista Veja, que foi submetida a uma censura feroz. Foi quando me dei conta da importância do jornalismo, me dei conta da serventia dele.

Ainda é?
Sem dúvida, claro. O jornalismo é de uma enorme utilidade, no Brasil, então, nem se fala. No Brasil ainda estão de pé as casas grandes e as senzalas, então, contribuir de alguma forma para a demolição delas, algo que não enxergo como uma coisa próxima, me parece ser uma tarefa brilhante, que a mídia brasileira não cumpre.

O senhor entende, então, que o papel da mídia seria fundamental dentro do contexto. Na sua avaliação, os interesses, a carga opinativa, tudo isso está contaminando o noticiário atualmente?
Ah, sem dúvida. Primeiro, inventa-se. O caso do tomate é um exemplo clássico, já que foi uma invenção, uma coisa sem base alguma. O que é grave, pois o jornalista não tem que inventar. Pior ainda é quando você mente, ou, omite. Olha, eu fundei tudo que de mais importante aconteceu nesse Brasil em termos de imprensa nos últimos 40 anos, escrevo um livro e, em qual país do mundo um livro deste seria ignorado pela mídia? Não existe, só aqui! É o único lugar do mundo onde os jornalistas chamam o patrão de colega. Patrão é patrão, jornalista é jornalista. Quando fui trabalhar na Itália, com meus 22 anos, existia uma lei, que até hoje perdura, pela qual o dono não pode ser diretor de Redação. Diretor de Redação pelo direito divino não existe! Só no Brasil!

O que seria diferente, então, na Carta Capital, onde o senhor é dono e diretor de Redação?
(risos) É que a Carta Capital é uma tentativa literal de sobrevida, de sobrevivência. Digo-lhe mais: não tenho interferência alguma na administração da empresa, nenhuma. Faço o meu trabalho, dirijo a Redação. E, claro, ganho meu salário que, comparado ao dos rapazes que dirigem redações por ai, sequer falo do pessoal das televisões, chega a ser ridículo. Trata-se da única coisa que ganho, dividendos nunca vi.

Voltando à questão do livro que está sendo lançado, o senhor diz que há uma deliberada opção da grande mídia por ignorá-lo.
É a realidade dos fatos. Mesmo assim, o livro já chegou à terceira edição, tiragem de dez mil exemplares, passados apenas 45 dias desde o lançamento em São Paulo.

O público não percebe isso? Qual, na avaliação do senhor, é a percepção das pessoas, dos leitores sobre o papel da mídia hoje?
Quanto à chamada classe média, que não é média coisa nenhuma, claro que há influência sobre ela. Quanto ao povo, não! O povo, apesar de tudo isso (em relação ao governo), se a eleição fosse hoje a Dilma (Rousseff) ganharia. Apesar do tomate, apesar dos juros, apesar de tudo, assim como o Lula ganha, e ganhou. Essa mídia não chega ao povo brasileiro, à senzala. A senzala, eventualmente, vê o Faustão, uma coisa do tipo, mas ao “Jornal Nacional” não. Ela não lê o editorial do Estadão, não lê a revista Veja, diferente da classe A, B, que acredita naquilo, repete as mesmas frases. Além de tudo, a ofensa diária contra a língua portuguesa é inominável, as pessoas não sabem falar, orgulham-se de usar 100 palavras, os próprios jornais. É a regra dentro da Folha de S. Paulo, por exemplo: diga tudo com cem palavras. Esta é a situação!

Parece que no Brasil não há espaço para uma mídia que manifeste de maneira mais clara e aberta suas posições. Até pelo fato de, na prática, inexistir direita e esquerda na própria política…
O problema é exatamente este. Temos uma mídia que funciona de um lado só e que se destina, em última análise, a um público muito restrito. Pensemos na imprensa dos países mais democráticos, onde há jornal de direita, de esquerda, de meia-direita, de meia-esquerda, de todas as tendências possíveis representadas na mídia. Isso cria um debate natural. Aqui é tudo de um lado só. Moro num prédio em que sou olhado como um perigosíssimo subversivo!

Por que não existem órgãos com tais características, com posições claras e definidas. É o mercado publicitário que rejeita? É o leitor?
Se a The Economist escolheu a CartaCapital para ser sua parceira no Brasil, escolheu, não em nome de uma identidade, de uma afinidade ideológica, porque temos posições diferentes. A escolha foi em função da seriedade e da qualidade. Eles acham a imprensa brasileira uma tragédia e têm razão. Eles nos escolheram, mesmo que eu não tenha as mesmas posições da The Economist, nem a CartaCapital tenha essas posições. A Economist, por exemplo, pede a demissão de (Guido) Mantega porque mexe com os interesses deles, de quem cujas causas advoga. Se a The Economist fosse brasileira estaria perdida, coitada, porque na Inglaterra distribui 200 mil exemplares, menos do que distribui no Brasil a revista Isto É. Muito menos do que distribui a Época e infinitamente menos do que a Veja. Os publicitários brasileiros aplicam febrilmente, e safadamente, critérios que chamam de técnicos. Nós temos uma revista que tira 70 mil exemplares por edição e, acho, se conseguirmos aplicar um pouco em autopromoção, poderemos sim multiplicar essa tiragem. Mas, qual é o limite extremo? Dobrar a tiragem? Seria sucesso total porque praticamos um vernáculo decente, porque não é fácil ler a CartaCapital. É uma revista séria, embora às vezes se permita lances de ironia. Razão pela qual será lida sempre por um público reduzido, como na Inglaterra, que é um país onde os índices de leitura são superiores aos nossos e você vê que a The Economist distribui 200 mil exemplares.

O mensalão do PT, para o senhor, está recebendo um tratamento diferenciado, da Justiça e da imprensa?
Sejamos honestos, a Justiça foi pressionada violentamente. Não houve isenção alguma e muitas condenações foram injustas.

Quando o senhor fala que a Justiça agiu pressionada pelo noticiário expõe, de qualquer maneira, uma fragilidade que ela não deveria ter, não é?
Claro. Basta olhar para o ministro Luiz Fux para logo concluir que se trata de um imbecil. Há pessoas que trazem no rosto a consistência moral e intelectual, a mostram de uma maneira desabrida. Pensa no caso (Cesare) Battisti e como se portou esse Supremo Tribunal Federal… Coisa grotesca, mostrando uma ignorância das coisas do mundo total.

Um erro, então, que começou dentro do próprio governo Lula.

Total, começa no Tarso Genro e chega ao Lula, que cometeu um erro gravíssimo. Não tem nada a ver comparar Battisti com aqueles nossos poucos, mas certamente corajosos, guerrilheiros. Battisti queria derrubar um Estado de Direito, enquanto os nossos queriam devolver o Brasil a um Estado de Direito. Exatamente o caminho oposto.

O questionamento, me parece, foi à forma como se deu o julgamento dele na Itália.
Imagine, ele teve os melhores juristas italianos. É que os franceses tiveram um idiota que se chamava François Miterrand, inventor de uma lei pela qual quem fosse terrorista encontraria guarida na França. Uma besteira! Além de tudo, ele, Miterrand, era outro hipócrita, um socialista de fancaria, de mentira.

Voltando à questão de sua trajetória como criador de alguns dos principais veículos impressos do País, um marco, sem dúvida, foi a criação da revista Veja..
Sim, mas a minha Veja…

Hoje, o senhor lê a Veja?
Não. Às vezes me divirto olhando a capa e sempre tem quem me informa sobre um editorial, algo assim.

Mudou, em relação à época do senhor, inclusive quanto ao estilo?
É um delírio, um delírio absoluto. Havia um contrato com os Civita, na minha época, no qual constava que eles definiam o tipo de revista que queriam, mas depois seriam leitores da revista. A discussão seria sempre a posteriori, nunca a priori, ou seja, não poderiam influenciar a pauta e coisa e tal. O Victor Civita cumpriu essa cláusula durante todo o tempo, ele tinha sua falta de escrúpulo, eventualmente, mas, ao mesmo tempo, era um fazedor, era um homem de realizações, um empresário dedicado. Quanto aos filhos, um era bastante claro em relação às suas pretensões, mas não se metia, enquanto o outro, o Roberto, era metidíssimo e calhorda.

Com relação à Isto É, outra revista que o senhor criou, qual o sentimento que há ainda hoje?
A Isto É tenta sobreviver, mas a editora Três está carregada de dívidas, uma coisa monstruosa.

Com efeitos sobre a qualidade editorial?
Sem dúvida, sem dúvida, afeta muito. A Isto É tem uma posição ambígua, digamos, não é o delírio da Veja, não é a mesma coisa. Mais próxima da Veja tem a Época, como postura ideológica.

O senhor avalia que o Brasil vive um processo de imbecilização. No que é que consiste isso e, por outro lado, o fenômeno é nosso, nacional, ou tem âmbito mundial?
É um fenômeno mundial, acho, embora aqui seja mais acentuado porque a senzala continua de pé e os moradores da senzala apresentam uma certa diferença, em termos culturais. Nosso povo é especialmente ignorante. Não existem povos melhores ou piores e, lhe digo mais, a tragédia é que o Brasil poderia ser o paraíso terrestre. Acho, sinceramente, porque não existe no mundo um País tão favorecido pela natureza. A nossa elite é culpada, sim, muito culpada, pelo atraso que começa nesse ponto, exatamente, na permanência da Casa Grande e da Senzala, que é a herança de três séculos e meio de escravidão. Uma herança terrível, visível, tangível, você toca nisso diariamente. É doloroso porque o Brasil poderia ser o paraíso terrestre. As nossas circunstâncias históricas sempre foram ruins por causa de uma elite calhorda, prepotente, feroz, vulgar, ignorante, primária. É isso.

Produção literária
“O que realmente mudou minha visão do jornalismo foi a ditadura, com a censura”

No total, já são cinco livros de autoria do escritor Mino Carta. O primeiro deles, “Histórias da Mooca, Com as Bênçãos de San Gennaro”, é de 1982. Depois, na sequência, vieram “O Restaurante Fasano e a Cozinha de Luciano Boseggia”, de 1996,”O Castelo de Âmbar”, de 2000, “A Sombra do Silêncio “, de 2003, e, agora em 2013, “O Brasil”. Como estilo, nos romances, mistura ficção e realidade sem grande esforço para esconder a possível inspiração de muitos dos seus personagens.

Perfil
Demetrio Giuliano Gianni Carta nasceu na cidade italiana de Gênova, em 6 de setembro de 1933, filho de Gianino Carta, jornalista e professor de História da Arte, e de Clara Carta, escritora. Vestia calças curtas quando, em 1946, chegou a São Paulo com os pais. Chegou a cursar Direito da Universidade de São Paulo (USP), mas não concluiu o curso. Dirigiu as equipes de criação da Quatro Rodas (1960), Jornal da Tarde (1966), Veja (1968) e CartaCapital (1994). Foi, ainda, diretor de redação das revistas Senhor (1982), IstoÉ/Senhor (1988) e IstoÉ (1989). O único jornal que ajudou a fundar e não prosperou foi o Jornal da República (1979). É autor dos livros “O Castelo de Âmbar” (2000), “A Sombra do Silêncio” (2003), “Histórias da Mooca, Com as Bênçãos de San Gennaro” (1982), “O Restaurante Fasano e a Cozinha de Luciano Boseggia”, em parceria com Rogério Fasano (1996) e “O Brasil” (2013). Ganhou dois Prêmios Esso de Jornalismo, em 1964 e 1968. Dedica-se também à pintura, desde 1954.

Cerca de 150 pessoas foram ao lançamento do novo livro de Mino Carta em Fortaleza, em abril, no auditório do Centro Cultural Dragão do Mar.

Uma demonstração, para ele, de que o boicote da grande mídia à obra não tem sido suficiente para evitar seu sucesso. A apresentação de “O Brasil” foi feita pelo ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes.

O livro “O Brasil” é definido como uma autoficção (mistura de autobiografia com ficção). Nele, o personagem Abukir, alterego de Mino, repassa três décadas da história nacional, da morte de Getúlio Vargas ao fim da ditadura militar. Faz-se uma crítica ao País e ao jornalismo brasileiro, especialmente a partir de sua relação com o poder político.

História de um rompimento
A editora Abril tinha contraído dívidas no exterior e queria consolidá-las no Brasil através de um empréstimo de 50 milhões de dólares (junto à Caixa Econômica Federal). Eu estava muito por dentro da situação porque não somente era diretor de Redação da revista Veja, mas, também, integrava o Conselho Diretor da editora, composto pelo presidente, Victor Civita, pelos dois filhos dele, pelo sócio-minoritário, que se chamava Gordiano Rossi, e pelo genro deste, que funcionava como editor-responsável da editora. O Carlos Rischbieter (presidente da CEF na época) aprovou o pedido, mesmo porque a Abril oferecia garantias que ele considerava tecnicamente perfeitas.

O negócio marchou por várias mesas até chegar à do Armando Falcão, então ministro da Justiça. O partisse desta crise se deu em julho de 1975, quando o Falcão comunicou que o empréstimo não sairia porque a editora Abril produzia uma revista que era inimiga do regime. Tudo isso era discutido abertamente no Conselho e eu fiz a seguinte proposta: seu Victor, eu saio da direção da revista, fico nos bastidores por uns três meses para garantir uma transferência interna de poderes e, por exemplo, a editora me nomeia diretor das sucursais europeias e vou morar em Roma, que tal? Ele, ficou de pensar, conversar com os filhos etc e, uma semana depois, disse que ‘não’. Disse que tudo bem, mas enquanto estivesse lá faria a coisa funcionar da mesma maneira.

Depois, veio o imbecil do filho dele, uma das mais refinadas bestas que conheci na minha vida, o Roberto Civita, e perguntou: ‘por que você não tira férias?’ Ele sugeriu meio ano, mas recusei, lembrando que tinha férias vencidas, três meses etc e tal. Mas, perguntei: saio três meses e vocês vão fazer o quê enquanto eu estiver fora? Vão se esbaldar em porcarias? ‘Não’, disseram eles, ‘vamos assinar um procolo’. O tal protocolo estabelecia, basicamente, que os redatores-chefes, que eram dois, me substituiriam em gênero, número e grau. Outro ponto do protocolo, previa que ninguém seria demitido por razões políticas. Ninguém, nem colaboradores, nem, claro, funcionários. Muito bem, sai no dia 27 de dezembro para um período de três meses de férias, o protocolo foi assinado com validade até 1º de abril. Fui à Europa e, de volta no finzinho de janeiro, o Victor Civita me acha e pede que vá visitá-lo. Fui e ele me disse que o Roberto tinha estado no dia anterior com o Falcão e eu tinha que mandar embora o Plínio Marcos. Disse que não iria mandar embora ninguém, porque existia o protocolo. Ele disse que até o Tratado de Versailles tinha sido jogado no lixo e tal. Respondi que da minha parte não rasgaria nem o Tratado de Versailles e nem o protocolo. Ele insistiu mais e eu peguei um cinzeiro e atirei no peito dele. E fui embora.

Houve antes um encontro com o Roberto Civita que me disse que o Falcão havia pedido minha cabeça. Eu disse: pois é, eu sei, mas, e daí? O que é que você diz? Ele disse ‘não sei, o que é que eu posso dizer?’ Falei, então, estávamos conversando na minha casa, que iria contar até três e se você estiver ainda diante de mim te quebro os dentes. Ele levantou e saiu correndo para dentro do elevador.

Fui ao Falcão, que me disse: ‘Mino, você está nervoso, o que é isso? Tenho uma fazenda em Quixeramobim, com redes entre as árvores frondosas, bate uma brisa ótima, água de coco, vai lá!’ Fiquei até de ir em outra oportunidade, mas perguntei como é que tinha sido a história da Veja. Ele falou que era muito simples: Vem aqui o Roberto Civita, o Victor Civita, o diretor responsável, um tal de Edgar, e dizem que você é o culpado. O próprio diretor da Redação em Brasília, o Pompeu de Souza, diz que você é o culpado, então, o que é que me cabe fazer? Pedir sua cabeça, não é não? Então, disse que tinha entendido tudo, passar bem, maravilha, até logo… Sai dali e pedi aos redatores-chefes que entregassem minha carta de demissão.

Fonte: O Povo

 

Uma frase bem feita

A chance de o ex-capitão ser apeado pelos generais já arrepiou os comentaristas, embora significasse o tombo da panela para a brasa.

 

Sua opinião

Anule-se tudo que aconteceu a partir da criação da Lava Jato – Mino Carta – CartaCapital: 17 de junho de 2019

As revelações do Intercept confirmam a nossa cobertura da farsa trágica dos últimos cinco anos: Lula era o alvo

Depois das revelações do Intercept, a conclusão haveria de ser anular tudo que aconteceu a partir da criação da Lava Jato. O projeto golpista visava, com a bênção agradecida do Departamento de Estado, alijar Lula da eleição de 2018, graças a uma tramoia pretensamente jurídica sem paralelos para condená-lo e prendê-lo sem provas. Moro e Dallagnol, lacaios de Washington, cumpriram a tarefa a contento e Jair Bolsonaro elegeu-se com folga maior do que aquela conseguida por Dilma Rousseff em 2014. Assim se deu, o entrecho é claro, o resultado de um golpe inédito perpetrado pelos próprios poderes da República, a começar pelo Judiciário, que permitiu o impeachment e as falcatruas do torquemadazinho de Curitiba. Os guardiões da lei preferiram rasgar a Constituição. Não faltou o aval militar, assegurado pelo general Villas Bôas, então comandante do Exército, ao pressionar o STF a manter a prisão de Lula sem alterar a decisão tomada à última hora pelos supremos togados por ser bastante, na visão a favor da fraude, a condenação em segunda instância.

A lógica no caso é implacável: diante das revelações do site Intercept, de Glenn Greenwald, obviamente de absoluta veracidade, tornam automaticamente nulos todos os atos da farsa trágica, e o derradeiro é a eleição do ex-capitão. A compreensão deste jogo de dominó deveria ser acessível a qualquer brasileiro consciente da cidadania. Estamos, porém, no Brasil medieval da casa-grande e da senzala, onde a minoria faz o que bem entende e o resto é tangido como um rebanho acossado pelos lobos. Penosas e mesmo patéticas as reações de uma boa fatia da mídia nativa, desta vez dividida nas suas avaliações.

O “conjo” de dona Leonor não é de se demitir, como pede o Estadão no editorial de terça-feira 11, tanto mais agora: Bolsonaro na semana o premiou com a Medalha do Mérito Naval, embora o mérito do ministro da Justiça aos olhos presidenciais seja outro. Talvez o ex-capitão homenageie quem iniciou o processo que leva ao naufrágio, daí a metáfora náutica. De todo modo, a condecoração nos dias seguintes à divulgação do Intercept coincide, com encaixe ao rabo de andorinha, manda o ebanista feliz, ao estilo truculento do bolsonarismo, como resposta às reações indignadas da mídia dos países civilizados e democráticos. Uma pergunta assoma espontânea: se temos de procurar culpados, será que a culpa não é do Brasil? Houvesse um pelotão de fuzilamento, nenhuma bala seria perdida.
Só a tomada da Casa-Grande muda o Brasil e recupera o tempo perdido

Outra questão me assalta: há como comparar os golpistas fardados atuais com aqueles de 1964? Outras eram as circunstâncias, que diferem profundamente. Havia entre aqueles fardados golpistas alguns que se ririam da comicidade involuntária de Bolsonaro & filhos, parece-me colher no rosto do general Golbery um sorriso de Gioconda.

Estavam afeitos a um país muito melhor do que o de hoje, o Brasil contava com círculos intelectuais de peso, com pensadores, escritores, artistas reconhecidos mundialmente, com alguns políticos desassombrados, com jornalistas que conheciam a diferença entre as insopitáveis verdades que habitam a cabeça de qualquer um e a verdade factual, conforme a definição de Hannah Arendt. Ainda não havia chegado o tempo desenfreado das notícias falsas, dos celulares e das selfies, do uso político da internet, da progressiva imbecilização geral.

Vários generais da ditadura jamais fariam continência diante da bandeira dos EUA e com fé sincera, conquanto malposta, acreditavam na consigna inicial do golpe: pôr a casa em ordem e, cumprida a missão, devolver o poder aos civis. Na crença, uma nítida prova de ingenuidade: no país da casa-grande e da senzala, o poder sempre retorna às mãos dos senhores da mansão. Foi o que se deu com a chamada redemocratização, como sempre ao sabor das tradicionais hipocrisia e ignorância de marca tipicamente nativa.

O alívio veio com Lula, pelo seu combate à miséria e sua política exterior independente. A quem não interessa esta insólita atuação? À casa-grande e aos EUA, a bem do seu império, como é do conhecimento até do mundo mineral. A Lava Jato é o primeiro motor do golpe que atende às demandas da mansão senhorial e de Tio Sam. E aqui me permito enveredar pelo vitupério. As revelações do Intercept espantam o mundo civilizado, mas o Brasil as engole mansamente, quando não as ignora, com a exceção ao menos dos leitores de CartaCapital, alertados desde quando esta bola saiu dos pés de Sérgio Moro no campinho da República de Curitiba.

Já sabíamos de tudo, a conivência dos poderes da República na execução do golpe de 2016, desfechado para expulsar Lula do páreo presidencial, com o resultado final, conscientes ou não os golpistas do iminente tropeço na figura execrável de Bolsonaro. Tudo se justifica, a casa-grande empenha-se em tempo integral para manter de pé a senzala. A miséria não comove os senhores, tampouco a falta de educação e saúde. Pelos salões medraram os ódios social e de classe, heranças de três séculos e meio de escravidão, de fato até o momento não encerrada. Bolsonaro serve ao jogo, do alto de sua demência presta-se a qualquer serviço sujo.

CartaCapital é a única publicação em papel impresso que nos últimos cinco anos desenrolou o enredo e ganha hoje a confirmação do acerto das suas informações a respeito dos andamentos da peça e dos seus protagonistas. Trata-se da consequência da prática do jornalismo. Pretendia um redator-chefe do New York Times o acompanhamento de um adjetivo, honesto. Penso que a honestidade há de ser intrínseca, própria, insubstituível.

Quanto aos desenvolvimentos da situação, por ora o vaticínio não é recomendável. O problema insolúvel está na natureza de um país digno da Idade Média mais obscura. Culpado é o Brasil, já disse, involuntária a responsabilidade se nos referimos à senzala. O que teimamos em não entender, inclusive a chamada impropriamente esquerda, que o recurso à resignação de quem guarda nos lombos a chibatada do capataz não gerou apenas uma série insuportável de golpes, mas também impediu ao País atingir a contemporaneidade do mundo. Para mudar o Brasil, é preciso tomar a casa-grande.

Enquete no Blog do Emir: Que imprensa você lê?

No blog do Emir Sader há interessante enquete, criada hoje: Consulta Carta Maior: Que imprensa você lê?

Diz Emir: Apresentamos aqui uma nova consulta a nossos leitores e leitoras. Responda e sugira leituras alternativas à grande mídia mercantil.

Faça uma visita ao Blog do Emir, publicado no site de Carta Maior, e participe. Além do mais, é muito interessante ver o que as pessoas costumam ler!

Jornais: revistas de sala de espera

Os jornais se parecem cada vez mais com as revistas que havia para ler na barbearia ou na sala de espera do dentista.

Frase de Umberto Eco sobre a irrelevância das informações transmitidas pelos jornais hoje.

Está em uma entrevista publicada pela Folha Online de 12/05/2008 – 11h41 sob o título de Velocidade da web causará perda de memória, diz Umberto Eco

Dilemas dos povos indígenas brasileiros

Em busca da terra sem males: os territórios indígenas é o tema de capa da edição 257 da IHU On-Line de 12/05/2008.

Diz o editorial:

O drama que acompanhamos há algum tempo em Roraima, na reserva indígena de Raposa Serra do Sol, inspira o debate da matéria de capa dessa semana da revista IHU On-Line. Os conflitos e dilemas culturais das populações indígenas brasileiras são decorrentes de um problema primário: a terra, ou melhor, a falta dela.

O antropólogo Antonio Brand marca a importância de ser garantido aos índios o direito a ser diferente. Ideia semelhante é defendida pela professora Paula Caleffi, da Unisinos, para quem é fundamental o respeito pela diversidade cultural indígena. Para o antropólogo e jesuíta Aloir Pacini, os povos indígenas contribuem na construção da nação brasileira na sua diversidade. Já na opinião de Egon Heck, do Cimi, o sentido da vida é a primeira e grande lição dos índios. Enquanto isso, o casal Roberto Liebgott e Iara Bonin reflete sobre as lacunas culturais entre índios e brancos e sobre a necessidade de mudança no olhar sobre as populações indígenas. Para o professor Maucir Pauletti, da UCDB, os direitos dos índios são direitos de papel.

Entrevistamos também o sertanista Sydney Possuelo, para quem índio e “homem branco” representam humanidades diferentes que se encontraram em determinado tempo e espaço. O indigenista Wellington Gomes Figueiredo dá seu depoimento sobre os dilemas culturais dos povos indígenas brasileiros e afirma que só poderemos ter esperança quando alguém nutrir respeito pelo que é humano. A matéria de capa culmina com as entrevistas a Pedro Ignácio Schmitz e Jairo Rogge, que falam sobre a contribuição da arqueologia para o resgate da cultura indígena.

 

Contribuem para essa discussão:

  • Antonio Brand: A garantia do direito à diferença
  • Aloir Pacini: “Ninguém deixa de ser índio porque usa celular ou anda na cidade”
  • Egon Heck: O sentido da vida: primeira e grande lição dos índios ao homem branco
  • Roberto Liebgott e Iara Bonin: Como entender a cultura indígena e suas transformações?
  • Maucir Pauletti: “Os direitos dos índios são direitos de papel”
  • Paula Caleffi : “O índio é um sujeito que foi vitimado pelo processo colonial, o que não o inviabiliza de ser sujeito”
  • Sydney Possuelo: Índio e “homem branco”: duas humanidades diferentes que se encontraram em determinado tempo e espaço
  • Wellington Gomes Figueiredo: Esperança? Só quando alguém nutrir respeito pelo que é humano
  • Pedro Ignácio Schmitz: Lição dos índios: sobrevivência é o princípio de qualquer cultura
  • Jairo Rogge: O resgate da cultura material confirma a diversidade cultural e étnica indígena

Recomendo dois artigos lidos hoje

O desafio da razão: Manifesto para a renovação da história, por Eric Hobsbawm, em Carta Maior: 11/04/2008

É tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade.

 

“Até agora, os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo; trata-se de mudá-lo.” Os dois enunciados da célebre “Teses sobre Feuerbach”, de Karl Marx, inspiraram os historiadores marxistas. A maioria dos intelectuais que aderiram ao marxismo a partir da década de 1880 —entre eles os historiadores marxistas— fizeram isso porque queriam mudar o mundo, junto com os movimentos operários e socialistas; movimentos que se transformariam, em grande medida devido à influência do marxismo, em forças políticas de massas.

Essa cooperação orientou de maneira natural os historiadores que queriam transformar o mundo na direção de certos campos de estudo —fundamentalmente, a história do povo ou da população operária— os quais, se bem atraíam naturalmente as pessoas de esquerda, não tinham em sua origem nenhuma relação particular com uma interpretação marxista. Por outro lado, quando esses intelectuais deixaram de ser revolucionários sociais, a partir da década de 1890, com freqüência também deixaram de ser marxistas.

A revolução soviética de outubro de 1917 reavivou esse compromisso. Lembremos que os principais partidos social-democratas da Europa continental abandonaram completamente o marxismo apenas na década de 1950, e às vezes ainda depois disso. Essa revolução gerou, também, o que poderíamos chamar de uma historiografia marxista obrigatória na URSS e nos Estados, que depois foi adotada por regimes comunistas. A motivação militante foi reforçada durante o período do antifascismo.

A partir da década de 1950 essa tendência começou a decair nos países desenvolvidos —mas não no Terceiro Mundo— apesar de que o considerável desenvolvimento do ensino universitário e a agitação estudantil geraram, dentro da universidade, na década de 1960, um novo e importante contingente de pessoas decididas a mudar o mundo. Contudo, apesar de desejar uma mudança radical, muitas delas já não eram abertamente marxistas, e algumas já não eram marxistas em absoluto.

Esse ressurgimento culminou na década de 1970, pouco antes do início de uma reação massiva contra o marxismo, mais uma vez por razões essencialmente políticas. Essa reação teve como principal efeito —exceto para os liberais, que ainda acreditam nisso— o aniquilamento da idéia de que é possível predizer, apoiados na análise histórica, o sucesso de uma forma particular de organizar a sociedade humana. A história havia se dissociado da teleologia.

Considerando as incertas perspectivas que se apresentam aos movimentos socialdemocratas e social-revolucionários, não é provável que assistamos a uma nova onda politicamente motivada de adesão ao marxismo. Mas devemos evitar cair em um centrismo ocidental excessivo. A julgar pela demanda de que são objeto meus próprios livros de história, comprovo que ela se desenvolve na Coréia do Sul e em Taiwan, desde a década de 1980, na Turquia, desde a década de 1990, e que há sinais de que atualmente avança no mundo árabe.

A virada social
O que aconteceu com a dimensão “interpretação do mundo” do marxismo? A história é um pouco diferente, ainda que paralela. Concerne ao crescimento do que se pode chamar de reação anti-Ranke, da qual o marxismo constituiu um elemento importante, apesar de que isso nem sempre foi totalmente reconhecido. Tratou-se de um movimento duplo.

Por um lado, esse movimento questionava a idéia positivista segundo a qual a estrutura objetiva da realidade era, por assim dizer, evidente: bastava com aplicar a metodologia da ciência, explicar por que as coisas tinham ocorrido de tal ou qual maneira e descobrir wie es eigentlich gewessen (como ocorreu realmente). Para todos os historiadores, a historiografia se manteve e se mantém enraizada em uma realidade objetiva, ou seja, a realidade do que ocorreu no passado; contudo, não está baseada em fatos e, sim, em problemas, e exige investigação para compreender como e por que esses problemas —paradigmas e conceitos— são formulados da maneira em que são o em tradições históricas e em meios socioculturais diferentes.

Por outro lado, esse movimento tentava aproximar as ciências sociais da história e, em conseqüência, englobá-las em uma disciplina geral, capaz de explicar as transformações da sociedade humana. Segundo a expressão de Lawrence Stone, o objeto da história deveria ser “propor as grandes perguntas do por quê”. Essa “virada social” não veio da historiografia, senão das ciências sociais —algumas delas incipientes como tais— que naquele momento firmavam-se como disciplinas evolucionistas, ou seja, históricas.

Na medida em que é possível considerar Marx como o pai da sociologia do conhecimento, o marxismo —apesar de ter sido denunciado erradamente em nome de um suposto objetivismo cego— contribuiu para dar o primeiro aspecto desse movimento. Além disso, o impacto mais conhecido das idéias marxistas —a importância outorgada aos fatores econômicos e sociais— não era especificamente marxista, ainda que a análise marxista pesou nessa orientação, que estava inscrita em um movimento historiográfico geral, visível a partir da década de 1890, e que culminou nas décadas de 1950 e 1960, para benefício da geração de historiadores à qual pertenço, que teve a possibilidade de transformar a disciplina.

Essa corrente socioeconômica superava o marxismo. A criação de revistas e instituições de história econômico-social às vezes foi obra —como na Alemanha— de social-democratas marxistas, como ocorreu com a revista Vierteljahrschrift em 1893. Não aconteceu da mesma maneira na Grã Bretanha, nem na França, nem nos Estados Unidos. E inclusive na Alemanha, a escola de economia, marcadamente histórica, não tinha nada de marxismo. Somente no Terceiro Mundo do século XIX (Rússia e os Balcãs) e no do século XX, a história econômica adotou uma orientação principalmente social-revolucionária, como toda “ciência social”. Em conseqüência disto, foi muito atraída por Marx.

Em todos os casos, o interesse histórico dos historiadores marxistas não se centrou tanto na “base” (a infraestrutura econômica) como nas relações entre a base e a superestrutura. Os historiadores explicitamente marxistas sempre foram relativamente escassos.

Marx influenciou a história principalmente através dos historiadores e dos pesquisadores em ciências sociais que retomaram as questões que ele colocava, tenham eles trazido, ou não, outras respostas. Por sua vez, a historiografia marxista avançou muito em relação ao que era na época de Karl Kautsky e de Georgi Plekhanov, em boa parte graças à sua fertilização por outras disciplinas (fundamentalmente a antropologia social) e por pensadores influenciados por Marx e que completavam seu pensamento, como Max Weber.

Se destaco o caráter geral dessa corrente historiográfica, não é por vontade de subestimar as divergências que contém, ou que existiam no seio de seus componentes. Os modernizadores da história colocaram-se as mesmas questões e consideravam-se comprometidos nos mesmos combates intelectuais, seja que tenham buscado inspiração na geografia humana, na sociologia durkheimiana e nas estatísticas, como na França (simultaneamente, a escola dos Anais e Labrousse), ou na sociologia weberiana, como a Historische Sozialwissenschaft na Alemanha Federal, ou mesmo no marxismo dos historiadores do Partido Comunista, que foram os vectores da modernização da história na Grã Bretanha, ou que, pelo menos, fundaram sua principal revista.

Uns e outros consideravam-se aliados contra o conservadorismo na história, mesmo quando suas posições políticas ou ideológicas eram antagônicas, como Michael Postan e seus alunos marxistas britânicos. Essa coalizão progressista encontrou expressão exemplar na revista Past & Pressent, fundada em 1952, muito respeitada no ambiente dos historiadores. O sucesso dessa publicação foi devido que os jovens marxistas que a fundaram opuseram-se deliberadamente à exclusividade ideológica, e a que os jovens modernizadores provenientes de outros horizontes ideológicos estavam dispostos a juntar-se a eles, uma vez que sabiam que as diferenças ideológicas e políticas não eram um obstáculo para o trabalho conjunto.

Essa frente progressista avançou de maneira espetacular entre o final da Segunda Guerra Mundial e a década de 1970, naquilo que Lawrence Stone denomina “o amplo conjunto de transformações na natureza do discurso histórico”. Isso até a crise de 1985, quando ocorreu a transição dos estudos quantitativos para os estudos qualitativos, da macro para a micro-história, das análises estruturais aos relatos, do social para os temas culturais. Desde então, a coalizão modernizadora está na defensiva, igual que seus componentes não marxistas, como a história econômica e social.

Na década de 1970, a corrente dominante em história tinha sofrido uma transformação tão grande, especialmente sob a influência das “grandes questões” colocadas ao modo de Marx, que escrevi estas linhas: “Com freqüência é impossível dizer se um livro foi escrito por um marxista ou por um não-marxista, a menos que o autor anuncie sua posição ideológica. Espero com impaciência o dia em que ninguém se pergunte se os autores são marxistas ou não”. Mas, como também apontava, estávamos longe de semelhante utopia.

Desde então, pelo contrário, foi necessário sublinhar com maior energia qual pode ser a contribuição do marxismo para a historiografia. Coisa que não acontecia há muito tempo. Também porque é preciso defender a história contra aqueles que negam sua capacidade de ajudar-nos a compreender o mundo, e porque novos desenvolvimentos científicos transformaram completamente o calendário historiográfico.

No plano metodológico, o fenômeno negativo mais importante foi a edificação de uma série de barreiras entre o que ocorreu, ou o que ocorre, em história e nossa capacidade para observar esses fatos e entendê-los. Esses bloqueios obedecem à recusa em admitir que existe uma realidade objetiva, e não construída pelo observador com fins diversos e mutáveis, ou ao fato de afirmar que somos incapazes de superar os limites da linguagem, ou seja, dos conceitos, que são o único meio que temos para poder falar do mundo, incluindo o passado.

Essa visão elimina a questão de saber se existem esquemas e regularidades no passado, a partir dos quais o historiador pode formular propostas significativas. Contudo, também há razões menos teóricas que levam a essa recusa: argumenta-se que o curso do passado é contingente demais, ou seja, que é preciso excluir as generalizações, uma vez que praticamente tudo poderia ocorrer ou teria podido ocorrer. De modo implícito, esses argumentos miram todas as ciências. Vamos passar por alto tentativas mais fúteis de voltar a velhos conceitos: atribuir o curso da história a altos responsáveis políticos ou militares, ou à onipotência das idéias ou dos “valores”; reduzir a erudição histórica à busca —importante mas em si insuficiente— de uma empatia com o passado.

O grande perigo político imediato que ameaça a historiografia atual é o “antiuniversalismo”: “minha verdade é tão válida quanto a sua, independente dos fatos”. Esse antiuniversalismo seduz naturalmente a história dos grupos identitários em suas diferentes formas, para a qual o objeto essencial da história não é o que ocorreu, mas como isso que ocorreu afeta os membros de um grupo em particular. De modo geral, o que conta para esse tipo de história não é a explicação racional, mas a “significação”; não o que ocorreu, mas como sentem o que ocorreu os membros de uma coletividade que se define por oposição às demais em termos de religião, de etnia, de nação, de sexo, de modo de vida, ou de outras características.

O relativismo exerce atração sobre a história dos grupos identitários. Por diferentes razões, a invenção massiva de contra-verdades históricas e de mitos, outras tantas tergiversações ditadas pela emoção, alcançou uma verdadeira época de ouro nos últimos trinta anos. Alguns desses mitos representam um perigo público —em países como a Índia durante o governo hinduísta, nos Estados Unidos e na Itália de Silvio Berlusconi, para não mencionar muitos outros dos novos nacionalismos, acompanhados ou não de manifestações de integrismo religioso.

De qualquer modo, se por um lado esse fenômeno deu lugar a muito palavrório e bobagens nas margens mais longínquas da história de grupos específicos —nacionalistas, feministas, gays, negros e outros— por outro, gerou desenvolvimentos históricos inéditos e extremamente interessantes no campo dos estudos culturais, como o “boom da memória nos estudos históricos contemporâneos”, como Jay Winter o denomina. Os Lugares de Memória, coordenados por Pierre Nora, é um bom exemplo.

Reconstruir a frente da razão
Diante de todos esses desvios, é tempo de restabelecer a coalizão daqueles que desejam ver na história uma pesquisa racional sobre o curso das transformações humanas, contra aqueles que a deformam sistematicamente com fins políticos e simultaneamente, de modo mais geral, contra os relativistas e os pós-modernos que se recusam a admitir que a história oferece essa possibilidade. Dado que entre esses relativistas e pós-modernos há quem se considere de esquerda, poderiam surgir inesperadas divergências políticas capazes de dividir os historiadores.

Portanto, o ponto de vista marxista é um elemento necessário para a reconstrução da frente da razão, como foi nas décadas de 1950 e 1960. De fato, a contribuição marxista provavelmente seja ainda mais pertinente agora, dado que os outros componentes da coalizão dessa época renunciaram, como a escola dos Anais de Fernand Braudel e a “antropologia social estrutural-funcional”, cuja influência entre os historiadores foi tão importante. Esta disciplina foi particularmente perturbada pela avalanche em direção à subjetividade pós-moderna.

Contudo, enquanto os pós-modernos negavam a possibilidade de uma compreensão histórica, os avanços nas ciências naturais devolviam à história evolucionista da humanidade toda sua atualidade, sem que os historiadores percebessem cabalmente. E isto de duas maneiras. Em primeiro lugar, a análise do DNA estabeleceu uma cronologia mais sólida do desenvolvimento desde o aparecimento do homo sapiens como espécie. Em particular, a cronologia da expansão dessa espécie originaria da África para o resto do mundo, e dos desenvolvimentos posteriores, antes do aparecimento de fontes escritas. Ao mesmo tempo, isso evidenciou a surpreendente brevidade da história humana —segundo critérios geológicos e paleontológicos— e eliminou a solução reducionista da sociobiologia darwiniana.

As transformações da vida humana, coletiva e individual, durante os últimos dez mil anos, e particularmente durante as dez últimas gerações, são consideráveis demais para serem explicadas por um mecanismo de evolução inteiramente darwiniano, pelos genes. Essas transformações correspondem a uma aceleração na transmissão das características adquiridas por mecanismos culturais e não genéticos; poderia dizer-se que se trata da revanche de Lamarck contra Darwin, através da história humana. E não serve de muito disfarçar o fenômeno com metáforas biológicas, falando de “memes” ao invés de “genes”. O patrimônio cultural e o biológico não funcionam da mesma maneira.

Em síntese, a revolução do DNA requer um método particular, histórico, de estudo da evolução da espécie humana. Além disso, vale a pena mencioná-lo, proporciona um marco racional para a elaboração de uma história do mundo. Uma história que considere o planeta em toda a sua complexidade como unidade dos estudos históricos, e não como um entorno particular ou uma região determinada. Em outras palavras: a história é a continuação da evolução biológica do homo sapiens por outros meios.

Em segundo lugar, a nova biologia evolucionista elimina a estrita distinção entre história e ciências naturais, já eliminada em grande medida pela “historicização” sistemática destas ciências nas últimas décadas. Luigi Luca Cavalli-Sforza, um dos pioneiros multidisciplinares da revolução DNA, fala do “prazer intelectual de encontrar tantas semelhanças entre campos de estudo tão diferentes, alguns dos quais pertencem tradicionalmente aos pólos opostos da cultura: a ciência e as humanidades”. Em síntese, essa nova biologia nos liberta do falso debate sobre o problema de saber se a história é ou não uma ciência.

Em terceiro lugar, ela nos leva inevitavelmente para a visão de base da evolução humana adotada pelos arqueólogos e os pré-historiadores, que consiste em estudar os modos de interação entre nossa espécie e seu meio ambiente, alem do crescente controle que ela exerce sobre esse meio. O que eqüivale essencialmente a fazer as perguntas que já fazia Karl Marx.

Os “modos de produção” (seja qual for o nome que se quiser dar-lhes) baseados em grandes inovações da tecnologia produtiva, das comunicações e da organização social —e também do poder militar— são o núcleo da evolução humana. Essas inovações, e Marx era consciente disso, não ocorreram e não ocorrem por elas mesmas. As forças materiais e culturais e as relações de produção são inseparáveis; são as atividades de homens e mulheres que constroem sua própria história, mas não no “vácuo”, não fora da vida material, nem fora do seu passado histórico.

Do neolítico à era nuclear
Consequentemente, as novas perspectivas para a história também devem nos levar a essa meta essencial de quem estuda o passado, mesmo que nunca seja cabalmente realizável: “a história total”. Não “a história de tudo”, mas a história como uma tela indivisível onde todas as atividades humanas estão interconectadas. Os marxistas não são os únicos que se propuseram esse objetivo —Fernand Braudel também fez isso— mas foram eles que o perseguiram com mais tenacidade, como dizia um deles, Pierre Vilar.

Entre as questões importantes que suscitam estas novas perspectivas, a que nos leva à evolução histórica do homem é essencial. Trata-se do conflito entre as forças responsáveis pela transformação do homo sapiens, desde a humanidade do neolítico até a humanidade nuclear, por um lado, e por outro, as forças que mantêm imutáveis a reprodução e a estabilidade das coletividades humanas ou dos meios sociais, e que durante a maior parte da história as neutralizaram eficazmente. Essa questão teórica é central.

O equilíbrio de forças inclina-se de maneira decisiva em uma direção. E esse desequilíbrio, que talvez supere a capacidade de compreensão dos seres humanos, supera com certeza a capacidade de controle das instituições sociais e políticas humanas. Os historiadores marxistas, que não entenderam as consequências involuntárias e não desejadas dos projetos coletivos humanos do século XX, talvez possam, desta vez, enriquecidos por sua experiência prática, ajudar a compreender como chegamos à situação atual.



O desastre midiático, por Ignacio Ramonet, em Carta Maior: 12/04/2008

O jornalista espanhol Pascual Serrano construiu um “arquivo da vergonha jornalística”, reunindo flagrantes demonstrações da deterioração de uma profissão que ameaça ruir. Hoje, a verdade informativa é quando toda a mídia (imprensa, rádio, televisão e Internet) diz a mesma coisa sobre um tema, diz que uma coisa é verdade… mesmo que seja mentira.

 

Epílogo do livro “Pérolas 2. Balelas, disparates e trapaças nos meios de comunicação”, de Pascual Serrano.

Indispensável. Este é um livro indispensável para tomar consciência da amplitude do atual desastre midiático. E temos que agradecer Pascual Serrano pelo talento que esbanjou ao constituir o “arquivo da vergonha jornalística” conseguindo arrebanhar tão flagrantes demonstrações da deterioração de uma profissão que ameaça ruir.

O que Pascual Serrano revela com esta nova coleção de “balelas, disparates e trapaças” é que alguma coisa deixou de funcionar nos nossos meios massivos de comunicação. E que, por isso, a informação – ou, melhor dizendo, a desinformação – passou a ser uma das principais ameaças que pairam sobre nossas democracias na hora da globalização econômica.

Uma das razões desta situação mora no fato de que a maioria dos grandes jornais do mundo, se formos falar da imprensa escrita, não são, hoje, dirigidos por jornalistas. Agora são quase sempre dirigidos por egressos das Escolas de Comércio, de Escolas de “Ciências Empresariais”, que são os que, evidentemente, estão com as rédeas da empresa midiática, que irá se comportar como uma empresa que, antes de mais nada, vai pensar em suas relações com os “clientes”, e os clientes são os compradores dos jornais ou os ouvintes do rádio ou os telespectadores da televisão, mas são percebidos principalmente como “clientes”.

Quando se trata de globalização, os principais poderes são o poder econômico e o poder midiático. O poder político vem em terceiro lugar. E o poder econômico, quando se alia com o poder midiático, constitui uma enorme alavanca, capaz de fazer tremer qualquer poder político. Esta é uma das grandes realidades de hoje, ainda que, às vezes, continuem nos apresentando a realidade de maneira diferente. E isso é democraticamente escandaloso, porque o poder político é eleito nas urnas, mas o poder midiático e o poder econômico não são e, assim, não têm legitimidade democrática. Além disso, o poder econômico domina cada vez mais o poder midiático, porque controla, compra e concentra esses meios. E nós estamos em uma situação orwelliana, na qual os donos da produção industrial são, ao mesmo tempo, os senhores dos sistemas de manipulação das mentes.

En nome da necessidade de ganhar um número de clientes cada vez mais amplo e ter mais consumidores, os meios de informação massiva estão integrando três características:

Primeira característica: cada vez mais o discurso, a mensagem jornalística, é mais simples, mais básica. Uma mensagem simples quer dizer que utilizará muito poucas palavras, um número de palavras muito limitado.
Digamos que se o léxico do castelhano tem, por exemplo, trinta mil termos, cada vez mais os meios de informação irão utilizar apenas oitocentas palavras, para que todo o mundo entenda. Com a idéia de que é preciso expressar-se de maneira muito básica, muito simples, porque tudo o que for raciocínio complexo, tudo o que for pensamento inteligente, acaba sendo complicado demais e sai do sistema de informação tradicional.

Existe uma forte tendência à simplificação, e a simplificação mais elementar é a concepção maniqueísta das coisas: qualquer problema se transforma em um problema simples de dois termos: o bem e o mal, o branco e o preto. Uma coisa tão complexa como a geopolítica internacional, por exemplo, é interpretada em termos de bem e de mal. Ou seja, uma concepção extremadamente maniqueísta. Em qualquer debate não mais se entra em considerações que possam pôr em destaque a complexidade de alguma situação, a necessidade de períodos de adaptação, etc. São suprimidos os matizes. O raciocínio torna-se digital: zeros e uns. O resto é para “intelectuais”.

A segunda característica é a rapidez. A informação deve ser consumida rapidamente, quer dizer que seja qual for o valor da informação se tentará passá-la em um espaço muito curto. Por exemplo, se for a imprensa escrita, irá se expressar não apenas com palavras muito simples, mas em frases muito curtas. As manchetes praticamente farão um resumo, uma síntese, do que diz o texto. Poucas notícias terão mais de duas ou três laudas, e, evidentemente, em duas ou três laudas há muito pouco que se possa explicar. Em outras palavras, a idéia está no fracionamento: é oferecido um fragmento da informação, mas esse fragmento é apresentado como se fosse o todo. É uma concepção metonímica da informação, porque a ideia é que o consumidor não sofra consumindo. Por exemplo, nos telejornais todos os estudos demostram que a duração média de uma informação é, digamos, de um minuto e fração. Em um minuto e pouco não é possível explicar tragédias como a da guerra do Iraque ou questões como as do islamismo radical, etc.

Finalmente, a terceira característica destas informações de palavras simples, maniqueísta e rápidas: suscitar emoções. Por exemplo, o intuito é fazer rir ou fazer chorar, o intuito é distrair. Na verdade, a informação massiva está feita para distrair, é cada vez mais uma forma de distração. A imensa maioria das informações é para distrair; se não chegássemos a conhecê-las isso não seria uma tragédia pessoal para nós. E temos visto como as informações people (gente), anedóticas, cresceram imensamente. Acontecimentos, dramas pessoais, tudo isso ocupa um enorme espaço na mídia.

Ou seja, do que se trata, na verdade, é de construir informações que sejam simples, rápidas e divertidas. Essa é uma característica geral e universal. A mídia norte-americana é, de certa maneira, o modelo e o motor deste tipo de informação que está se impondo em todas partes e que triunfa também na Internet.

Com essas características, a informação muito dificilmente pode construir consciência cidadã, construir um sentimento cívico, construir coesão social, ou coesão nacional. Há uma imensa distância entre este projeto, que teoricamente deveria ser o da informação, e a prática real que Pascual Serrano constata neste livro, no qual, de certa maneira, graças a tantos exemplos insólitos, se pergunta: o que é um discurso cujas características principais são a simplicidade, a rapidez e a distração-emoção?

A resposta aparece muito claramente: um discurso infantilizante. De fato, somente com crianças de pouca idade se fala com uma linguajem limitada, com poucas palavras, para que elas entendam. Não são utilizados conceitos filosóficos, também não é bom alongar-se muito, porque cansaria. E não se fala de maneira séria, porque se pensa que com a reatividade emocional é suficiente. Ou seja, que dispomos de um mecanismo de informação que na verdade está concebido para infantilizar o cidadão.

Por outro lado, com a explosão da Internet e da Web 2.0 estamos em um universo no qual há muito mais informação do que podemos consumir. Portanto, agora o problema não é a falta de informação; é a seleção da informação. Durante muito tempo, a maioria das sociedades humanas viveu sob sistemas autoritários de poder, que praticaram a censura. O controle da informação era de importância capital para o poder e, por conseguinte, a realidade da informação era a escassez. Havia muito pouca informação que circulava, e o controle dessa circulação era o que dava mais poder ao poder.

Hoje essa situação mudou. A informação circula de modo superabundante e ninguém pode detê-la. Não há nenhum poder suficientemente autoritário para impedir a informação de circular. É muito difícil. A Internet agora nos permite ter acesso, quase gratuito, a jazidas literalmente oceânicas de informação e a dificuldade é como podemos nos orientar por esse labirinto. Isso apresenta enormes problemas. E o primeiro destes problemas é o da censura. Porque a censura mudou.

Antes, a censura era exercida pelo poder político ou pelo poder, digamos, moral ou religioso, havia pouca informação e os cidadãos diziam que era preciso lutar para obter mais liberdade de informação. O que chamamos de liberdade? Liberdade de comunicar, em resumo. A liberdade de pensar livremente, de comunicar suas idéias, a liberdade de reunião, a liberdade de expressar-se ou a liberdade de imprimir, etc., isso é, no plano político, a liberdade. Justamente a liberdade é a margem de possibilidade da expressão dos grupos sociais que constituem uma sociedade.

E então, os cidadãos diziam, quanto mais liberdade tenhamos, mais comunicação haverá; ou, pelo contrário, quanto mais comunicação exista, mais liberdade haverá. E assim foram feitas as revoluções no século XVIII, essencialmente para ter a possibilidade de comunicar, de trocar informações. Os cidadãos tinham, inconscientemente, a idéia de que quanto mais comunicação houvesse, mais libertad haveria em nossas sociedades.

Mas não há dúvida que, já há alguns anos, temos percebido que essa curva, que era quase uma mediatriz, uma diagonal ascendente, proporcional, por assim dizer —quanto mais comunicação, mais liberdade havia— e que parecia que ia subir até o céu, mudou.

Na verdade, como demonstra com brilhantismo, do seu jeito, este livro de Pascual Serrano, percebemos, depois de todas as manipulações midiáticas ligadas ao ocorrido na Romênia, ao assunto Tamisara, à Guerra do Golfo, à Guerra do Iraque, ao 11 de março, etc., que ter mais informação não trazia mais liberdade. E, então, nossa curva que subia como uma diagonal, de repente transformou-se em uma paralela.

Por muita informação que houvesse, nossa liberdade não se modificava, se mantinha inalterável. E o perigo que corremos neste momento é que quanto mais informação tenhamos, menos liberdade teremos. Porque a informação agora me engana, me confunde, me desorienta. Há tanta informação não verificada, tanta “balela” como diz Pascual Serrano, que não sei mais o que pensar. Na verdade, estou percebendo que muitas dessas informações que recebo estão mentindo, como mentiram durante a Guerra do Golfo, como mentiram em Timisoara, como mentiram na Bósnia, como mentiram no Kossovo, ou como o engodo das “armas de destruição massiva” para justificar a guerra do Iraque.

Quanto mais informação existe agora, menos liberdade ela me proporciona. Porque não sei mais o que fazer, e percebo, de fato, que o funcionamento da verdade das nossas sociedades é muito relativo. O que é a verdade em matéria de informação? A verdade informativa é quando toda a mídia: a imprensa, o rádio, a televisão e a Internet dizem a mesma coisa sobre um tema, dizem que uma coisa é verdade… mesmo que seja mentira. Isto está restabelecendo esse princípio que Aldous Huxley desenvolveu em seu romance Admirável Mundo Novo… Huxley diz: “Trinta e seis mil repetições constituem a verdade.” Se a mídia repete algo trinta e seis mil vezes, estabelece a verdade… mesmo não sendo verdade. E assim os cidadãos não sabem mais onde está a verdade. E a mídia, em vez de contribuir para nos guiar neste labirinto, o que faz é nos confundir mais, nos enganar mais, nos manipular mais.

Por isso se criou uma tal desconfiança com respeito à mídia na sociedade. A riqueza principal dos meios de comunicação é sua credibilidade. nenhum capital é mais importante para um meio de comunicação que sua credibilidade, porque o que eles vendem é, na verdade, essa credibilidade. Nós compramos porque eles são confiáveis, se não fossem confiáveis para que iríamos comprar, ou senão, para que vou assistir tal programa de televisão ou escutar o rádio se não confio no jornalista ou no meio que está se expressando? É seu principal capital, e este capital, como demonstra com clareza evangélica este livro de Pascual Serrano, está sendo dilapidado.

As Viagens dos Reis Magos

“Os folcloristas e antropólogos, a exemplo de Câmara Cascudo e Carlos Rodrigues Brandão, já interpretaram sobejamente as folias [de Reis], explicitando-lhes as características fundamentais: são parte do catolicismo popular, são de origem predominantemente camponesa e englobam o peditório do cortejo, que é feito em nome do padroeiro. Mas como praticante, e mesmo assumindo todas essas características, entendo que, de todas as formas possíveis de se explicar o que é uma Folia de Reis, a mais definidora é o seu giro, a peregrinação de um ponto inicial (a festa de saída) a ponto terminal (a festa de chegada – o ‘arremate’), previamente definidos. Entre os dois pontos expoentes dos festejos de cada ano, a folia expressa-se inteira, em todas as suas dimensões (organizativa, artística, religiosa, social), dentro de cada casa onde os integrantes se apresentam como procuradores de uma esmola e viajores à procura de um certo recém-nascido. É bonito e emocionante, sim, ver a diversificação das formas e vozes das folias num grande encontro de companhias, em uma praça ou em um ginásio de esportes. Mas a folia é, na sua essência, o giro, a viagem para Belém, em cada casa por onde ela passa (…) Nasceu daí a vontade de escrever sobre os Reis Magos, tomando-os como viajantes” (p.8).

 

Quem assim escreve é Jadir de Morais Pessoa. Nascido de uma família mineira radicada em Itapuranga, Goiás, Jadir foi criado no Povoado de Lages, cujo centro eram as rezas e as novenas da Capela de Nossa Senhora do Rosário e o giro da Folia de Reis, terminando no dia cinco de janeiro. Ainda na adolescência, estudando em Goiânia, Jadir foi assumido como folião de Reis pelos integrantes do terno das Lages. Cursou em seguida Filosofia e Teologia na PUC-Campinas e fez o Mestrado e o Doutorado em Antropologia na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), sob a orientação do Professor Carlos Rodrigues Brandão.

Hoje Jadir é Professor Titular na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Em todo esse percurso de estudante e professor, sempre manteve a identidade de folião de Reis.

Jadir foi meu aluno quando cursou Teologia na PUC-Campinas (1981-1984). E, ao pesquisar o texto bíblico de Mt 2,1-12 para a escrita deste livro, acabou encontrando meu texto A Visita dos Magos: Mt 2,1-12. Dele se serviu no capítulo primeiro, A caminho de Belém, para acompanhar a primeira das sete viagens dos Reis Magos…

 

Escrito em parceria com a pesquisadora francesa da temática dos Reis Magos na França e em outros países da Europa, Madeleine Félix, o livro do qual estou falando é:

Jadir de Morais PESSOA e Madeleine FÉLIX, As Viagens dos Reis Magos. Goiânia: Ed. da UCG, 2007, 256 p. ISBN: 8571033706.

 

Em sete capítulos, fartamente ilustrados, Jadir e Madeleine acompanham os Reis Magos em suas sete viagens:
1. A caminho de Belém
2. De Constantinopla a Milão
3. De Milão a Colônia
4. De Colônia para a Europa ocidental medieval
5. Na bagagem da catequese jesuítica
6. Trilhando a diversidade cultural brasileira
7. Os Três Reis de casa em casa

Fico muito contente ao ver esta extraordinária pesquisa do amigo Jadir, que, gentilmente, me enviou um exemplar com bonita dedicatória em dezembro passado. O livro foi lançado em janeiro de 2007.

O livro foi traduzido para o francês em 2010. Veja abaixo.

Leia Mais:
Currículo Lattes de Jadir de Morais Pessoa
PESSOA, J. M.; FÉLIX, M. Les voyages des Rois Mages: De l’Orient jusqu’au Brésil. Paris: L’Harmattan, 2010, 250 p. – ISBN 9782296123878.
Madeleine FÉLIX, Le Livre des Rois Mages. Paris: Desclée de Brouwer, 2000, 239 p. – ISBN 9782220040486

Acordo ortográfico da língua portuguesa

Foi uma surpresa encontrar esta notícia. Na semana passada um aluno disse algo sobre o assunto, mas eu tinha certeza de que tudo estava acertado. Não está. Pode demorar. Pode nem sair.

Sai ou não sai a reforma ortográfica da Língua Portuguesa?

Amorim diz que só agenda reforma ortográfica com bola de cristal

O ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, saiu em defesa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa nesta sexta-feira, em Lisboa, mas se recusou a agendar uma data para a implementação das normas. Portugal é um dos países que oferece resistência ao acordo cuja intenção é unificar as grafias das palavras em toda a comunidade lusófona. “Isso [data para entrada em vigor] só com bolinha de cristal, que eu não tenho”, afirmou. Em entrevista a jornalistas, Amorim afirmou que é preciso “compreensão” quanto à demora de alguns países em aceitar o acordo. O documento, atualmente, conta com as assinaturas de Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Pelas regras da CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), tendo a adesão de três países, o acordo já poderia entrar em vigor. Restariam, assim, Portugal, Guiné-Bissau, Moçambique, Angola e Timor Leste. “Todos reconhecemos que é importante ter o acordo ortográfico, até para fortalecimento da língua”, afirmou Celso Amorim. “Para que possamos todos trabalhar em conjunto, o acordo é fundamental. Como podemos trabalhar se um diz actual e o outro, atual?” Para o vice-presidente da Academia de Lisboa, Antonio Braz Teixeira, o problema, em Portugal, é que editores de livros pressionam “o governo português no sentido de adiar, indefinidamente, a data de início de sua [do acordo] aplicação efetiva”. Teixeira propôs recentemente à Academia Brasileira de Letras que a reforma entre em vigor em 2008.

Fonte: Folha Online 02/11/2007 – 14h56.

Veja, nesta mesma página, em que consiste a reforma.

Wikipedia e Biblia: muito antes, pelo contrário

Posso confiar na Wikipédia para consultas sobre temas bíblicos?

Pode e não pode… Acho que a postura do mineiro diante de polêmica temática é a mais apropriada neste caso: “E você, mineiro, é a favor ou contra?” E o mineiro, desconfiado, sem pressa, responde: “Muito antes pelo contrário…”

Por que o assunto reaparece? Porque um leitor fiel deste blog me comunica sua perplexidade face à duvidosa qualidade das informações da Wikipédia sobre temas bíblicos, judaicos e afins.

O mineiro está certo: não existe consenso sobre o assunto. Eu consulto alguma coisa, quando não tenho alternativa, mas só confio quando sei mais sobre o tema do que o autor do texto… Ou quando tenho como verificar, em outra fonte, a qualidade do que estou consumindo. Esquisito isso, mas no mundo da informação, especialmente na web, somos muitas vezes obrigados a agir assim.

Remeto os interessados a um post que escrevi em 29 de março de 2007, Wikipedia avaliada pelos biblioblogueiros, onde há alguns bons links que levam a gente séria que discutia, naquela época, o assunto. E lá indico também como chegar à Citizendium, Scholarpedia, Wikipedia.

Acrescento a estes um post de John F. Hobbins, Wikipedia, Bible Study, and the SBL, de 15 de julho de 2007, em seu Ancient Hebrew Poetry.

Por último, recomendo algo sobre os blogs – não custa desconfiar, não é?
Blogueiros mentem? Bem…
Charlatanice: muitos blogs publicam lixo como se fosse ciência
O lado obscuro dos blogs

Meu encontro com Paulo Autran

Morreu Paulo Autran, um dos maiores atores brasileiros.

De sua morte, ocorrida ontem, escreveu Josias de Souza em seu blog, Nos bastidores do poder:

Depois de atingir o cume da glória, Autran subiu.

E Nelson de Sá escreveu Ele era o teatro, no Cacilda, blog de teatro da Lenise Pinheiro e do Nelson de Sá, em 12/10/2007 às 19h02:

Demorei a compreender sua grandeza. Não aceitava as opções que fazia, as encenações a que se submetia. Eu amava o aristocrata reacionário de “Terra em Transe”, mas não era o que presenciava no teatro. Até que fui parar um dia no Sesc Ipiranga, para ver seu monólogo de décadas, restrito praticamente a um único texto, “Meu Tio o Iauaretê”, de Guimarães Rosa. A metamorfose por que passou, de homem a animal, diante dos meus olhos e de todos, foi acontecimento tão singular, ainda que ele o repetisse toda noite, que valeu por tudo. Foi tão superior o teatro, naquele instante, que não havia mesmo mais nada. Não havia, para começar, diferenças de pensamento, correntes do teatro. Foi o palco absoluto.

 

Há 29 anos tive a rara oportunidade de conhecer e entrevistar Paulo Autran.

Foi em Patos de Minas, MG, onde, em 1978, eu era redator-chefe do jornal Folha Diocesana. Tendo chegado de Roma no final de 1976, depois de seis anos estudando na Europa, eu trabalhava como assessor exegético na Diocese de Patos de Minas e tinha 27 anos de idade.

Paulo Autran fora a Patos de Minas a convite do Centro de Estudos Teatrais (CET), grupo de teatro amador, que estava inaugurando o pequeno Teatro Telhado, e apresentou, nos dias 9 e 10 de junho de 1978, no auditório da Rádio Clube de Patos, o espetáculo O Ator e o Texto.

Na edição de 15 de junho de 1978, n. 954, da Folha Diocesana, escrevi:

O Ator e o Texto: o ator, Paulo Autran, carioca de nascimento, paulista por vivência, advogado de profissão, ator por vocação, um dos maiores expoentes do atual teatro brasileiro. O texto: Angústia, de Graciliano Ramos; Cabelos Compridos, de Monteiro Lobato; O Retrato, de Érico Veríssimo e Meu Tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa (…) Nos debates e bate-papos dos patenses com Paulo Autran, pôde-se constatar a magnifica clarividência de ideias e amplidão de horizontes do grande ator.

A seguir, a entrevista, na qual, entre outras coisas, Paulo Autran disse: No Brasil, o povo só terá acesso ao teatro quando ele tiver o que comer, o que vestir, onde dormir e tiver aprendido a ler.

Nosso circo é a novela e o futebol, nosso pão está caro

Entrevista com o ator Paulo Autran – Por Airton José da Silva – Diretor de Redação

Publicada na Folha Diocesana – Patos de Minas, 22 de junho de 1978, n. 955, p. 9.

Na avenida Brasil, em Patos de Minas, um pequeno teatro, ainda em construção. Um grupo com muita garra, muita vontade de fazer teatro amador em Patos. O Teatro Telhado, rústico, mas acolhedor. O grupo de jovens do CET – Centro de Estudos Teatrais – um dos 5 grupos de teatro amador de Patos de Minas.

São 16 horas, o dia é 10 de junho de 1978, o assunto é teatro. Sentados no chão, rapazes e moças estão atentos. Sentado também no chão, muito comunicativo, no meio de todos: Paulo Autran. Suas apresentações no auditório da Rádio Clube de Patos foram muito comentadas naqueles dias. Suas ideias e suas opiniões, ótimo incentivo para o teatro e para a cultura. E nós quisemos também ouvi-lo. Gravador na mão, entramos na intimidade daquela conversa. E Paulo Autran continuou a conversar conosco. Falou de teatro, mas falou mais. Muito natural, muito espontâneo, o famoso ator demonstrou ser grande também fora do palco. Selecionamos algumas das respostas de Paulo Autran. As perguntas são de várias pessoas, inclusive da redação da Folha Diocesana.

:: Paulo, vamos falar de algo muito importante: o teatro e a censura
Paulo Autran – O maior mal que o teatro enfrenta atualmente [1978] é, sem dúvida, a censura. A censura tem sido castradora em todos os ramos artísticos do Brasil, no cinema, na televisão e, principalmente, no teatro. Quando a gente pensa que, atualmente, há perto de 600 peças proibidas pela censura, a gente vê o que isso representa de mal, não só para o teatro, mas principalmente para a plateia brasileira, para o povo brasileiro que fica impossibilitado de ver grandes obras, que fica sem conhecer as principais obras de seus próprios dramaturgos, porque há muita peça brasileira proibida. E você pense também na quantidade de pessoas que deixam de escrever, na quantidade de assuntos que não podem ser abordados no palco. Então, realmente, é um mal para o povo brasileiro.

:: E a televisão? Ela está ocupando um espaço enorme na vida do brasileiro. Este espaço não foi em parte roubado do teatro?
Paulo Autran – Eu não acredito que a televisão roube espaço ao teatro, porque a televisão é totalmente diferente do teatro. O prazer que um espetáculo teatral proporciona a quem o assiste é totalmente diferente do prazer provocado por um bom programa de televisão, quando há bons programas de televisão. Porém é lastimável que um veículo capaz de promover a massificação do pensamento em nosso país, dedique tantas horas a uma coisa do gênero novela, onde só se pensa no lado sentimental das coisas. E nenhum problema real pode ser abordado numa novela.

:: No meu modo de ver, a televisão acomoda as pessoas, ela apresenta uma imagem defasada da realidade…
Paulo Autran – A televisão, principalmente, aliena a quem a assiste dos verdadeiros problemas que a pessoa tem que enfrentar. Enquanto o Brasil inteiro discute se a mocinha vai se casar e ser feliz com o mocinho, o Brasil inteiro deixa de pensar nos problemas reais, diários, cotidianos que o nosso povo tem que enfrentar.

:: A televisão torna as pessoas obedientes, massificando-as. O que significa isto no contexto brasileiro atual?
Paulo Autran – É uma lástima. Já diziam os romanos que para governar era preciso dar ao povo pão e circo. No Brasil, nosso circo é a novela e o futebol. E o pão está caro.

:: Você acha que um grupo de teatro amador que começa representando uma peça clássica vai ter algum problema por ter começado com algo tão difícil?
Paulo Autran – A palavra “clássico” assusta muita gente. Fala-se em música clássica, as pessoas dizem: “ai, que horror”. Fala-se em teatro clássico, as pessoas dizem: “ai, que difícil”. Não é verdade. O clássico, a palavra “clássico” é sinônimo de qualidade. Só se torna clássico aquilo que é bom, que reflete um problema verdadeiro da humanidade. Assim, o teatro clássico é um extraordinário ponto de partida para qualquer pessoa. Quem é capaz de representar bem um clássico é capaz de transmitir as paixões do ser humano no seu mais alto grau de intensidade. Para quem gosta de música, por exemplo, é uma conquista descobrir a beleza e a extraordinária emoção e prazer que se encontra ouvindo um bom autor clássico.

:: Qual o papel que você mais prefere fazer?
Paulo Autran – Eu fiz tantos papéis bons, tantos textos brasileiros e estrangeiros que eu não poderia lhe indicar um personagem que eu tenha gostado mais. Mas, se me obrigassem a dizer qual a peça que me deu mais prazer representar, eu poderia dizer que foi “Liberdade, Liberdade”, uma peça que atualmente está proibida em todo o território nacional, talvez por causa do nome.

:: Augusto Boal está fazendo experiências de teatro-foro na Europa. O que você acha disso?
Paulo Autran – O Boal já fez isso aqui no Brasil, o que ele chamava de teatro-jornal. A partir do fato diário, ele escrevia e apresentava diariamente pequenos esquetes no seu teatro. Ele agora ampliou isto na Europa. O Boal é um autor e um diretor muito criativo e capaz. Acredito que ele esteja fazendo um bom trabalho por lá. Se bem que isso é um caminho do teatro, não é o caminho. Não é que todo mundo deva fazer só esse tipo de teatro, porque o teatro é muito mais amplo do que isso.

:: O teatro muitas vezes atinge só pessoas de um nível cultural mais elevado, deixando de chegar ao povo. O que você pensa disso?
Paulo Autran – Há certos autores, bons autores, que são por seu próprio feitio pessoas intelectuais e intelectualizantes. Escrevem peças que só atingem um pequeno grupo de eleitos da inteligência e da cultura. Eu admiro estas peças, gosto muito de lê-las, mas não as monto, porque eu acho que o teatro só se justifica quando ele tem a participação da plateia. Só quando ele vai para a plateia e ela nos manda de volta a sua receptividade. Eu acho que o teatro deve atingir cada vez mais um número maior de pessoas e não se restringir a um pequeno círculo, seja de que elite for.

:: No Brasil há uma série de fatores econômicos e culturais que restringem demais o público, não?
Paulo Autran – No Brasil, o povo só terá acesso ao teatro quando ele tiver o que comer, o que vestir, onde dormir e tiver aprendido a ler.

:: No atual movimento nacional para a redemocratização, qual está sendo o papel do teatro e a sua contribuição para o processo de volta ao Estado de Direito?
Paulo Autran – O teatro teve uma participação muito grande nesta tentativa de redemocratização. O teatro foi, talvez, a primeira classe, como classe, a se manifestar pela redemocratização no Brasil, com espetáculos como “Opinião” e “Liberdade, Liberdade”. Foram os dois marcos iniciais da redemocratização, numa época bastante difícil para o nosso país. E o teatro jamais abdicou disso. Você veja, mesmo no ano passado e até nesse ano, há peças em cartaz que mostram claramente a necessidade que a classe tem de lutar para isso: “Gota d’água”, “Último Carro” e “Ponto de Partida”. A classe teatral está sempre atenta e sempre tentando denunciar e protestar contra o cerceamento da liberdade.

:: Por que é que demorou tanto a sair a regulamentação da profissão de ator? Há alguma razão do governo para isso?
Paulo Autran – Ninguém compreende realmente porque demorou tanto para sair esta regulamentação.

:: E é só aqui no Brasil?
Paulo Autran – Não, há outros países subdesenvolvidos que enfrentam o mesmo problema.

:: Isto não faz parte de um contexto geral de desvalorização da cultura nestes países?
Paulo Autran – Você tem razão. Mas a partir do momento em que a classe teatral representou um pedra no sapato, era muito mais fácil tê-la regulamentado anteriormente.

:: Quer dizer, existe um medo do governo no caso?
Paulo Autran – Tu o disseste.