O sucateamento do Iraque continua. Você já parou para refletir sobre o que significa Guerra Assimétrica? Pare, leia e reflita… você verá que a situação do berço cultural da humanidade, a Mesopotâmia, tão importante para os estudos bíblicos, é mais crítica do que parece, como explica o professor da UFRJ Francisco Carlos Teixeira.
A guerra assimétrica no Iraque
Francisco Carlos Teixeira Da Silva – 29 de junho de 2005
Após o fim da Guerra Fria (1991), em assuntos militares, os EUA ainda mantinham a postura assumida durante a longa Administração Clinton: o uso maciço da supremacia aérea – aviação+balística – e limitação das tropas de solo, visando a superação da “Síndrome do Vietnã” (ver artigo anterior) e o custo político da “contagem de corpos”.
Assim, ao longo dos conflitos na ex-Iugoslávia (em especial em Kossovo, em 1999), os americanos evitaram um contato imediato com as tropas adversárias no solo, voltando-se para ações de destruição da infraestrutura logística, militar e econômica dos sérvios. Vigia a chamada Doutrina Powell: “…nós atiramos e eles morrem!” Assim, tinham os americanos descoberto a “guerra ideal” (em comparação com a carnificina do Vietnã).
Por outro lado, muitos críticos acusavam a administração Clinton de paralisia perante os inimigos da América, duvidando mesmo da inteligência e da coragem dos “generais de Clinton” em perseguir, com meios militares, os objetivos políticos do país. Como vimos no artigo anterior, Donald Rumsfeld, na linha de frente dos ideólogos neoconservadores de George Bush, visavam, ao assumir o governo americano em 2001, restaurar a confiança americana e explorar, profundamente, a vitória obtida contra os soviéticos na Guerra Fria. Foi neste contexto que arquitetaram a Guerra no Iraque como o cenário ideal para testar o novo modelo de guerra e seu corolário, a pretensa “Doutrina Rumsfeld”.
O Nascimento da Guerra do Futuro
Em 1993 o Governo Clinton decidiu-se por uma intervenção considerada “humanitária” na Somália, onde um confronto entre diversos partidos e “senhores da guerra” locais ameaçavam a unidade e soberania do país africano. Para os Estados Unidos tratava-se de evitar a transformação da Somália em mais um “país falido”, capaz de abrigar bases e santuários do terrorismo internacional, do narcotráfico e do crime organizado.
Devemos notar que no mesmo ano, em 1993, um comando terrorista islâmico ligado a, então, desconhecida organização Al Qaeda tentara dinamitar o World Trade Center, em Nova York. A tentativa, feita através de um carro-bomba colocado na garagem do prédio, falharia – dessa vez! Contudo, a percepção da inteligência americana acertara em ver na destruição das instituições estatais somalis um grave risco, ampliando as possibilidades de enraizamento do terrorismo que já apontava a América como o principal inimigo.
Foi neste sentido que Clinton despachou para Mogadíscio uma força-tarefa, altamente treinada e formada de comandos especiais (100 Army Rangers), para evitar o controle da cidade pelos senhores da guerra. A reação foi imediata: com armas precárias, tubos de lança-granadas de US$ 200, os combatentes irregulares somalis provaram uma larga eficiência, derrubando os super-helicópteros militares americanos e matando 19 comandos americanos, num dramático episódio da história militar contemporânea.
O drama de Mogadíscio, a capital somali (que dará origem a um livro e um filme de grande sucesso: “Black Hawk Dawn”, 2001, direção de Ridley Scott), provaria que mesmo a hiperpotência americana, que exerceria uma tranquila hegemonia mundial, poderia ser desafiada. A tecnologia superior americana, o excelente treinamento dos soldados e a grande disponibilidade financeira não bastavam para assegurar a vitória do poder superior num cenário adverso.
A bem da verdade, a Guerra do Afeganistão, entre 1979 e 1989, com soviéticos contra a resistência islâmica, já havia mostrado que um poder superior poderia ser paralisado pela multiplicação de meios, mesmo que inferiores, quando utilizados por um grupo, partido ou exército bem preparado, aguerrido e com forte coesão ideológica. Da mesma forma, a evidente superioridade de Israel – inclusive em termos de inteligência, através de um dos melhores serviços secretos do mundo – não conseguiu, até hoje, abalar a capacidade de resistência – e de promover ações violentas altamente dolorosas – da população da Palestina ocupada.
Entretanto, a nova forma de guerra, denominada de “assimétrica” – visto ser a guerra do fraco contra o forte -, não se ressume numa atualização tecnificada da clássica guerrilha, como praticada no Vietnã. Embora a extensão do uso de armas antimecanização – contra carros de assalto; transportes; helicópteros etc. – ao lado da multiplicação de C’2 (Comando & Controle), com novos meios, como laptops e celulares seja uma ferramenta básica da guerra assimétrica, o seu conceito estratégico é bem mais amplo. A estratégia assimétrica, visando a vitória de um poder inferior frente a uma potência superior, implica em um novo elenco tático, na verdade uma ampla base de instruções, que molda a nova modalidade de combate.
A Guerra Assimétrica
O eixo mais visível da guerra assimétrica permanece no âmbito clássico da guerra não-convencional: uma potência militarmente inferior, em posição de auto-defesa, quer dizer, sob ataque ou ocupação, pode recorrer ao que denominamos de “táticas não-convencionais”, como ataques surpresa, seguidos de retiradas; recusa em dar combate em situação de inferioridade; escaramuças; batalhas seletivas, sabotagem etc.
Estaríamos, ainda aí, no domínio clássico da guerra de guerrilhas, tal como nos textos de Mao Zedong, Van Giap e Che Guevara. Porém, a guerrilha é apenas uma das mais velhas formas de combate assimétrico e, de certa forma, já previsto no livro “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, escrito no segundo século antes de Cristo.
Mas, o arsenal de táticas assimétricas não se esgota na atualização tecnológica da guerrilha. Uma outra dimensão da guerra assimétrica é o uso, em larga escala, de meios não-convencionais de combate. Assim, um poder mais fraco, quando atacado em seu território ou em defesa do que considera seus legítimos interesses, poderia considerar tais métodos como necessários para sua autodefesa.
Destruir as bases econômicas do adversário, dentro ou fora do seu território, cortar suas linhas de suprimento, atingir suas instalações sob forma dissimulada – seja no país ocupado, seja na sede do país ocupante -; impor condições de estresse permanente para a tropa ocupante, impedir o descanso e semear o pânico entre os aliados “nativos” dos ocupantes são, todos eles, meios passíveis de uso numa guerra assimétrica.
Claramente a guerra assimétrica visa “quebrar a vontade política” do mais forte. Assim, a associação com o crime organizado, o uso de meios terroristas contra a população civil e alvos não-militares são, infelizmente, uma grande possibilidade. Evidentemente, a maior parte deles pode, claramente, assemelhar-se com atividade criminosa e estar, literalmente, fora das leis de guerra. Por essa razão a máxima “One man‘s terrorist is another man‘s freedom fighter” parece fazer sentido, por exemplo, para os combatentes mujahedins no Iraque.
Existem, ainda, outras dimensões da guerra assimétrica, em especial através do uso maciço de meios eletrônicos, virtuais e da nova economia “de plástico”. Tais métodos podem, ou não, ser utilizados por grupos autônomos – tais como redes terroristas – ou por Estados-Nação (ou seus simpatizantes), conforme aparece no texto teórico que mais avançou no debate da guerra assimétrica. Trata-se de “A Guerra sem Limites”, publicado em 1999, por dois oficiais da China Popular, Qiao Liang e Wang Xiangsui: tratava-se claramente de tirar o máximo de vantagens de um mundo altamente tecnificado, globalizado e mediatizado.
O livro chinês, após 11/09/01, passou a causar certo mal-estar, posto que muitos identificaram em seus ensinamentos as bases de ação da Al Qaeda. Na verdade, tratava-se de uma manualização de práticas já largamente em curso, inclusive praticadas pela CIA no Afeganistão contra os soviéticos.
Algumas destas modalidades da nova guerra assimétrica foram colocadas em prática depois da invasão americana do Iraque em 2003. Forças nacionalistas iraquianas, denominadas de “insurgentes”, ou “resistentes”, dependendo do ponto de vista, procuraram atingir o Estados Unidos visando sua retirada do país. Evidentemente sabiam não ter os meios para vencer a formidável panóplia militar norte-americana. Assim, começaram uma guerra assimétrica como forma de “libertação”nacional.
Pensando a Resistência:
Os objetivos iniciais dos EUA no país – a criação de um Iraque pró-ocidental no coração de um Oriente Médio reformatado à luz dos interesses norte-americanos – foram claramente ultrapassados pelos acontecimentos. De qualquer forma, e sejam quais forem os desdobramentos militares da guerra, do ponto de vista político, os EUA são, hoje, os grande perdedores. Devemos ter em mente que os objetivos de uma guerra são sempre políticos – como já afirmava Clausewitz.
Neste sentido, tal qual no Vietnã entre 1964-1975, os americanos cometeram graves erros, não conseguindo avaliar corretamente o sentimento nacional iraquiano, a força de coesão da religião islâmica e a possibilidade de caos derivado da dissolução do Estado baasista, em especial da polícia e das forças armadas. Neste sentido, faltou aos americanos uma abordagem antropológica e histórica das condições da guerra, imaginando pura e simplesmente a adesão da sociedade iraquiana aos valores considerados supremos pela administração Bush.
Da mesma forma, uma série de erros sucessivos na gestão do país ocupado – do saque de Bagdá até os tremendos abusos da prisão de Abu Graib – foram habilmente utilizados no âmbito mediático da guerra.
Tal erro de apreciação americana derivava de um contato muito intenso da inteligência americana com a elite ocidentalizada iraquiana, no exílio há décadas. Boa parte desta elite não viveu a Guerra Irã-Iraque (1980-1988), a Guerra do Golfo de 1991 e os anos de bloqueio e bombardeios subsequentes, não podendo avaliar o ressentimento antiocidental presente na população local.
A estratégia da violência
O ponto central da estratégia da resistência, como praticada no Iraque enquanto parte de uma guerra assimétrica, reside na questão da segurança – ou melhor, na produção maciça da insegurança. Com o atual grau de violência no país todos os esforços para a reconstrução institucional e econômica do Iraque são praticamente inúteis. A resistência iraquiana – mais de trinta grupos diferentes estão em ação hoje – sabe perfeitamente que é incapaz de derrotar militarmente a coligação encabeçada pelos EUA. Assim, buscam o que Clausewitz chamou de “centro de gravidade” do inimigo: a base de apoio de todo o sistema político-militar que quando tocada desarma o equilíbrio do adversário.
Os resistentes iraquianos, como foi o caso dos vietcongs entre 1964 e 1975, entendem que o centro de gravidade dos EUA é político e não militar. Assim, promovem o maior número de ações possíveis, marcadas por ataques pontuais e retiradas rápidas, evitando uma batalha decisiva onde a superioridade de meios americanos seria arrasadora. Procuram coordenar dois objetivos: provocar o maior número de baixas possíveis e evitar a reconstrução econômica do país, causando grande ônus financeiro aos americanos. Tais objetivos poderiam levar a população americana, a médio prazo, a exigir a retirada das tropas, mesmo sem uma grande derrota militar.
Hoje, quando as baixas americanas atingem mais de 1700 soldados, apenas 37% da população americana considera adequada a condução da guerra pela administração Bush, o que aponta claramente para a adequação da estratégia da resistência iraquiana. É verdade que o país sofre com a falta de luz elétrica, que ocasiona a parada do sistema de abastecimento de água potável e de escoamento de esgotos, além de atingir o funcionamento de escolas e hospitais, em razão da estratégia da resistência adotada.
Além disso, as exportações de petróleo caíram abaixo da época de Saddam Hussein, em pleno funcionamento do bloqueio ocidental imposto ao país, com os constantes ataques ao sistema de extração e transporte de petróleo. Oleodutos, estações de bombeamento e mesmo refinarias são alvos constantes da resistência, causando gravíssimo dano econômico ao país (a infraestrutura petroleira do país sofreu 642 ataques em 2004, com prejuízos na ordem de US$ 10 bilhões). Este é um dos objetivos da resistência: a guerra deve custar caro aos contribuintes americanos. É claro, que custa terríveis sacrifícios ao próprio povo iraquiano.
A idéia inicial da guerra do Iraque como um bom negócio – conforme apregoavam os neoconservadores americanos – deve ser paga com elevadíssimo ônus. Da mesma forma, o ataque a estrangeiros – mesmo civis – em atuação no Iraque é um objetivo estratégico maior da resistência.Trata-se de tornar o Iraque uma terra inóspita para estrangeiros, sejam jornalistas, empresários, médicos ou funcionários da ONU.
É nesse contexto que devemos entender a “indústria dos sequestros”. O sequestro de estrangeiros visa três objetivos simultâneos: i. Estabelecer o pânico entre possíveis candidatos a empregos nas empresas ocupadas com a reconstrução do país; ii. a produção de recursos financeiros para a manutenção da resistência (resgates tem variado, segundo fontes disponíveis, entre US$100 e US$300 mil dólares para funcionários subalternos, principalmente de origem asiática, podendo em casos de grande visibilidade política e de procedência de países membros da coligação atingir valores superiores a US$ 1 milhão); iii. projetar diretamente a guerra no interior da sociedade do adversário, levando a opinião pública a questionar a presença dos seus militares num “país remoto do Oriente Médio”.
O uso generalizado da violência.
A violência não atinge apenas as tropas de ocupação e os estrangeiros no país. A própria população iraquiana sofre duramente a ação de segmentos que formam um misto de criminalidade e insurgência. Assim, por exemplo, centenas e centenas de meninas, entre 10 e 16 anos, são sequestradas diariamente para serem vendidas (por US$ 10 até US$ 30 mil) nos Estados petrolíferos do Golfo Pérsico, visando arrecadar dinheiro para a resistência ou por puro banditismo. Um grande número de cristãos iraquianos – normalmente proprietários de lojas de venda de bebidas alcoólicas ou de diversão – estão sendo diariamente assassinados, além de um número crescente de ex-funcionários públicos do regime de Saddam Hussein.
Assim, antes de qualquer coisa, a segurança é um ponto central e neste setor o governo iraquiano e as tropas de ocupação estão sendo diariamente derrotados. Até muito recentemente a resistência usava como forma básica de organização pequenas células de 3 até 7 membros, tendo como base áreas suburbanas e periféricas de grandes centros urbanos, em especial junto ao chamado Triângulo Sunita, ao centro do país. A partir do ano passado, tais células expandiram para um média de 11 homens, muitas vezes ultrapassando vinte homens, o seu quadro de operações.
Desde 2004 a insurgência adquiriu larga mobilidade, para além da minagem de vias públicas, usando veículos para ações de ataques contra pontos fixos (quartéis, delegacias) ou objetivos móveis (comboios, carros de funcionários). Percebe-se aí a ampla utilização de telefones celulares – mais de 200 mil vendidos nos últimos seis meses, além de um grande número de furtos de carros. Tais ações de logística permitiram ampliar a capilaridade de C’3 (“Comando., Controle e Comunicação”) em ação. A partir das eleições de janeiro de 2005, e muito especialmente depois da formação do novo governo iraquiano, em maio de 2005, a espiral ascendente de mortes no país acelerou-se.
Neste sentido, a guerra assimétrica no país teria avançado para um novo estágio: a retirada dos americanos e seus aliados do país não seria mais o “stated aim” da insurgência e, sim a inviabilização total do sistema, com o “derretimento” das instituições e o “atolamento” dos americanos no país. Teríamos aqui uma estratégia “anti-Vietnã”: no Vietnã a Frente de Libertação Nacional do Vietnã (e o seu aliado do Norte) aceitaram condições de diálogo e reconhecimento do governo de Saigon visando a retirada dos USA (em 1973) e só depois disso lançaram um campanha de aniquilamento do governo da República (Sul) do Vietnã.
Visavam aí separar os americanos de seus aliados em Saigon e em uma guerra “particular”, entre 1973 e 1975, aniquilar o governo pró-ocidental de Saigon. O que vemos agora no Iraque é uma estratégia de inviabilizar a tal ponto a administração de Bagdad, que os americanos ficariam na obrigação de manter a ocupação, expondo-se a perdas constantes e pesadas, visando uma retirada unilateral humilhante ou iniciar negociações imediatas com a insurgência.
O anúncio no último fim de semana (23/06/05) por parte do governo dos Estados Unidos de negociações secretas com a resistência – com quem Bush havia afirmado não haver contemporização, posto serem terroristas, criminosos e cavemen irracionais -, soa como a admissão tardia de que a guerra assimétrica não se vence por meios militares, mesmo que muito superiores.