O caso Shapira foi reaberto

Um resumo

O Manuscrito de Shapira era um conjunto de tiras de couro com inscrições em grafia paleo-hebraica. Foi apresentado por Moses Wilhelm Shapira em 1883 como um antigo texto bíblico e quase imediatamente denunciado pelos estudiosos como uma falsificação.

O manuscrito consistia em quinze tiras de couro, que Shapira afirmava terem sido encontradas em Wadi Mujib, região do Arnon, na Transjordânia, perto do Mar Morto. O texto hebraico sugeria uma versão diferente de Deuteronômio, incluindo o acréscimo de uma nova linha aos Dez Mandamentos: “Não odiarás teu irmão em teu coração: Eu sou Deus, teu Deus.” O texto também não traz nenhuma lei, exceto os Dez Mandamentos, apresentados na primeira pessoa, ou seja, do ponto de vista da divindade. Os estudiosos levaram pouco tempo para rejeitá-lo como uma farsa, e a vergonha provocada pela acusação de falsificação levou Shapira ao suicídio em 1884.

O manuscrito, na ocasião deixado em Londres, reapareceu alguns anos depois em um leilão da Sotheby’s, onde foi vendido para Bernard Quaritch, livreiro em Londres. Relatórios contemporâneos mostram que o Dr. Philip Brookes Mason exibiu o manuscrito em uma palestra pública em Burton-on-Trent, Staffordshire, Inglaterra, em 8 de março de 1889. O paradeiro atual do texto, se sobreviveu, é desconhecido.

Para lugares, personagens e documentos, recomendo: Shapira & I – By Yoram Sabo, 2014. Documentário em hebraico e inglês, com legendas em inglês.

 

A história

Moses Wilhelm Shapira nasceu em 1830 em uma família judia na cidade de Kamianets-Podilskyi, onde hoje é a Ucrânia. Com vinte e poucos anos ele emigrou para a Cópia do Manuscrito, publicada por Christian David Ginsburg em The Athenaeum, em 8 de setembro de 1883 Palestina otomana, convertendo-se ao cristianismo anglicano. Algum tempo depois de se estabelecer em Jerusalém, ele abriu uma loja na Cidade Velha, onde vendia novidades variadas, como cartões-postais, flores prensadas e madeira de oliveira gravada. Em um cômodo nos fundos ele guardava suas mercadorias mais preciosas, manuscritos e antiguidades.

Shapira se envolveu em um escândalo quando as estatuetas de cerâmica moabita que ele vendeu ao governo prussiano foram consideradas não autênticas pelo epigrafista e arqueólogo francês Charles Simon Clermont-Ganneau. Após este caso, Shapira viajou para o Egito e Iêmen, onde adquiriu muitos manuscritos, que depois vendeu a várias instituições e colecionadores em todo o mundo. O Museu Britânico sozinho comprou centenas de manuscritos de Shapira.

De acordo com o testemunho de Shapira, foi no verão de 1878 que ele ouviu pela primeira vez sobre alguns fragmentos de manuscritos antigos de couro que tinham sido descobertos por beduínos em uma gruta perto do Mar Morto, acima do Wadi al-Mujib. Com a ajuda do sheik Mahmud Erekat, de Abu Dis, Shapira adquiriu esses fragmentos em vários lotes. Assim, ele veio a possuir o que parece ter sido porções de três manuscritos: um quase completo, outro um pouco menos, e um pequeno fragmento de um terceiro. Dizia-se que esses manuscritos foram encontrados embrulhados em linho e cobertos com uma substância betuminosa.

Em 1878 Shapira enviou cópias para Konstantin Schlottmann, que erroneamente autenticara as falsificações moabitas de Shapira em 1870. Schlottman consultou Franz Delitzsch e então denunciou o texto como uma invenção. Delitzch chamou-o de farsa.

Em 1883 Shapira escreveu uma carta ao orientalista Hermann Strack, dizendo que confiaria no seu julgamento quanto à autenticidade do manuscrito. Strack respondeu dizendo que não valia a pena levar uma falsificação tão evidente para a Europa. Ainda em 1883 Shapira mostrou uma parte do manuscrito a Paul Schröder, então o cônsul alemão em Beirute, por um breve período e com pouca luz. Ele se recusou a autenticá-lo sem estudar melhor todos os fragmentos.

Em 1883 Shapira levou seu manuscrito em uma viagem pela Europa, que começou em Leipzig. Shapira desejava persuadir um grupo de estudiosos qualificados a examinar coletivamente o manuscrito e publicar suas opiniões sobre seu valor e especialmente sua autenticidade. O desejo de Shapira foi atendido quando vários dos principais estudiosos do mundo se reuniram em Berlim para examinar seu manuscrito. Eles levaram apenas noventa minutos antes de chegarem a um veredicto unânime: falsificação.

Shapira viajou da Alemanha para a Inglaterra, onde ofereceu seu manuscrito ao Museu Britânico por 1 milhão de libras. O governo britânico parece ter considerado seriamente essa oferta, enquanto aguardava a autenticação do manuscrito. Esta tarefa foi delegada a Christian David Ginsburg, que passou várias semanas estudando os documentos. Enquanto isso, dois fragmentos foram colocados em exibição, atraindo grandes multidões, incluindo o primeiro-ministro, William Gladstone, que se encontrou com Shapira pessoalmente para discutir o assunto.

Enquanto Ginsburg trabalhava na transcrição e avaliação do texto, Clermont-Ganneau chegou ao museu, tendo viajado à Inglaterra expressamente para ver os fragmentos com seus próprios olhos. Ele tinha certeza de que eram falsificações. Ele solicitou acesso ao texto, mas lhe foi permitido apenas alguns minutos com dois ou três dos fragmentos. Isso, de acordo com a equipe do Museu Britânico, foi com a condição expressa de que Clermont-Ganneau se abstivesse de publicar um relatório até que Ginsburg houvesse publicado o seu. Na manhã seguinte, porém, Clermont-Ganneau anunciou à imprensa que o manuscrito era uma falsificação. Depois disso, Clermont-Ganneau teve seu acesso aos textos recusado.

Pouco depois do pronunciamento de Clermont-Ganneau, Ginsburg publicou seu relatório, no qual ele concordou com a avaliação de Clermont-Ganneau.

Após esse veredicto, Shapira foi embora, abandonando seu manuscrito no Museu Britânico. Shapira nunca mais voltou para sua casa e para sua família em Jerusalém. Depois de vagar pela Europa, ele deu um tiro na cabeça em um hotel de Rotterdam, na Holanda*.

 

Caso reaberto

Um artigo e um livro disponíveis para download gratuito:

:. Idan Dershowitz, The Valediction of Moses: New Evidence on the Shapira Deuteronomy Fragments. ZAW 133, 2021, p. 1-22.

Idan Dershowitz, Professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Potsdam, Alemanha

Idan Dershowitz, nascido em 1982, Professor de Bíblia Hebraica na Universidade de Potsdam, AlemanhaNeste artigo apresento novas evidências e argumentos contra a teoria predominante de que Moses Wilhelm Shapira forjou seus infames fragmentos de Deuteronômio.

Começo fornecendo um pano de fundo histórico sobre Shapira e seus manuscritos.

Em seguida, discuto a avaliação negativa dos manuscritos em 1883, reviso as objeções existentes aos argumentos que diziam ser falsificação e ofereço novas objeções de minha autoria.

A seguir, abordo os argumentos paleográficos mais recentes contra a autenticidade dos manuscritos e mostro que eles se baseiam em evidências duvidosas e são metodologicamente problemáticos.

Depois disso, volto-me para alguns documentos pessoais esquecidos de Shapira, que desafiam a narrativa dominante da falsificação.

Concluo com um resumo dos resultados de minha análise filológica do texto contido nos manuscritos de Shapira, que chamo de “The Valediction of Moses” [significa “A despedida de Moisés” ou “O discurso de despedida de Moisés”]. Longe de ser derivado de Deuteronômio, este texto é, na verdade, o ancestral do Deuteronômio.

 

:. DERSHOWITZL, I. The Valediction of Moses: A Proto-Biblical Book. Tübingen: Mohr Siebeck, 2020, 216 p. – ISBN 9783161606441.

Os infames fragmentos de Deuteronômio de Moses Wilhelm Shapira – que há muito se acredita serem falsificações – são manuscritos antigos autênticos e têm um significado muito maior do que jamais se imaginou.

A obra literária que esses manuscritos preservam – que Idan Dershowitz chama de “The Valediction of Moses” ou “V” – não é baseada no livro de Deuteronômio. Pelo contrário, V é uma versão muito anterior do Deuteronômio. Em outras palavras, V é um livro proto-bíblico, de um tipo nunca visto antes. Essa conclusão é apoiada por uma série de análises filológicas, bem como por documentos de arquivo até então desconhecidos.

Um excurso em coautoria com Na’ama Pat-El avalia o perfil linguístico de V, descobrindo que é consistente com o hebraico epigráfico da Idade do Ferro. V contém versões anteriores de passagens cujas contrapartes bíblicas refletem uma atualização pós-sacerdotal substancial.

Além disso, ao contrário das narrativas canônicas do Deuteronômio, esta obra antiga não mostra sinais da influência do Código Deuteronômico (Dt 12-26). Na verdade, V preserva uma estrutura literária anterior, e dramaticamente diferente, para toda a obra – uma que carece do Código Deuteronômico por completo.

Essas descobertas têm consequências significativas para a história da composição da Bíblia, linguística histórica, história da religião, paleografia, arqueologia e muito mais. O volume inclui uma edição crítica completa e tradução para o inglês de V.

 

Um busca detetivesca

Entrevista com Chanan Tigay no jornal português Sapo, em 2017:

:. ‘Shapira foi um trapaceiro, um burlão e um mentiroso. Mas também foi um Génio’

Filho de um rabino, Chanan Tigay nasceu em Jerusalém e cresceu nos Estados Unidos, onde estudou sempre em escolas judaicas. Um dia, à refeição, o pai contou-lhe a história de Moses Shapira (1830-1884), um negociante de antiguidades que em 1883 anunciou ter descoberto o exemplar original do Deuteronómio.

A notícia provocou comoção quer no mundo académico, quer nos meios mais populares, e Shapira, que nascera pobre e queria ascender socialmente, propôs vender o manuscrito ao Museu Britânico pela soma fabulosa de um milhão de libras.

Fascinado pelo relato do seu pai, Chanan Tigay tentou ir à descoberta da verdade sobre o manuscrito de Shapira. Até porque, embora na altura a relíquia tenha acabado por ser considerada falsa pelos especialistas, a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, em 1947, perto de onde Shapira afirmava ter sido encontrado o seu manuscrito do Deuteronómio, veio reabrir a questão.

Durante cinco anos Chanan Tigay, que cobriu o conflito israelo-palestiniano como repórter, andou no encalço de Shapira e do pergaminho desaparecido. O relato da sua busca e as conclusões a que chegou estão no livro The Lost Book of Moses: The Hunt for the World’s Oldest Bible. New York: Ecco, 2016, 368 p. – ISBN 9780062206411 — em português: O livro perdido de Moisés: a procura da Bíblia mais antiga do mundo. Lisboa: Temas e Debates, 2017, 432 p. – ISBN 9789896444358 — que o autor concebeu como um policial que tinha de ser rigoroso para que especialistas como o seu próprio pai não detetassem incongruências.

 

A posição de um epigrafista

Christopher Rollston, da Universidade George Washington, Washington, D.C.:

Deja Vu all over Again: The Antiquities Market, the Shapira Strips, Menahem Mansoor, and Idan Dershowitz – By Christopher Rollston: Rollston Epigraphy – 10 March, 2021

Durante os últimos três ou quatro séculos centenas de inscrições forjadas apareceram no mercado de antiguidades. Essas falsificações modernas vêm em todas as formas e tamanhos e são escritas em vários idiomas, incluindo grego, hebraico, aramaico, fenício, latim, siríaco e copta. Algumas dessas falsificações modernas eram muito ruins, outras eram muito boas. Mas a produção de falsificações textuais na era moderna é uma coisa bastante comum, e muitas vezes tem sido bastante lucrativa para os falsificadores e para aqueles que vendem falsificações. É um grande problema na área e tem sido assim há muito tempo.

Acredito que o trabalho de Idan Dershowitz convencerá poucos epigrafistas – ou seja, estudiosos que se especializam em inscrições antigas e reais – de que os Fragmentos de Shapira são documentos antigos e autênticos.

E não acredito que seu trabalho convencerá tantos estudiosos de texto – isto é, estudiosos que trabalham principalmente não com inscrições antigas reais, pergaminhos, papiros, mas sim com textos editados em edições impressas – de que as Tiras de Shapira são antigas, embora eu suspeite que alguns estudiosos do texto acharão a proposta de Idan Dershowitz atraente, especialmente porque parece confirmar certos pressupostos que alguns deles defendem sobre a transmissão textual do Deuteronômio em suas formas mais antigas.

No entanto, a totalidade das evidências empíricas existentes continua a demonstrar que as Tiras de Shapira são falsificações modernas e refletem as mesmas tendências e problemas básicos que estão presentes na maioria das falsificações modernas e também nas falsificações dos últimos dois, três ou quatro séculos.

Por fim, devo também mencionar que fui um participante convidado do simpósio na Universidade de Harvard, realizado em 2019, no qual Idan Dershowitz apresentou seus pontos de vista. Como enfatizei naquela reunião, a evidência contra a autenticidade é convincente: as Tiras de Shapira são de fato falsificações modernas, modeladas principalmente no livro de Deuteronômio, com o tipo de floreios e acréscimos do falsificador, que são características marcantes dos métodos dos falsificadores, sempre repetidas ao longo dos séculos.

Idan Dershowitz não é o primeiro estudioso a tentar argumentar que as Tiras de Shapira são antigas, e ele não será o último.

Menahem Mansoor (The case of Shapira’s Dead Sea (Deuteronomy) scroll of 1883. Madison: University of Wisconsin, 1959) argumentou longamente que as Tiras de Shapira não eram falsificações modernas, mas verdadeiros antigos manuscritos do Mar Morto. Mas a convergência de evidências epigráficas é totalmente contra a autenticidade das Tiras de Shapira. No entanto, eu enfatizaria que quando se pensa sobre a longa história das falsificações textuais (remontando a muitos séculos), as Tiras de Shapira são muito boas, especialmente para a sua época (ou seja, final de 1800), mas nem de longe boas o suficiente para serem consideradas antigas. Ou seja, são falsificações modernas. Não sei se o próprio Shapira os forjou. Mas estou certo de que são falsificações comprovadamente modernas, nem um pouco antigas.

 

Outras indicações

:. Shapira Scroll latest – By Jim Davila: PaleoJudaica – March 19, 2021Moses Wilhelm Shapira: 1830-1884

:. Shapira & I – By Yoram Sabo, 2014. Documentário em hebraico e inglês, com legendas em inglês

:. Para saber quais são as mais famosas falsificações, Shapira incluído:

List of Artifacts in Biblical Archaeology

Archaeological Forgery

:. Um bom paralelo:

‘Dead Sea Scrolls’ at the Museum of the Bible are all forgeries – By Michael Greshko: National Geographic – March 13, 2020

 

Nota

* Relato resumido a partir de:

Idan Dershowitz, The Valediction of Moses: New Evidence on the Shapira Deuteronomy Fragments. ZAW 133, 2021, p. 1-22.

Shapira Scroll – Wikipedia