Espinosa, um dos pais da moderna crítica bíblica

Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensamento

Apontado como um dos grandes racionalistas na assim chamada Filosofia Moderna, Baruch Spinoza (1632-1677) é considerado o “pai” do criticismo bíblico moderno e um dos primeiros pensadores a formular uma potente crítica contra as ideologias estabelecidas. Filósofo de poucas obras publicadas em vida, em função da excomunhão e censura que lhe foram infligidas pela comunidade hebraica de Amsterdã, o holandês inspira a discussão de capa da IHU On-Line desta semana. Contribuem para o debate Maria Luísa Ribeiro Ferreira, Marilena Chauí, Diego Tatian, César Schirmer dos Santos, Homero Santiago, Bernardo Barata Ribeiro, Marcos Gleizer, Lia Levy, Mariana de Gainza, Vittorio Morfino e Laurent Bove.

Um trecho da entrevista de Maria Luísa Ribeiro Ferreira, professora da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa:

IHU On-Line – Por que Spinoza é considerado o fundador do criticismo bíblico moderno?

Maria Luísa Ribeiro Ferreira – Tal como muitos filósofos seus contemporâneos, Spinoza interessou-se pelo método, encontrando nele um guia que o pudesse conduzir à verdade. E essa busca o levou a procurar uma hermenêutica suscetível de se aplicar eficazmente ao texto bíblico, separando os produtos da imaginação e enfabulação do que poderia ser aceito como verdade. O Tratado teológico-político (TTP, 1670) é uma das suas obras maiores e, como o nome indica, tem uma dupla preocupação: por um lado, demarcar os territórios da teologia e da filosofia e, por outro, refletir sobre a liberdade, nomeadamente a liberdade de expressão, mostrando que ela em nada interfere com o governo de um Estado mas, pelo contrário, era essencial para assegurar a paz e a estabilidade.

O TTP apresenta um método original de interpretação dos textos sagrados. Dado que o seu desconhecimento de grego impedia Spinoza de se debruçar sobre os Evangelhos, circunscreveu-se ao Antigo Testamento tentando nele uma exegese que permitisse detectar incongruências e separar o joio do trigo. Os pressupostos dessa leitura iconoclasta encontram-se no capítulo VII da referida obra, intitulado Da interpretação da Escritura.

Ao longo dos tempos os textos sagrados foram objeto de múltiplas interpretações. Spinoza analisa-as, recusando a maior parte delas. Assim critica as leituras místicas, alegóricas e midrashicas, classificando-as como fantasias. Contesta a perspetiva de Maimónides , que pretendia subordinar o texto bíblico à razão, mas também ataca a interpretação de Alphakar, a qual abdica da luz natural e nos propõe uma hermenêutica norteada pela fé (TTP, caps. VII e XV).

A originalidade da metodologia spinozana assenta num preceito básico: a interpretação da Escritura por si mesma (TTP, cap. VII). A ele anexa cinco vias de leitura que devemos ter em conta: a via naturalista, que implica uma igualdade de tratamento entre a Natureza e os livros sagrados, considerando ambos como escrita divina e selecionando dos últimos aquilo que poderá interessar; a via histórico-contextual, que exige uma atenção às circunstâncias em que os acontecimentos ocorreram e ao modo como os diferentes livros foram selecionados para integrar o corpus canônico; a via psicológica, que atende à personalidade, formação intelectual e costumes dos diferentes autores; a via filológica, pela qual devemos ter em conta o universo linguístico dos judeus, analisando as expressões e termos utilizados; a via comparativa, que nos permite detectar incongruências entre os diferentes textos, levando-nos a interpretar alguns deles de um modo metafórico. Essa metodologia, que na altura foi atacada como herética, é hoje parte integrante dos estudos bíblicos e tais vias são aceitas como achegas hermenêuticas imprescindíveis.

Fonte: IHU On-Line 397 – Ano XII – 06.08.2012

 

Há alguns anos publiquei um artigo e um capítulo de um livro sobre a leitura sociológica e/ou socioantropológica da Bíblia. Aqui, quero apenas lembrar que do século XV ao século XVIII, acontecem dois deslocamentos no pensamento humano na Europa:

O primeiro é a passagem da especulação escolástica à filosofia da natureza. Esta, a natureza, passa a ser entendida e explicada experimentalmente. Este fenômeno se dá com a ascensão da burguesia, na forma de capitalismo mercantilista. É importante observarmos que Galileu (1564-1642) destrói a anterior concepção do universo como sistema imutável e hierarquizado, governado por Deus. Reduz o universo a um mundo geométrico, a uma física mecanicista.

O segundo deslocamento se dá quando se passa da análise da natureza para a análise da sociedade. Percebe-se, então, que a organização da sociedade não é natural, mas histórica. Questionam-se, filosoficamente, os fundamentos da sociedade, a partir da ótica da nova ordem burguesa. É uma crítica ao poder absoluto, no qual Deus criava, organizava e geria o mundo, através da Igreja e de suas leituras da realidade. É de se notar: Descartes (1596-1650) descobre o sujeito pensante autônomo, coloca a consciência como a medida e a forma do ser, marcando uma definitiva virada antropocêntrica.

Na questão da leitura da Bíblia dois nomes são importantes no século XVII:
. um racionalista: ESPINOSA (1632-1677)
. um empirista : HOBBES (1588-1679)

Ambos reivindicaram o uso da razão natural para uma correta interpretação dos textos, libertando-os de sentidos dogmatizantes pré-fixados pelos poderes dominantes.

Espinosa [=Spinoza], judeu, viveu  numa movimentada Holanda que tinha um Estado funda­do na liberdade burguesa, ou seja, liberdade de empresa e liberdade de consciência. Valorizava-se a atividade econômica e promovia-se a tolerância religiosa. A alta bur­guesia adotou o calvinismo liberal, contra o calvinismo ortodoxo – este condenava o desenvolvimento econômico como contrário à Bíblia -, adotado por todas as camadas prejudicadas com o desenvolvimento do mercantilismo.

No Tratado teológico-político – há cópias online –  escrito em 1665 e publicado em 1670, Espinosa inaugura o método histórico-crítico de leitura da Bíblia. Expõe-o no cap. VII e trata do Pentateuco no cap. VIII [cf. Tratado teológico-político. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, 520 p. – ISBN 9788533624177].

O método histórico-crítico de Espinosa tem três princípios ou linhas de argumen­tação:
. a Bíblia não é um texto especulativo, mas religioso, moral e político
. a interpretação não deve ocupar-se com o problema da verdade e da racionalidade (no sentido metafísico, escolástico), pois não está lendo um texto especulativo, mas deve buscar o sentido dos relatos, compreendendo sua linguagem, as circunstâncias de sua ocorrência, seus personagens e seus destinatários
. o intérprete não pode buscar o sentido dos textos fora deles e não pode determinar tal sentido submetendo-os a critérios especulativos, metafísicos, escolásticos, mas precisa buscá-lo nos próprios textos bíblicos e no confronto entre eles para solucio­nar as dúvidas ou contradições.

A. LODS, Histoire de la litterature hébraique et juive: Des origines à la ruine de l’État juif (135 après J.-C.). Paris: Payot, 1950, p. 89-90 diz: “Se os resultados da exegese espinosista foram ultrapassados, o método não o foi. O TTP encerra o programa das ciências bíblicas tal como foi concebido e realizado pelo século XIX. Espinosa definiu o método dessas ciências: filológico, histórico e crítico. Distinguiu diferentes ramos: história da língua, história do texto, história do cânon, história da formação de cada livro, estudo das idéias dos diversos autores”.

Espinosa defende que o método hermenêutico para se ler a Bíblia deve seguir os mesmos princípios do método usado para o estudo da natureza: assim para interpre­tar a Bíblia é necessário se ter um conhecimento histórico exato dela para então se des­cobrir o pensamento de seus autores.

As dificuldades não estão no assunto, mas na língua hebraica em que o texto foi escrito. Por isso é preciso procurar o seu sentido no uso hebraico da língua hebraica.

Deve-se excluir o recurso à metáfora para conciliar razão e revelação, lendo o texto a partir de especulações exteriores ao próprio texto: Espinosa rejeita assim a leitu­ra escolástica e rejeita igualmente a leitura rabínica, pois critica o esclarecimento de um texto obscuro por outro que nada tem a ver com ele.

Por exemplo: Moisés diz que “Deus é um fogo” em Dt 4,24: “… pois teu Deus Iahweh é um fogo devorador…”. Ora, a metafísica dirá: como Deus é incorpóreo e a Bí­blia não pode conter falsidade, a fala mosaica é metafórica.

Mas, diz Espinosa, a fala mosaica é metafórica sim, só que não é por causa da especulação metafísica da incorporeidade de Deus. É que na própria afirmação hebrai­ca se sabe que “fogo” é metáfora de cólera e de ciúme. Assim, Moisés quer dizer que Deus é um deus ciumento e colérico!

No capítulo VIII do Tratado teológico-político, Espinosa mostra como Ibn Ezra, pensador judeu do século XII, já percebera que o Pentateuco não tinha sido escrito por Moisés. E Espinosa retoma seus argumentos e avança mais na mesma direção. Con­clui: “Por todas estas observações, surge mais claro que o dia que o Pentateuco não foi escrito por Moisés, mas por um outro que viveu muitos séculos depois de Moisés”. Ou ainda: “Ninguém tem fundamento para afirmar que Moisés é o autor do Pentateuco, mas, ao contrário, tal atribuição é desmentida pela razão”.