Schillebeeckx: um artesão da aplicação do Concílio

Edward Schillebeeckx, um teólogo para hoje


Schillebeeckx “foi um pioneiro na busca de um novo paradigma em teologia, um paradigma hermenêutico que fosse adequado ao nosso estilo de modernidade e pós-modernidade.” Essa é a opinião do teólogo dominicano francês Claude Geffré, em artigo para o jornal Il Gallo, nº. 4, de maio de 2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

O teólogo dominicano Edward Schillebeeckx nos deixou no dia 23 de dezembro de 2009 aos 95 anos. Com ele, desapareceu um dos grandes teólogos católicos do século XX. Ele foi uma das testemunhas privilegiadas das expectativas da Igreja pré-conciliar, um especialista influente da obra do Vaticano II, um artesão incansável da acolhida do Concílio ao longo de todo o último terço do século XX. Como se sabe, com Yves Congar, Karl Rahner e Hans Küng, ele foi um dos fundadores, em 1965, da Revista Concilium, na qual publicou numerosos artigos que fizeram época.

Nascido em Anversa em 1914, entrou para os dominicanos em 1934, começou o seu ensino em Louvain. Mas, desde 1958, tornou-se titular da cátedra de teologia dogmática da Universidade de Nijmegen até a sua aposentadoria em 1983. Até os últimos anos da sua vida, a sua batalha de teólogo foi estreitamente ligada à grave crise que a Igreja holandesa atravessou na sua busca de renovação doutrinal e litúrgica no rastro do Concílio Vaticano II. Particularmente, ele foi um dos inspiradores do famoso Catecismo dos bispos holandeses.

Para entender a fundo o seu percurso intelectual, é útil lembrar que, no término dos seus estudos junto aos dominicanos de Louvain, ele residiu nos arredores de Paris, entre 1946 a 1947, junto às Faculdades Dominicanas de Le Saulchoir para preparar a sua tese de doutorado, que foi publicada em uma nova versão só em 1960, com o título “Le Christ, sacrement de la rencontre avec Dieu” (Paris, Ed. Du Cerf). Ele teve então a oportunidade de se encontrar com os padres Yves Congar e principalmente Marie-Dominique Chenu, ao lado dos quais adquiriu uma viva consciência da historicidade não só dos sistemas teológicas, começando pelo tomismo, mas também dos enunciados dogmáticos.

Frequentando, enquanto isso, os cursos da Sourbonne e da Ecole Pratique des Hautes Etudes, teve a possibilidade de se familiarizar com as principais correntes do pensamento contemporâneo, particularmente a fenomenologia do filósofo Maurice Merleau-Ponty.

O teólogo de Nijmegen nos deixou uma obra considerável. Por mais de 40 anos, ele foi o guia precioso de pelo menos duas gerações de professores e estudantes na Europa e nos Estados Unidos. Tomando distância pouco a pouco do neotomismo dos dominicanos de Louvain, foi um pioneiro na busca de um novo paradigma em teologia, um paradigma hermenêutico que fosse adequado ao nosso estilo de modernidade e pós-modernidade.

Em outros termos, a mensagem cristão sempre é objeto de uma interpretação, em estreita relação com a experiência histórica dos homens. Ele podia, então, escrever que “o cristianismo é menos uma mensagem em que se deve crer do que uma experiência de fé que se anuncia”. Não basta renovar a linguagem da fé para adaptá-la à sensibilidade contemporânea. É o próprio sentido da Revelação que deve ser condicionado pelo espírito humano em uma dada época histórica.

“Fedele alla fides quaerens intellectum” [fiel à fé que busca a inteligência] do seu mestre Tomás de Aquino, ele procurou apaixonadamente manifestar a pertinência da mensagem evangélica no contexto do hiperssecularismo e da morte de Deus. Principalmente após a sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1966, parecia-lhe urgente – para além de todos os fundamentalismos – reinterpretar o sentido da Revelação em função de um novo momento da história do pensamento. Tornou-se, assim, o autor de uma teologia no rastro de uma correlação crítica recíproca entre a experiência fundamental da primeira comunidade cristã e a experiência histórica dos homens do nosso tempo.

Trata-se, portanto, de recolher os dados da exegese moderna para melhor discernir os elementos fundamentais da experiência cristã fundamental da primeira comunidade cristã… E, ao mesmo tempo, para um melhor diagnóstico da experiência histórica do homem da modernidade, ele leva em consideração as mais atualizadas ensaísticas no campos da fenomenologia, das ciências da linguagem, da psicologia, da sociologia e da teoria crítica da sociedade.

Assim, ao término de uma vastíssima pesquisa histórica sobre Jesus de Nazaré, Schillebeeckx é o autor de uma cristologia narrativa pré-dogmática. Ele pensava, com efeito, que a soteriologia deve preceder a cristologia. Ele não nega os grandes dogmas da tradição eclesial sobre o Cristo Senhor, mas pensa que eles devem ser reinterpretados à luz dos dados incontestáveis sobre o Jesus da história.

Por falta de traduções, conhece-se mal esse seu trabalho monumental sobre a cristologia, mas é possível se informar a respeito dele a partir de dois grandes volumes publicados nos Estados Unidos: “Jesus. An Experiment in Christology” (1961) e “Christ. The Experience of Jesus as Lord” (1990). Ele planejava escrever um terceiro volume consagrado à Igreja. Mas, cansado das controvérsias do pós-Concílio sobre a boa recepção do Vaticano II, renunciou ao projeto e propôs uma reflexão original sobre a salvação cristã para o homem de hoje.

Esse livro, traduzido ao inglês com o título “The human story of God” (1990), apareceria em francês pelas Editions du Cerf com o título “L`histoire des hommes récit de Dieu” (1992) e em italiano, publicado pela Queriniana, como “Umanità, la storia di Dio” (1992). Como indica o título, trata-se de interrogar-se sobre o modo em que Deus é contado na história humana. A Igreja é realmente o sacramento da salvação, mas o teólogo de Nijmegen tem a preocupação de mostrar que é toda a história humana, a das culturas e a dos movimentos de libertação e também a das religiões, que pode ser sacramento de salvação. Para além do eclesiocentrismo da teologia da Contra-Reforma, sintetizado pelo slogan “fora da Igreja não há salvação”, é preciso, ao contrário, dizer “fora do mundo não há salvação”.

Schillebeeckx demonstra como o Concílio Vaticano II tomou distância da identificação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja corpo místico de Cristo e tira disso todas as suas consequências para o diálogo ecumênico e a teologia das religiões. Nesse sentido, ele inspira diretamente os trabalhos do colega jesuíta Jacques Dupuis que busca elaborar uma teologia das religiões entendida como teologia do pluralismo religioso.

O teólogo dominicano é, assim, o representante de uma teologia da salvação em ruptura com o catolicismo intransigente, que dominou o pensamento teológico até às vésperas do último Concílio, mas ele se referia à teologia dos Padres Gregos, a das sementes do Verbo. Em conclusão, a sua teologia da salvação é inseparável de uma teologia da criação, segundo a qual a história é uma teofania de Deus, toda vez que ela se move rumo á plenitude do homem autêntico. Como outros teólogos no irrequieto ambiente da revista Concilium, Schillebeeckx conheceu às vezes vivas tensões com o magistério romano.

Ele teve que responder às perguntas da Congregação para a Doutrina da Fé em 1968, em 1973 e em 1984. Foi a propósito dos seus trabalhos sobre a lei do celibato eclesiástico e, de modo mais grave, no tempo do seu posicionamento sobre o ministério ordenado e a presidência da eucaristia nas assembleias sem padre. A sua própria cristologia também suscitou inúmeras interrogações, mas ele soube responder com precisão às perguntas da Congregação para a Doutrina da Fé e, diferentemente de seu colega Hans Küng, nunca foi condenado.

Apesar das dificuldades e das suspeitas, ele sempre deu prova de uma grande serenidade e confiança indestrutível na sua missão de teólogo a serviço da Igreja. É por isso que, no momento de publicar um livro que é uma espécie de testamento espiritual, ele escolheu o título “Je suis un théologien heureux” (Cerf, 1995). Diante dos temíveis desafios da Igreja do século XXI, o teólogo dominicano não teve outra paixão durante toda a sua longa vida que responder à pergunta que ele formulava assim: “De que modo anunciar o Reino de Deus como salvação para o homem na nossa situação atual?”. E, concluindo um dos seus últimos artigos, em 2005, na revista Angelicum, escrevia: “Na convicção forte do fato de que o Deus vivo é um Deus dos homens, um `Deus humanissimus`, eu continuo sendo um crente otimista!”.

Fonte: Notícias: IHU On-Line – 14/05/2010

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