Claude Lévi-Strauss: 1908-2009

Lévi-Strauss (1908-2009): um antropólogo que mudou as ciências humanas

O mundo ficou sabendo hoje (3) da morte de Claude Lévi-Strauss, antropólogo e etnógrafo francês que exerceu influência decisiva sobre as ciências humanas na segunda metade do século 20, sendo uma das figuras fundadoras do pensamento estruturalista. Nascido em 28 de novembro de 1908 em Bruxelas, Lévi-Strauss faleceu no último sábado, em Paris, faltando menos de um mês para completar 101 anos de idade. A morte foi anunciada pela editora Plon, que não informou a causa nem o local exato.

Professor honorário no Collège de France, Lévi-Strauss ocupou a cadeira de antropologia social de 1959 a 1982. Era ainda membro da Academia Francesa.

Desde os seus primeiros trabalhos sobre os indígenas brasileiros, que ele estudou in loco entre 1935 e 1939, e a publicação de sua tese “As Estruturas Elementares do Parentesco”, em 1949, Lévi-Strauss produziu uma obra científica cujas contribuições foram reconhecidas internacionalmente. Dedicou uma tetralogia, “Os Mitológicos”, ao estudo dos mitos. Estes deram lugar à publicação de diversos volumes, sendo o primeiro “O Cru e o Cozido”, de 1964. Mas publicou também obras que fogem do estrito quadro dos estudos acadêmicos. A mais célebre delas, “Tristes Trópicos”, foi publicada em 1955, conhecido e apreciado por um vasto círculo de leitores.

Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas, filho de pais franceses de uma família de tradição intelectual e artística, especialmente voltada para o campo musical, e judaica de origem alsaciana, que vivia nos arredores de Estrasburgo. Era filho do pintor Raymond Lévi-Strauss e de Emma Lévi. Seu pai era um retratista que foi à ruína com o advento da fotografia. Seu avô materno, com quem morou ao longo da Primeira Guerra Mundial, era o rabino da sinagoga de Versalhes.

Quando inicia os estudos secundários, chegando ao renomado Liceu Condorcet, o jovem Claude se muda para Paris. É lá que conhece uma jovem socialista de um partido belga e passa a militar nos círculos da esquerda. Descobre rapidamente as referências literárias do partido, que até então desconhecia, inclusive Marx. Filia-se ao Partido Socialista Francês – SFIO (Seção Francesa da Internacional Operária), encarregado de promover o grupo de estudos socialistas.

Prossegue os estudos na Faculdade de Direito de Paris, onde se forma, antes de ingressar na Sorbonne. Em 1931, recebe o diploma em Filosofia (viria ainda a obter o doutorado em Letras em 1948).

Vida no Brasil

Lévi-Strauss certamente deixou de fazer uma proeminente carreira política quando decidiu viajar para o Brasil.

Depois de dois anos dando aula, recebe um telefonema do diretor da Escola Normal Superior, que lhe propõe fazer parte de uma missão universitária no Brasil como professor de sociologia na Universidade de São Paulo, onde leciona de 1935 a 1938. Foi este convite que definiu a vocação etnográfica de Lévi-Strauss. Até 1939, organiza e dirige diversas missões etnográficas no Mato Grosso e no Amazonas: “A etnologia projeta seu objeto entre a psicanálise e o marxismo de um lado e a geologia de outro. Lévi-Strauss descobriu a ciência em que se casam todas as suas paixões anteriores”, escreveu seu biógrafo, Denis Bertholet.

Em 1938, atravessa o estado do Mato Grosso. Parte de Cuiabá a bordo de seu Ford 34. A partir de Diamantino, segue em carro de boi uma linha telegráfica que atravessa o cerrado, um mato de vegetação bastante densa. Encontra os índios nhambiquaras (dos quais faz um alentado relato e 200 fotos), depois os mundé e tupi kawahi, em Rondônia. As missões junto às populações indígenas permitem a Lévi-Strauss reunir os primeiros materiais que constituirão a base de sua tese.

De volta à França, chega a servir na logística militar durante a Segunda Guerra. Durante a ocupação, fica sob o território de Vichy e dá aulas no Liceu de Montpellier. Pouco tempo depois, é demitido por ser judeu. Deixa a França em 1941, para se refugiar em Nova York, lugar então de alta efervescência cultural, onde leciona na New School for Social Research. O encontro com Roman Jakobson, de quem se torna amigo, tornam-se decisivos no plano intelectual. A linguística estrutural dá a Lévi-Strauss os elementos teóricos que faltavam para aprimorar seu trabalho de etnólogo sobre os sistemas de parentesco.

Volta à França em 1944 mas retorna aos Estados Unidos em 1945 para ocupar a função de adido cultural na embaixada francesa. Pede exoneração em1948 para se dedicar ao trabalho científico. Em 1949, torna-se vice-diretor do Museu do Homem, e depois diretor da Escola Prática de Altos Estudos, na cátedra de religiões comparadas de povos ágrafos.

Maturidade

Em 1955, publica o seu livro mais famoso, “Tristes Trópicos”. O livro, mistura de autobiografia, meditação filosófica e testemunho etnográfico, conhece um enorme sucesso de crítica e de público. Inúmeros intelectuais saúdam a publicação da obra, que se afasta da mesmice da etnologia. Com a publicação de sua coleção de antropologia estrutural, em 1958, lança as bases de seu trabalho teórico em matéria de estudo de povos primitivos e seus mitos.

Em 1959, é eleito professor no Collège de France, na cátedra de antropologia social, em que fica até se aposentar, em 1982. Funda, em 1961, com Émile Benveniste e Pierre Gourou, a revista L’Homme, aberta às múltiplas correntes da etnologia e da antropologia. Do começo dos anos 1960 ao início dos anos 1970, dedica-se novamente ao estudo dos mitos, em particular sobre os dos índios das Américas. Em 1973, é eleito para a Academia Francesa.

A partir de 1994, Claude Lévi-Strauss publica menos. Continua, porém, a colaborar regularmente para a revista que fundara. Em 1998, por ocasião de seu 90º aniversário, a revista Critique dedica-lhe um número especial editado por Marc Augé e uma recepção no Collège de France. Lévi-Strauss aborda sem rodeios a velhice e declara: “Há hoje em mim um ‘eu’ real, que é apenas um quarto ou a metade de um homem e um ‘eu’ virtual que conserva ainda uma viva ideia do todo. O ‘eu’ virtual imagina um projeto de livro, começa a organizá-lo em capítulos e diz ao ‘eu’ real: ‘É você que tem de continuar’. E o ‘eu’ real, que não mais está apto, diz ao ‘eu’ virtual: “É sua a tarefa. Só você é que pode ver a totalidade’. Minha vida se desenrola atualmente em meio a esse estranho diálogo”.

Homenagens

Em 28 de novembro de 2008, comemora-se seu centenário, com diversas manifestações na França e no mundo. A Academia Francesa o homenageia, festejando o primeiro acadêmico centenário de sua história. A Biblioteca Nacional organiza um dia de visitação em que as pessoas podem examinar os manuscritos, as passagens, os rascunhos e até a máquina de escrever do antropólogo.

Na época, a ministra francesa de Educação Superior e Pesquisa anunciou a criação de um Prêmio Claude Lévi-Strauss, a ser concedido a partir de 2009 ao melhor pesquisador em história, antropologia, ciências sociais e arqueologia.

A menos de um mês de completar 101 anos, Claude Lévi-Strauss faleceu neste sábado, 31 de outubro de 2009.

Fonte: Opera Mundi – 3 de novembro de 2009

 

 

Claude Lévi-Strauss, uma apresentação

Philippe Descola

CLAUDE LÉVI-STRAUSS é, sem dúvida, o antropólogo cuja obra terá exercido a maior influência no século XX. Seu nome é indissociável do que foi chamado, depois dele, antropologia estrutural. Entre as múltiplas abordagens que o campo das ciências sociais conheceu no século XX, essa ocupa uma posição particular: nem releitura ousada de um sistema explicativo já reconhecido, nem teoria regional de uma classe de fenômenos circunscritos, a antropologia estrutural é primeiramente um método de conhecimento original, forjado no tratamento de problemas particulares a uma disciplina, mas cujo objeto é em princípio tão vasto e a fecundidade tão notável que ele rapidamente exerceu uma influência muito além do campo de pesquisa que o viu nascer. Raramente também um modelo de análise do fato social terá sido tão intimamente confundido com a pessoa do seu criador, a ponto de o estruturalismo antropológico poder ser visto às vezes como um sistema de pensamento rebelde a toda aplicação por outros que não aquele que esteve em sua origem. Lévi-Strauss formula seus princípios desde a primeira temporada nos Estados Unidos, após sua descoberta da linguística estrutural e dos trabalhos de N. Trubetzkoy e de R. Jakobson (conhecido em Nova York, este último se tornará um amigo). Desde essa época, com efeito, ele está convencido de que a etnologia deve seguir o mesmo caminho que a linguística se quiser adquirir o estatuto de uma ciência rigorosa (Lévi-Strauss, 1945; 1958, cap.II). Por sua vez, convencido muito cedo pelo convívio com suas “três amantes” – Freud, Marx e a geologia – de que a ciência social não se constrói a partir da realidade manifesta, mas sim elucidando a ordem inconsciente na qual se revela a adequação racional entre as propriedades do pensamento e as do mundo, ele descobre na fonologia um modelo exemplar para pôr em prática sua intuição. Esse modelo apresenta quatro características importantes: abandona o nível dos fenômenos conscientes para privilegiar o estudo de sua infraestrutura inconsciente; dão-se por objeto de análise não os termos, mas as relações que os unem; procura mostrar que essas relações formam sistema; enfim, busca descobrir leis gerais. Desde essa época, Lévi-Strauss lança a hipótese de que esses quatro procedimentos combinados podem ajudar a esclarecer os problemas de parentesco em razão da analogia formal que ele descobre entre os fonemas e os termos que servem para designar os parentes. Ambos são elementos cuja significação provém do fato de estarem combinados em sistemas, eles próprios produtos do funcionamento inconsciente do espírito, e cuja recorrência em muitos lugares do mundo sugere que respondem a leis universais.

Todas as ideias-força da antropologia estrutural já estão presentes nesse esboço, incluindo o conceito de troca, oriundo de uma outra herança intelectual, a do Ensaio sobre a dádiva de Marcel Mauss, e que terá um papel importante em As estrutura elementares do parentesco. No início desse livro, com efeito, Lévi-Strauss afirma que a proibição do incesto deve ser vista como o avesso universal e negativo de uma regra de reciprocidade positiva que exige a troca das mulheres nos sistemas de aliança matrimonial. Essa perspectiva renovava radicalmente a abordagem dos fenômenos de parentesco, abandonando o ponto de vista da sociologia dos modos de filiação e dos princípios de constituição dos grupos de descendência, assim como o de sua reconstrução histórica conjetural, nos quais se confinavam até então o funcionalismo e o evolucionismo. Ela os substituía por uma teoria geral da aliança de casamento que esclarece, por sua vez, a natureza e o funcionamento das unidades sociais em jogo no parentesco – clãs, linhagens, grupos exógamos – ao mesmo tempo que os recoloca num conjunto mais amplo. Além disso, fundava a generalidade e a recorrência das regras que ordenam os sistemas de troca matrimonial sobre as estruturas do espírito, única base lógica capaz, segundo Lévi-Strauss, de garantir o postulado da unidade do homem na diversidade de suas produções culturais. Comprova-o a organização dualista um sistema extremamente comum no qual os membros da comunidade se dividem em duas metades que mantêm toda uma gama de relações complexas de interdependência. A instituição revela claramente os mecanismos classificatórios do parentesco – cada um se define pelo pertencimento à sua metade – e, mais do que isso, o papel crucial do princípio de reciprocidade, do qual a organização dualista aparece como a realização mais direta, mas que pode igualmente se encarnar em múltiplas outras formas de vida social. Entre todas essas formas, afirma Lévi-Strauss, há diferença de grau e não de natureza, pois sua base comum repousa sobre estruturas fundamentais do espírito humano: o princípio de reciprocidade, a exigência da regra como regra e o caráter sintético da dádiva, isto é, o fato de que a transferência consentida de um valor, de um indivíduo a outro, transforma esses em parceiros e acrescenta uma qualidade nova ao valor transferido (Lévi-Strauss, 1949, p.108). Portanto, em última instância, é na natureza do homem, em esquemas formais e universais profundamente inscritos no seu espírito, mas sempre conscientemente apreendidos, que reside o fundamento das instituições matrimoniais e, de maneira mais ampla, da própria cultura, cuja emergência é marcada pela proibição do incesto. Uma tal profissão de fé é idealista apenas em aparência, pois desde As estruturas elementares do parentesco, e ao longo de toda a sua obra, Lévi-Strauss se diz convencido de que as leis do pensamento não diferem das que ocorrem no mundo físico e na realidade social que não é senão, ela mesma, um de seus aspectos.

O título que Lévi-Strauss deu à sua direção de estudos na VIª seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE), quando retornou à França, é o mesmo que ele adotou mais tarde para a sua cadeira no Collège de France, “antropologia social”. A escolha desses termos define bem a mudança de perspectiva que ele trouxe aos estudos etnológicos. Embora empregada havia décadas nos países anglo-saxões, a expressão “antropologia social” era inusitada na França logo depois da guerra; evocadora do projeto universalista próprio às antropologias filosóficas, ela implicava também uma hierarquia dos modos e dos objetos de conhecimento, dos quais a etnografia e a etnologia são os outros termos, não segundo uma ordem de dignidade decrescente, mas em razão de sua articulação interna nas diferentes etapas do procedimento científico (cf. Lévi-Strauss, 1958, p.386-9). Analítica e descritiva, a etnografia corresponde aos primeiros estágios da pesquisa: é a pesquisa de campo e a coleta dos dados mais diversos sobre uma sociedade particular, que em geral resulta num estudo monográfico circunscrito no tempo e no espaço. A etnologia prolonga a etnografia e representa um primeiro esforço de síntese visando a generalizações suficientemente amplas num nível regional (conjunto de sociedades vizinhas que apresentam afinidades) ou temático (atenção voltada a um tipo de fenômeno ou de prática comum a numerosas sociedades), para que o recurso a fontes etnográficas secundárias seja um pré-requisito obrigatório, e a manifestação de propriedades comparáveis, o resultado esperado. Mais raramente bem-sucedida, a antropologia representa o último momento da síntese: sobre a base dos ensinamentos da etnografia e da etnologia, ela aspira a produzir um conhecimento global do homem, descobrindo os princípios que tornam inteligível a diversidade de suas produções sociais e de suas representações culturais ao longo dos séculos e através dos continentes.

Apesar, porém, do título de suas aulas na VIª seção, Lévi-Strauss tenderá a privilegiar, a partir da segunda metade dos anos 1950, a antropologia cultural em vez da antropologia social. Fiel ao seu projeto de fazer um inventário das “muralhas mentais” a partir da experiência etnográfica, e convencido de que a antropologia é em primeiro lugar uma psicologia, ele abandonará progressivamente o campo dos estudos sociológicos para se dedicar ao estudo das diferentes manifestações do pensamento mítico. De fato, nada garante que as restrições observadas nos sistemas de parentesco sejam de origem mental; elas talvez sejam apenas um reflexo, na consciência dos homens, de “certas exigências da vida social objetivadas nas instituições” (Lévi-Strauss, 1964, p.18). A mitologia não apresenta essa ambiguidade, pois não tem nenhuma função prática, e assim revela ao analista, de uma forma particularmente pura, as operações de um espírito não mais condenado a pôr em ordem uma realidade que lhe é exterior, mas livre para compor consigo mesmo, como por desdobramento. Os trabalhos sobre o “pensamento selvagem” constituem uma etapa intermediária nessa tentativa de remontar sempre mais em direção às leis inconscientes do espírito. Os sistemas de classificação e as operações rituais das sociedades sem escrita referem-se a objetos, geralmente naturais, e a suas presumidas conexões, mas tornam igualmente manifestas operações mentais (classificação, hierarquização, causalidade, homologia…) que não diferem, no fundo, das do pensamento científico, mesmo se os fenômenos aos quais se aplicam e os conhecimentos que produzem as fazem parecer muito distantes dessas. De fato, o pensamento selvagem se exerce primeiramente sobre as categorias sensíveis, desencavando e ordenando os caracteres visíveis mais significativos dos objetos para convertê-los em signos de suas propriedades ocultas. À diferença dos conceitos abstratos que a ciência utiliza, esses signos estão ainda presos às imagens das quais tiram sua existência, mas já possuem um grau suficiente de autonomia em relação a seus referentes para poder ser empregados, dentro de seu registro limitado, com fins diferentes daqueles a que se destinavam no início. A lógica do sensível é assim uma “bricolagem intelectual” que explora um pequeno repertório de relações permutáveis no interior de um conjunto que forma sistema, e tal que a modificação de um de seus elementos interessará necessariamente todos os outros. A análise estrutural, portanto, não tem apenas por ambição elucidar a lógica oculta em operação no pensamento mítico; o que ela busca, por meio do estudo do “pensamento dos selvagens”, é esclarecer aquela parte de “pensamento em estado selvagem” que cada um de nós conserva como um resíduo anterior à grande domesticação racional.

Em 1959, Claude Lévi-Strauss é eleito professor no Collège de France graças à intervenção decidida de Maurice Merleau-Ponty. Essa consagração sanciona uma obra já então reconhecida e admirada por um largo círculo de cientistas e intelectuais ao redor do mundo, mas mostra também, em sentido contrário, a resistência da universidade tradicional em acolher no seu seio pesquisas que se afastam demais da ortodoxia. A retomada do título “antropologia social” não assinala, porém, um retorno aos problemas sociológicos. O período que se inaugura será na verdade marcado pelo estudo dos mitos e resultará na publicação, escalonada em oito anos, dos quatro volumes das Mitológicas, cuja matéria é fornecida pelas aulas no Collège de France. Mais ainda que outros produtos do pensamento selvagem, os mitos parecem o fruto de uma liberdade criadora totalmente desligada das restrições do real; esclarecer suas leis de funcionamento deveria permitir, portanto, remontar mais acima na compreensão de um espírito que se toma a si mesmo como objeto, sem que os sujeitos falantes tenham consciência da maneira como ele procede. Pois cada mito, tomado separadamente, é uma história disparatada, sem verdadeira significação a não ser a lição moral que os que o contam se julgam às vezes autorizados a tirar. É que o sentido não procede do conteúdo deste ou daquele mito abusivamente privilegiado, mas da ressonância de milhares de mitos que, para além da diversidade aparente de seus conteúdos e do afastamento das populações que os elaboraram, tecem ao redor do mundo uma trama lógica em perpétua transformação e cujas múltiplas combinações desenham o campo fechado das operações do espírito humano. Assim, a análise estrutural dos mitos não poderia pretender uma exaustividade, pois, progredindo ao sabor das associações de uma cadeia sintagmática a partir de um mito de referência arbitrariamente escolhido, ela só pode aspirar a reconhecer, nessa trama imensa, matrizes de significação fragmentadas que um outro caminho talvez tivesse ignorado. Relato de um itinerário pela terra redonda dos mitos mais do que geografia universal de suas redes, as Mitológicas convidam a retomar uma viagem que o próprio Lévi-Strauss não deixou de prosseguir.

A obra científica considerável de Lévi-Strauss não deve fazer esquecer a importância de sua reflexão moral: denunciando sem trégua o empobrecimento conjunto da diversidade das culturas e das espécies naturais, ele sempre viu na antropologia um instrumento crítico dos preconceitos, sobretudo raciais, ao mesmo tempo que um meio de aplicar um humanismo “generalizado”, ou seja, não mais, como no Renascimento, limitado apenas às sociedades ocidentais, mas que leve em conta a experiência e os saberes do conjunto das sociedades humanas passadas e presentes. Longe de conduzir a uma improvável civilização mundial que abole as singularidades, esse humanismo afirma, ao contrário, que, em matéria estética e espiritual, toda criação verdadeira impõe, tanto a um indivíduo como a uma cultura, buscar nos seus particularismos um meio de melhor contrastá-los com outros valores. Aliás, a questão estética forma um fio condutor no pensamento de Lévi-Strauss, não apenas porque ele considerou as formas de expressão artísticas – ou percebidas como tais – das sociedades não ocidentais ao mesmo tempo como um desafio à racionalidade do Ocidente e um objeto legítimo de saber antropológico, mas também porque sua obra se alimenta de uma reflexão profunda sobre o papel da música e da pintura como mediações entre o sensível e o inteligível, o que faz dela uma contribuição de primeiro plano à teoria estética.

A influência da antropologia estrutural se desenvolveu de diversas maneiras segundo as épocas e o tipo de meio intelectual que atingiu. Ao terminar a guerra, os etnólogos franceses da geração de Lévi-Strauss (Soustelle, Griaule, Leroi-Gourhan) estavam envolvidos em suas próprias obras para sofrer profundamente a influência de suas ideias; assim, foi antes no estrangeiro, sobretudo na Inglaterra e na Holanda, que essas encontraram de início um eco. Na França, foram especialmente linguistas (Benveniste, Dumézil), filósofos (Koyré, Merleau-Ponty) e historiadores (Febvre, Braudel, Morazé) que, no começo dos anos 1950, souberam apreciar a originalidade das perspectivas que ele abria. A publicação em 1955 de Tristes trópicos faz um público mais amplo descobrir a originalidade do pensamento de Lévi-Strauss e a prosa de um grande escritor, e ajuda por muito tempo a suscitar vocações para a etnologia. No entanto, a antropologia estrutural stricto sensu não poderia ter outro intérprete legítimo senão o seu fundador, já que ninguém aderiu à totalidade dos postulados, das regras de método e das conclusões que definem a particularidade do empreendimento lévi-straussiano. Em contrapartida, muitos são os pesquisadores franceses que se reconhecem no que poderíamos chamar uma etnologia estruturalista, cuja homogeneidade, aliás, é mais perceptível quando vista do estrangeiro, em razão das especificidades que manifesta em relação a outras tradições antropológicas nacionais. Alguns traços a distinguem, sem que sua soma forme necessariamente um credo compartilhado: a convicção de que a antropologia tem por tarefa elucidar a variabilidade aparente dos fenômenos sociais e culturais trazendo à luz invariantes mínimos, isto é, regularidades recorrentes na organização de sistemas de relações cujo funcionamento obedece na maioria das vezes a regras inconscientes; a hipótese de que esses invariantes estão fundados tanto sobre determinações materiais (a estrutura do cérebro, as características biológicas do homem, as modalidades de sua atividade produtiva ou as propriedades físicas dos objetos do seu ambiente) quanto sobre alguns imperativos trans-históricos da vida social; enfim, a precedência dada às análises sincrônicas sobre as análises diacrônicas, não por rejeição de toda dimensão histórica, mas por recusa da posição empirista que consiste em explicar a gênese de um sistema antes de ter definido a sua estrutura.

Enfim, e por ser um método de conhecimento extensível por princípio a qualquer fenômeno social e cultural, a antropologia estrutural também soube encontrar uma audiência fora do campo tradicionalmente coberto pela etnologia. É o caso de alguns filósofos, que acolheram com satisfação um pensamento que recusava o primado da consciência e do sujeito (Merleau-Ponty, Foucault, Althusser, Deleuze). Também o de historiadores, sobretudo os da Antiguidade, os medievalistas e os especialistas em sociedades não europeias, seduzidos tanto pelo método lévi-straussiano quanto pela tentação de apreender seus respectivos objetos com o “olhar distanciado” que o etnólogo utiliza ao pesquisar um povo exótico. É verdade que historiadores como J.-P. Vernant vinham havia muito conduzindo análises inteiramente estruturais e que sua influência, combinada à de Dumézil e à de Lévi-Strauss, contribuiu de forma decisiva para uma certa “orientação estruturalista” dos estudos sobre a Antiguidade.

 

Nota

1 O presente artigo retoma explanações de trabalho anterior (Descola, 1996).

 

Referências bibliográficas

DESCOLA, P. Anthropologie structurale et ethnologie structuraliste. In: REVEL, J.; WACHTEL, N. (Org.) Une école pour les sciences sociales. De la VIe section à l’EHESS. Paris: Cerf, Éditions de l’EHESS, 1996. p.127-43. [ Links ]

LÉVI-STRAUSS, C. L’analyse structurale en linguistique et en anthropologie. Word, Journal of the Linguistic Circle of New-York, v.1, n.2, p.1-21, Aug. 1945. [ Links ]

_______. Les structures élémentaires de la parenté. Paris: PUF, 1949. [ Links ]

_______. Anthropologie structurale. Paris: Plon, 1958. [ Links ]

_______. Mythologiques. Paris: Plon, 1964. v.1: “Le cru et le cuit”. [ Links ]

 

Elementos biográficos

Claude Lévi-Strauss nasceu em Bruxelas em 28 de novembro de 1908, de pais franceses. Após estudos secundários e superiores em Paris (licenciatura em Direito, agrégation em Filosofia em 1931), é nomeado professor de Filosofia nos liceus de Mont-de-Marsan e depois Laon (1932-1934). Membro da Missão Universitária Francesa ao Brasil (com Fernand Braudel e Pierre Deffontaines, em particular), leciona Sociologia e Etnologia de 1935 a 1938 na recém-inaugurada Universidade de São Paulo (USP) e empreende várias expedições etnográficas ao Mato Grosso e à Amazônia, antes de voltar à França às vésperas da guerra, da qual participa como agente de ligação. Desmobilizado após o armistício e visado pelas leis antissemitas de Vichy, Lévi-Strauss consegue deixar a França e vai para os Estados Unidos, onde leciona na New School for Social Research de Nova York. Engajado como voluntário nas forças francesas livres e designado para a Missão Científica Francesa nos Estados Unidos, funda (com Henri Focillon, Alexandre Koyré e Jacques Maritain, entre outros), a Escola Livre de Altos Estudos de Nova York, da qual será o secretário-geral. Chamado de volta à França em 1944 pelo ministro dos Assuntos Estrangeiros, retorna aos Estados Unidos em 1945 para ocupar as funções de conselheiro cultural junto à embaixada da França. De volta à França em 1948, defende a tese de doutorado sobre As estruturas elementares do parentesco (seu mestrado trata da Vida familiar e social dos índios Nambiquara) e se dedica desde então exclusivamente a seu trabalho científico. Convidado por Lucien Febvre em 1948 para a recém-inaugurada VIª seção da École Pratique des Hautes Études (EPHE) (transformada em École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 1975), torna-se o subdiretor do Museu do Homem em 1949 e é nomeado no mesmo ano diretor de estudos na Vª seção da École Pratique des Hautes Études, cadeira de Religiões Comparadas dos Povos sem Escrita. A seguir é professor no Collège de France, na cadeira de Antropologia Social, de 1959 a 1982, ano em que se aposenta. Até essa data dirige o Laboratório de Antropologia Social, que fundou em 1960. Entra para a Academia francesa em 1973. Em 28 de novembro de 2008, completou 100 anos de idade.

 

Principais obras

1948 – La vie familiale et sociale des indiens Nambikwara. Paris: Société des Américaniste.

1949 – Les structures élémentaires de la parenté. Paris-Haia: Mouton & Co.

1950 – Introduction à l’oeuvre de Marcel Mauss. In: Marcel Mauss. Sociologie et anthropologie. Paris: PUF.

1955 – Tristes tropiques. Paris: Plon. (Collection Terre Humaine).

1958 – Anthropologie structurale. Paris: Plon.

1961 – (1952) Race et histoire. Paris: Gonthier.

1962a – La pensée sauvage. Paris: Plon.

1962b – Le totémisme aujourd’hui. Paris: PUF.

1964 – Mythologiques. Paris: Plon. v.I: “Le cru et le cuit”.

1966 – Mythologiques. Paris: Plon. v.II: “Du miel aux cendres”.

1968 – Mythologiques. Paris: Plon. v.III. “L’origine des manières de table”.

1971 – Mythologiques. Paris: Plon. v.IV: “L’homme nu”.

1973 – Anthropologie structurale deux. Paris: Plon.

1975 – La voie des masques. Genebra: Skira (reedição ampliada, Plon, 1979). 2v.

1983 – Le regard éloigné. Paris: Plon.

1984 – Paroles données. Paris: Plon.

1985 – La potière jalouse. Paris: Plon.

1991 – Histoire de Lynx. Paris: Plon.

1996 – Regarder écouter lire. Paris: Plon.

Recebido em 16.7.2009 e aceito em 21.8.2009.

Publicado em Hors Série – La Lettre du Collège de France, Claude Lévi-Strauss – Centième anniversaire, Novembre 2008. Tradução de Paulo Neves. O original em francês – “Claude Lévi-Strauss, une presentation” – encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

Philippe Descola, professor do Collège de France, titular da Cátedra de Antropologia da Natureza desde 2000, foi orientando de Lévi-Strauss. @ – descola@ehess.fr