Hans Küng na Unisinos

Na página de notícias do IHU – Instituto Humanitas Unisinos – em 23/10/2007, leio:

Religiões são ambíguas, mas têm o potencial de gerar a paz. Entrevista especial com Hans Küng

“No dia de ontem [22/10/2007], o campus da Unisinos recebeu um dos maiores teólogos da atualidade. Amável e sorridente quando se trata de conversas humanas, implacável e intransigente na hora de falar da necessidade de que todas as pessoas e sociedades se construam a partir de uma Ética Mundial que trate a todos os seres humanos como tais e se oriente por quatro princípios básicos: não matar, não mentir, não roubar e não abusar ninguém sexualmente. Trata-se do teólogo suíço Hans Küng.Aos 79 anos, Küng enfrentou, ontem, um dia cheio. Às dez horas estava chegando no Instituto Humanitas Unisinos – IHU para conversar com os jornalistas numa entrevista coletiva. Com o mesmo bom humor cativou a atenção de teólogas e teólogos, com os quais esteve reunido entre as 16 e as 18h, conversando sobre “Ciência e fé – Por uma Ética Mundial”. Ainda no mesmo dia, com o auditório Central da Unisinos lotado, Hans Küng abordou o tema “As religiões e a Ética Mundial”, respondendo, posteriormente, às perguntas de estudantes e professores da universidade. Aos/às jornalistas respondeu perguntas mais gerais sobre os grandes temas que ele aborda. Com teólogas e teólogos fez uma síntese histórica das três maiores religiões (cristianismo, Islã e judaísmo), se detendo nos diversos paradigmas que foram surgindo em cada época. Por sua vez, aos estudantes e professores explicou em detalhes a necessidade do diálogo entre as religiões e a importante contribuição que elas podem dar para um mundo de paz.

Confira amanhã uma síntese das principais ideias desenvolvidas em cada uma das três conferências proferidas pelo teólogo no Rio Grande do Sul, nos dias de ontem e hoje e, a seguir, algumas das ideias defendidas por Küng ao longo da entrevista coletiva”. Confira a entrevista…

:: Programação

As Conferências de Hans Küng no BrasilHans Küng: 1928-2021
22 de outubro:
20h – 1ª Grande Conferência: As religiões e a ética mundial – Auditório Central/Unisinos

23 de outubro:
10h – 2ª Grande Conferência: Religião e Ciência, no Instituto Goethe – Porto Alegre – Auditório.
20h – 3ª Grande Conferência – Um novo paradigma para as relações internacionais – UFPR/Paraná – Curitiba

24 de outubro
4ª Grande Conferência: Religiões mundiais e ética mundial – Universidade Católica de Brasília – UCB – Auditório de Eventos

25 de outubro
5ª Grande Conferência: Ética mundial, direitos humanos e democracia – Anexo II da Câmara dos Deputados – Brasília

6ª Grande Conferência: Religião e ciência – Universidade Cândido Mendes – Rio de Janeiro (Progr. Ciência e Religião) Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade (CAALL)/ Teatro João Theotonio/ Rua da Assembléia, 10, subsolo

26 de outubro
7ª Grande Conferência: Religiões Mundiais e ética mundial – Universidade Federal de Juiz de Fora – UFJF – MG

Projeto de Etica Mundial. Um debate

Esse é o tema de capa da edição 240 da IHU On-Line, de 22 de outubro de 2007.

Diz o Editorial da revista do Instituto Humanitas Unisinos:

“O projeto de uma Ética Mundial é a proposta do teólogo de renome internacional Hans Küng, entrevistado especial nesta edição e que vem ao Brasil, nesta semana, para debatê-lo.

Esta edição da IHU On-Line entrevistou também alguns intelectuais que falam sobre a Ética Mundial, como Denis Müller, professor da Universidade de Lausanne; Paolo D’Arcais, diretor da prestigiosa revista italiana Micromega; Paul Valadier, do Centro Sèvres de Paris; Gianni Vattimo, filósofo italiano; Alfredo Culleton, da Unisinos; e Jan Assmann, egiptólogo alemão.

Desta maneira, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU continua o debate que foi propiciado, além das páginas da sua revista, na sua página eletrônica, com a publicação de notas, textos e repercussões da proposta, especialmente no Fórum Ética Global, criado no sítio do IHU.

Trata-se de um debate que a visita de Hans Küng instiga e que continuaremos a discutir nas diversas publicações do IHU”.

Confira!

Hans Küng no Brasil

Na madrugada de 20 de outubro, Hans Küng chegou ao Brasil, diz IHU Notícias.

Nesta manhã de segunda-feira, dia 22, Hans Küng participou de uma coletiva com a imprensa. À tarde se reunirá com um grupo de Professores e Professoras de TeologiaHans Küng: 19.03.1928 - 06.04.2021 da região Sul do Brasil na sede do Instituto Humanitas Unisinos – IHU que, conjuntamente com a Universidade Federal do Paraná, promove a sua vinda ao Brasil. À noite, na Unisinos, proferirá a conferência Weltreligionen und WeltethosAs Religiões Mundiais e a Ética global.

Na manhã do dia 23, terça-feira, Hans Küng proferirá a conferência Der Ursprung des Lebens – A origem da vida – no Instituto Goethe de Porto Alegre. Na noite deste mesmo dia, ele proferirá uma conferência na Universidade Federal do Paraná em Curitiba.

Na quarta-feira, dia 24, em Brasília, Hans Küng profere a conferência Ética mundial e seus impactos na democracia, na Universidade Católica de Brasília.

Hans Küng será recebido pelo Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva.

No Rio de Janeiro, na quinta-feira, dia 25, o teólogo suíço profere uma conferência na Universidade Cândido Mendes.

Na sexta-feira, dia 26, na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais, Hans Küng receberá o título de Doutor Honoris Causa.

Leia Mais:
A Igreja deve tornar a vida das pessoas mais fácil. Entrevista de Hans Küng a Leandro Beguoci, da Folha de São Paulo – 22/10/2007
Entrevista com Hans Küng: A dignidade humana em primeiro plano, a base da moral da Ética Mundial
Teólogo suíço participa de dois eventos em Brasília

Os rumos da Teologia hoje

A Teologia precisa “reinventar seu tradicional diálogo com as outras ciências em bases muito mais árduas”, afirma Afonso Maria Ligório Soares, Presidente da Sociedade de Teologia e Ciências da Religião (SOTER).

Segundo ele, a Teologia sempre esteve em diálogo com a ciência do seu tempo, mas, para dialogar, é preciso ter claro o que é próprio de cada interlocutor. Um teólogo que não dialoga com a ciência de seu tempo nem teólogo é.

Em entrevista concedida à IHU On-Line, Afonso Maria Ligório Soares aponta para a necessidade de construir “uma teologia pluralista não confessionalmente cristã, mas transreligiosa, plurirreligiosa, macro-ecumênica ou inter-faith”.

Afonso Maria Ligório Soares é Mestre em Teologia Fundamental pela Universidade Gregoriana de Roma, Doutor em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e Pós-Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Atualmente é Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Coordenador do Departamento de Teologia e Ciências da Religião da mesma Universidade.

Confira a entrevista Para onde vamos? Os rumos da Teologia hoje, publicada pela IHU On-line, n. 237, 24 de setembro de 2007, p. 38-40.

Comblin analisa o projeto missionário de Aparecida

Uma extraordinária análise do grande mestre. Transcrevo alguns trechos para que o leitor interessado possa ver o que o espera na leitura do artigo. O texto do teólogo José Comblin pode ser lido na revista AlterInfos – América Latina/Dial (Diffusion de l’information sur l’Amérique Latine), em espanhol e português. Encontrei-o também no site do CEBI – Centro de Estudos Bíblicos.

José Comblin
El proyecto de Aparecida – 8 de agosto de 2007
O projeto de Aparecida – 13 de agosto de 2007
Projeto Ambicioso – Conferência dos Bispos Católicos – CEBI: 27 de agosto de 2007

No primeiro parágrafo diz Comblin:
“O projeto da Conferência de Aparecida é ambicioso. Trata-se de nada menos do que uma inversão radical do sistema eclesiástico. Há séculos a pastoral da Igreja está concentrada na conservação da herança do passado. Todas as instituições foram adaptadas a essa finalidade. O sistema foi instalado no século XII e desde então não mudou sensivelmente. De acordo com o projeto de Aparecida, tudo vai ser orientado para a missão. A realização prática desse projeto vai exigir o século XXI inteiro. Pois, os bispos lançaram esse projeto, mas agora o primeiro problema consiste em convencer o clero. A presente geração não está preparada para essa inversão das suas tarefas. Vai ser necessário mudar radicalmente a formação e preparar novas gerações sacerdotais bem diferentes da atual”.

Em seguida Comblin faz uma síntese histórica do projeto missionário da Igreja desde o primeiro milênio até hoje, para concluir que:
“Agora vem o projeto episcopal, que vai exigir uma mudança de mentalidade e uma mudança de comportamento. A missão será a prioridade e deixará no segundo plano a administração da pequena minoria que frequenta as paróquias. Será necessário mudar a formação sacerdotal de modo radical. Os religiosos vão ter que voltar à sua vocação original, e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras”.

A partir deste ponto, o artigo está dividido em três partes:
1. Os temas mais significativos do documento conclusivo
2. Algumas dúvidas
3. Os problemas

:: Entre os temas mais significativos, Comblin destaca:

. A escolha do tema geral de toda a Conferência: missão
“Há uns 30 anos atrás na América Latina não se falava em missão (…) A missiologia nem sequer estava nos programas de formação sacerdotal. Era a especialidade de alguns que iam dedicar-se a regiões mais despovoadas ou retiradas como a Amazônia (…) Desde então apareceram muitas experiências que se apresentaram como missionárias. A própria palavra missionário entrou no uso comum do povo que identifica já certas pessoas como missionários e missionárias. Muitos grupos adotaram o nome de missionários. Hoje em dia a consciência de uma necessidade missionária no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada cresceu muito. A V Conferência do Celam recolheu o que se preparou durante 30 anos”.

. A Conferência decidiu voltar ao método de Medellín e Puebla: o esquema ver-julgar-agir da Ação Católica
“Há uma insistência muito forte nessa continuidade (n.391-398). É difícil não descobrir nessa insistência uma discreta expressão de arrependimento e de confissão. É inegável que tinha diminuído a influência de Medellín e de Puebla nos últimos anos. Não faltavam sacerdotes que simplesmente diziam que Medellín já estava superado e já não servia mais para a Igreja atual. Por isso, convém destacar a forte insistência da Conferência de Aparecida. Essa continuidade com Medellín e Puebla manifesta-se, sobretudo, em dois temas fundamentais: a opção pelos pobres e as comunidades eclesiais de base. São justamente dois temas que foram muito atacados ou tratados com indiferença como sendo coisas do passado (…) A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (n. 397,398, 399). Não se trata de uma fórmula convencional. O texto é insistente (…) O documento conclusivo fala explicitamente das Comunidades Eclesiais de Base (n. 178-179). Esta é a parte do documento que sofreu mais correções em Roma, pois o texto dos bispos era muito mais incisivo. Assim mesmo, o texto enuncia todos os frutos positivos das Comunidades Eclesiais de Base, reconhecendo que elas foram o sinal da opção pelos pobres”.

. Os melhores capítulos do Documento são os capítulos 7 e 8 sobre a missão. Aí se acham as afirmações mais fortes
“A mudança deve afetar todas as instituições da Igreja. Começa com a reforma da paróquia. Esta terá que ser subdividia em unidades menores (372), de pequenos grupos com melhor relacionamento (…) O capítulo 8 elabora uma pastoral social que vai ser reafirmada e reforçada (401-404). O documento enumera as novas categorias de pobres que surgiram (…) nos últimos tempos. Enfim o Documento assume desafios contemporâneos: a ecologia e os problemas do meio ambiente e a pastoral urbana. O programa de pastoral urbana é muito completo (…) O desafio da pastoral urbana já foi definido por sociólogos católicos no final do século XIX. Depois de 100 anos a hierarquia assume o desafio. A Igreja católica tem ainda estruturas rurais e mentalidade rural. Na sociedade rural a paróquia identifica-se com a sociedade. Agora as coisas mudaram tanto que a imensa maioria dos cidadãos vive na margem da Igreja e somente recorre a ela no nascimento e na morte ou recorre aos Santos nas doenças”.

. A análise da realidade da América Latina
“No segundo capítulo há uma extensa apresentação da realidade de América latina. Essa exposição recorreu à ajuda de especialistas e cientistas, já que oferece informações bastante completas e pormenorizadas (…) No entanto, o Documento não chega a condenar o capitalismo e o sistema atual de globalização embora tenha mostrado todos os seus vícios. Não podia ir mais longe do que a chamada Doutrina social da Igreja, tão silenciosa nos últimos tempos”.

:: Na seção sobre as dúvidas, diz Comblin:

. Quem vai pôr esse programa em prática?
“O projeto de Aparecida é tão radical que surge uma dúvida: quem vai pôr esse programa em prática? (…) O clero atual não tem condições para aplicar esse programa (…) Pessoalmente acho que os futuros missionários capazes de mudar a fisionomia da Igreja serão leigos, missionários leigos”.

. Como vai começar a aplicação do programa de Aparecida?
“Não poderá realizar-se de cima para baixo. Não se poderá começar com um planejamento teórico. Começará com pessoas voluntárias dispostas a entrar numa aventura, desta vez com o apoio da hierarquia (…) Nos últimos anos em muitos lugares as dioceses realizaram anos missionários, missões populares, sem êxito nenhum. Tudo ficou no papel porque em lugar de partir das pessoas voluntárias que se sentiam pouco valorizadas, mais toleradas do que apoiadas na sua vocação missionária, entregaram a missão as agentes de pastoral da estrutura diocesana ou paroquial (…) Não adianta dar cursos para ensinar uma doutrina”.

.Como será a formação missionária?
“O que se entende por formação de missionários? A atual formação nos seminários ou nas faculdades de teologia é justamente o contrário. O sistema atual dá uma formação acadêmica ou com pretensões acadêmicas. No Brasil muitos deram muito valor ao reconhecimento dos estudos de seminário pelo Ministério da Educação. Ora, com certeza o Ministério da Educação não tem projetos missionários. Os certificados oficiais parecem ser garantias justamente para aqueles que não sentem uma vocação missionária muito forte. Não tenho nada contra esses certificados acadêmicos, mas isto não tem nada a ver com a missão. A formação acadêmica torna a pregação vazia, sem contato com o povo. Os padres foram preparados para ser pequenos professores de teologia. Só isso já explica muitas coisas quanto aos problemas da Igreja que foram denunciados pelo documento de Aparecida. A formação missionária inclui primeiro uma forte e radical espiritualidade concentrada na Bíblia em geral, mas sobretudo nos evangelhos, isto é, na vida terrestre de Jesus. Em segundo lugar, a formação consiste em multiplicar os encontros com pessoas, famílias, grupos. O missionário precisa aprender a estar presente em todos os lugares da vida social, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, esperança e caridade (…) A exposição da doutrina jamais converteu alguém. Jesus manifesta-se pela vida de certas pessoas e não pela doutrina. Não se forma missionários com cursos, seminários ou discussões abstratas. É preciso aprender o linguajar popular. Alguns sacerdotes ou bispos sabem fazer isso perfeitamente: são missionários que se tornaram assim pela graça de Deus, superando os esquemas de formação acadêmica que receberam. Um exemplo: frei Carlos Mesters”.

. Um problema de toda a Igreja ocidental: ela ignora o Espírito Santo
“O ensinamento do Novo Testamento é diferente, tanto na teologia de Paulo como na teologia de João (…) Uma conversão mais radical ainda seria necessária para voltar ao ensinamento do Novo Testamento sobre o Espírito”.

:: Quanto aos problemas, diz Comblin:

. Uma cristologia fraca
“A parte mais fraca do documento, a meu ver, é a cristologia. Era de se esperar. Não foi por acaso que a Notificação enviada a Jon Sobrino foi publicada na véspera da Conferência de Aparecida. Pois aqui estamos exatamente no maior problema teológico da atualidade. A questão é: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem? O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e o que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (129-135). Esta enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve interpretar-se a partir do contexto histórico em que ela se situa. Aqui não se fala do contexto histórico, como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa acima dos séculos”.

. Falta análise da estrutura eclesial latino-americana
“O texto faz uma enumeração dos aspectos positivos e negativos da Igreja latino-americana. (98-100) Não se colocam tanto os aspectos positivos como os negativos no contexto histórico. É como se tudo fosse de igual significado. Não se faz nenhuma análise das estruturas”.

. Há um surpreendente silêncio sobre os movimentos pentecostais…

. Na descrição da sociedade atual, não são devidamente consideradas as duas culturas existentes: a dos incluídos e a dos excluídos…

Comblin finaliza:
“Mesmo assim (…) nasceu uma nova consciência. O documento final constitui um motivo de renovada esperança para os velhos e oferece algumas orientações bem definidas aos jovens”.


O projeto de Aparecida

José Comblin

segunda-feira 13 de agosto de 2007, postado por Dial

3 de agosto de 2007 – O projeto da Conferência de Aparecida é ambicioso. Trata-se de nada menos do que uma inversão radical do sistema eclesiástico. Há séculos a pastoral da Igreja está concentrada na conservação da herança do passado. Todas as instituições foram adaptadas a essa finalidade. O sistema foi instalado no século XII e desde então não mudou sensivelmente. De acordo com o projeto de Aparecida, tudo vai ser orientado para a missão. A realização prática desse projeto vai exigir o século XXI inteiro. Pois, os bispos lançaram esse projeto, mas agora o primeiro problema consiste em convencer o clero. A presente geração não está preparada para essa inversão das suas tarefas. Vai ser necessário mudar radicalmente a formação e preparar novas gerações sacerdotais bem diferentes da atual.

Fazer com que toda a Igreja seja missionária é uma tarefa gigantesca. Durante o primeiro milênio a missão foi assumida pelos monges. Muitos tornaram-se bispos e deixaram a fama de fundadores de Igrejas. A Igreja era predominantemente rural. Nos séculos XI e XII criou-se o sistema das paróquias. Mas o clero paroquial era ignorante não tendo recebido nenhuma formação.

Já no século XIII s.Tomás de Aquino se queixava de que o clero não evangelizava, não era missionário. Em compensação ele mostrava que eram os Mendicantes que evangelizavam.

A mesma queixa foi repetida durante todos os séculos até hoje. A missão foi assumida pelos Mendicantes a partir do século XIII, e, depois, pelas Sociedades de sacerdotes missionários tais como a Congregação da missão de São Vicente de Paul, a Congregação do SSmo. Redentor de Sto Alfonso de Ligório e outras.

Na América Latina, a missão foi assumida em primeiro lugar pelos Franciscanos que forneceram mais da metade dos missionários. Os Dominicanos tiveram a sua atuação mais forte no século XVI. Os Carmelitas e os Agostinianos chegaram com menos missionários., assim como os Beneditinos Depois vieram várias Congregações.

No século XX essas Ordens e Congregações assumiram paróquias e com isso somente uma pequena minoria se dedicou à missão. Assim mesmo usaram métodos adaptados ao século XVII ou XVIII, mas totalmente inadequados no século XX. Dedicaram-se ao mundo rural no momento em que 80% da população latino-americana migrava para as cidades.

Agora vem o projeto episcopal, que vai exigir uma mudança de mentalidade e uma mudança de comportamento. A missão será a prioridade e deixará no segundo plano a administração da pequena minoria que freqüenta as paróquias. Será necessário mudar a formação sacerdotal de modo radical. Os religiosos vão ter que voltar à sua vocação original, e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras.

Há alguns anos atrás escrevi que dom Helder era o modelo de bispo do século XXI. Dom Helder foi missionário e tinha um excelente colaborador para todas as tarefas de administração. Sobretudo depois da sua conversão em 1955 e a nova conversão com a chegada no Recife, dom Helder foi o homem do contato pessoal, o homem que era capaz de atrair, capaz de transformar as pessoas com as quais entrava em comunicação, de modo que estas sentiam a necessidade de mudar de vida. Ele tinha a dom de despertar vocações de cristãos missionários.

1. Os temas mais significativos do documento conclusivo

Em primeiro lugar, precisamos destacar a escolha do tema geral de toda a Conferência. Há uns 30 anos atrás na América Latina não se falava em missão. Na mentalidade popular os missionários eram os padres e os religiosos e as religiosas que vinham da Europa ou da América do Norte para reforçar os quadros das Igrejas locais. Ou eram os pregadores das «Santas Missões».

Era uma herança da colônia. A missiologia nem sequer estava nos programas de formação sacerdotal. Era a especialidade de alguns que iam dedicar-se a regiões mais despovoadas ou retiradas como a Amazônia. Missionários eram os evangelizadores dos índios e a maioria deles era estrangeira.

Isto não quer dizer que não havia católicos, sacerdotes, religiosos, religiosas e, sobretudo, leigos missionários. Não sabiam que eram missionários porque os missionários não tinham visibilidade, e não tinham status definido. Eram missionários anônimos.

Desde então apareceram muitas experiências que se apresentaram como missionárias. A própria palavra missionário entrou no uso comum do povo que identifica já certas pessoas como missionários e missionárias. Muitos grupos adotaram o nome de missionários. Hoje em dia a consciência de uma necessidade missionária no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada cresceu muito. A V Conferência do Celam recolheu o que se preparou durante 30 anos.

Em segundo lugar, precisamos destacar que a Conferência decidiu voltar ao método de Medellín e Puebla, ou seja, ao esquema ver-julgar-agir da Ação católica. (n.19) Há uma insistência muito forte nessa continuidade (n.391-398). É difícil não descobrir nessa insistência uma discreta expressão de arrependimento e de confissão. É inegável que tinha diminuído a influência de Medellín e de Puebla nos últimos anos. Não faltavam sacerdotes que simplesmente diziam que Medellín já estava superado e já não servia mais para a Igreja atual. Por isso, convém destacar a forte insistência da Conferência de Aparecida.

Essa continuidade com Medellín e Puebla manifesta-se, sobretudo, em dois temas fundamentais: a opção pelos pobres e as comunidades eclesiais de base. São justamente dois temas que foram muito atacados ou tratados com indiferença como sendo coisas do passado. Tinham desaparecido no Sínodo romano de 1997 Ecclesia in América. Se bem nos textos oficiais ainda se mencionavam em certos paises a opção pelos pobres e as comunidades de base (sobretudo no Brasil), a situação geral era bem diferente. Basta lembrar o documento que um dia publicou o padre José Marins que tinha sido o apóstolo incansável das CEBs em toda América Latina. Era de uma triste amargura. No Brasil é difícil imaginar até que ponto desapareceu a opção pelos pobres e pelas comunidades de base e em vários (muitos!) países da América latina.

A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (397,398, 399). Não se trata de uma fórmula convencional. O texto é insistente: «Assumindo com nova força esta opção pelos pobres» (399). Aqui também há um certo acento de arrependimento e como uma consciência de que essa opção tinha perdido a sua urgência na pastoral da Igreja: já não era vivida como prioridade. Além disso, o texto reconhece que os pobres são sujeitos da evangelização e da promoção humana (398). A ver todo o parágrafo (391-398)

O texto vai até o ponto de usar duas vezes a palavra «libertação» que era uma palavra proibida. É verdade que a libertação está matizada pelo adjetivo ‘autêntica’, (399) ou ‘integral’. Mas ela esta aí, o que significa que doravante se pode usar de novo (385).

O documento conclusivo fala explicitamente das Comunidades Eclesiais de Base (178-179). Esta é a parte do documento que sofreu mais correções em Roma, pois o texto dos bispos era muito mais incisivo. Assim mesmo, o texto enuncia todos os frutos positivos das Comunidades Eclesiais de Base, reconhecendo que elas foram o sinal da opção pelos pobres.

Os bispos tinham escrito: «Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e à missão profética e santificadora das CEBs» no seguimento missionário de Jesus. Elas foram uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja de América latrina e do Caribe depois de Vaticano II” (194). Estas frases foram censuradas e o texto ficou mais fraco. As outras correções vão no mesmo sentido. Mas o texto dos bispos existe e pode ser consultado. Para a consciência latino-americana ele é mais significativo do que as censuras.

No texto dos bispos há o reconhecimento de que as CEBS não puderam desenvolver-se apesar do seu valor, e vários bispos fizeram restrições. Agora os bispos querem levantar essas restrições e dar vida nova a essas comunidades pobres.

Mesmo com as restrições do texto final, vale a pena ler atentamente os n. 178 e 179.

Os melhores capítulos do Documento são os capítulos 7 e 8 sobre a missão. Aí se acham as afirmações mais fortes:

§ «A Igreja precisa de uma forte comoção que a impeça de se instalar no comodismo, no estancamento e na tibieza, marginalizando os pobres do Continente» (362).

§ «A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se passe de uma pastoral de mera conservação à uma pastoral decididamente missionária» (370).

§ «A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico (367)».

A ver, sobretudo os n. 362-370.

A mudança deve afetar todas as instituições da Igreja. Começa com a reforma da paróquia. Esta terá que ser subdividia em unidades menores (372), de pequenos grupos com melhor relacionamento. Tomaremos cuidados para que essas pequenas comunidades não reproduzam a estrutura e a atividade da paróquia. Mas é muito bom que a Conferência faça alusão ao mau funcionamento da paróquia como instituição inadequada para os nossos tempos de urbanização crescente e de secularização.

O capítulo 8 elabora uma pastoral social que vai ser reafirmada e reforçada (401-404). O documento enumera as novas categorias de pobres que surgiram no desenvolveram nos últimos tempos.

Enfim o Documento assume desafios contemporâneos: a ecologia e os problemas do meio ambiente e a pastoral urbana. O programa de pastoral urbana é muito completo e define tarefas que vão exigir a colaboração de milhões de pessoas formadas. O desafio da pastoral urbana já foi definido por sociólogos católicos no final do século XIX. Depois de 100 anos a hierarquia assume o desafio. A Igreja católica tem ainda estruturas rurais e mentalidade rural. Na sociedade rural a paróquia identifica-se com a sociedade. Agora as coisas mudaram tanto que a imensa maioria dos cidadãos vive na margem da Igreja e somente recorre a ela no nascimento e na morte ou recorre aos Santos nas doenças.

No segundo capítulo há uma extensa apresentação da realidade de América latina. Essa exposição recorreu à ajuda de especialistas e científicos, já que oferece informações bastante completas e pormenorizadas. É um exemplo de colaboração entre a hierarquia e os leigos. No entanto, o Documento não chega a condenar o capitalismo e o sistema atual de globalização embora tenha mostrado todos os seus vícios. Não podia ir mais longe do que a chamada Doutrina social da Igreja, tão silenciosa nos últimos tempos.

Claro está que nos outros capítulos há também muitas coisas importantes que oferecem orientações para aplicação do projeto global. Mas um artigo não oferece espaço suficiente para comentar todas essas doutrinas. Com certeza, vão ser publicados comentários extensos do documento de Aparecida para analisar o documento inteiro.

2. Algumas dúvidas

O projeto de Aparecida é tão radical que surge uma dúvida: quem vai pôr esse programa na prática? A história mostra que todas as mudanças profundas na Igreja foram realizadas por pessoas novas, formando grupos novos e criando um novo estilo de vida, sempre a partir de uma opção de vida na pobreza. Nunca foram as lideranças estabelecidas, nem as estruturas instaladas. Estas não conseguem sair do seu papel tradicional. É o que faz pensar que o clero atual não tem condições para aplicar esse programa.

Nunca mais me esqueci daquilo que aconteceu na virada do século XII com o século XIII. Houve uma avalancha de fenômenos religiosos semelhantes à expansão pentecostal hoje em dia. Apareceram novos animadores religiosos que logo conseguiram atrair e converter multidões de católicos. Nasceu em poucos anos um mundo de comunidades que receberam vários nomes, sendo o nome de Albigenses o mais usado. Ninguém conseguia frear o movimento. O Papa Inocêncio III pediu à Ordem Cisterciense que era a mais poderosa naquele momento, que assumisse essa missão de converter os hereges, ou, pelo menos, de frear o movimento de expansão. Foi um fracasso total. Os Cistercienses vinham de mosteiros muito ricos e não sabiam falar aos pobres. Eram missionários ricos, sem capacidade missionária.

Então apareceram quase simultaneamente Francisco de Assis na Itália e Domingos de Guzmán na Espanha. Escolheram a via da pobreza, vivendo uma vida realmente evangélica. Evangelizaram as massas populares do mundo rural e das cidades. E conseguiram o que as Ordens poderosas não tinham conseguido. Deles nasceram em poucos anos os chamados franciscanos (irmãos menores) e dominicanos (irmãos pregadores) que foram milhares em pouco tempo. Eles se instalaram no meio do povo e foram missionários itinerantes, sempre à procura do povo, dos pobres Deram à Igreja uma fisionomia diferente. Eram uma estrutura diferente na qual o povo dos pobres se reconheceu e não se reconhecia nas Ordens monásticas. O clero paroquial recolheu as conversões feitas pelos Mendicantes, mas não tinha podido fazer aquela mudança necessária.

Hoje em dia, já há na Igreja cristãos semelhantes que convivem com o mundo dos pobres. Mas eles são pouco conhecidos e pouco valorizados, antes tolerados do que apoiados, porque não correspondem ao esquema oficial: não têm lugar no direito canônico. Geralmente, são leigos embora haja também bispos ou presbíteros que fizeram a sua conversão escapando-se da estrutura em que estavam metidos.

Pessoalmente acho que os futuros missionários capazes de mudar a fisionomia da Igreja serão leigos, missionários leigos.

Como é que vai começar a aplicação do programa de Aparecida ? Não poderá realizar-se de cima para baixo. Não se poderá começar com um planejamento teórico. Começará com pessoas voluntárias dispostas a entrar numa aventura, desta vez com o apoio da hierarquia. Não se lhes dará nenhum programa prévio porque o Espírito lhes mostrará o que podem fazer. Se o seu agir missionário não procede deles mesmos, não terá nenhum efeito, porque não será um testemunho humano vivo, o único que pode tocar no coração dos ouvintes.

Não adianta planejar. Ninguém planejou o nascimento ou a vida de São Francisco. Ele apareceu e o Papa o confirmou. Nos últimos anos em muitos lugares as dioceses realizaram anos missionários, missões populares, sem êxito nenhum. Tudo ficou no papel porque em lugar de partir das pessoas voluntárias que se sentiam pouco valorizadas, mais toleradas do que apoiadas na sua vocação missionária, entregaram a missão as agentes de pastoral da estrutura diocesana ou paroquial. Não pode concentrar-se na Igreja paroquial porque os pobres não freqüentam a Igreja paroquial. Eles percebem logo que a Igreja paroquial não pertence à sua cultura.

Não adianta dar cursos para ensinar uma doutrina porque o Espírito mostrará aos missionários o que devem falar e fazer. O que se pode fazer é acompanhar a espera da voz do Espírito. A hierarquia tem um papel fundamental que consiste em fazer o discernimento do Espírito a partir da tradição cristã, e estimular uma espiritualidade de espera e fidelidade ao que o Espírito diz.

Na América latina o apoio dos bispos e dos padres é fundamental. Pois, sobretudo no mundo dos pobres, os católicos são tímidos, inseguros, não confiam nas suas próprias qualidades. É preciso apoiar, aceitar erros ou fracassos temporários. Não se pode acertar de uma vez. A hierarquia terá que organizar a harmonia entre todos os carismas.

Como será a formação? O que se entende por formação de missionários? A atual formação nos seminários ou nas faculdades de teologia é justamente o contrário. O sistema atual dá uma formação acadêmica ou com pretensões acadêmicas. No Brasil muitos deram muito valor ao reconhecimento dos estudos de seminário pelo Ministério de Educação. Ora, com certeza o Ministério de Educação não tem projetos missionários.

Os certificados oficiais parecem ser garantias justamente para aqueles que não se sentem uma vocação missionária muito forte. Não tenho nada em contra desses certificados acadêmicos, mas isto não tem nada a ver com a missão. A formação acadêmica torna a pregação vazia, sem contato com o povo. Os padres foram preparados para ser pequenos professores de teologia. Só isso já explica muitas coisas quanto aos problemas da Igreja que foram denunciados pelo documento de Aparecida.

A formação missionária inclui primeiro uma forte e radical espiritualidade concentrada na Bíblia em geral, mas sobretudo nos evangelhos, isto é, na vida terrestre de Jesus.

Em segundo lugar, a formação consiste em multiplicar os encontros com pessoas, famílias, grupos. O missionário precisa aprender a estar presente em todos os lugares da vida social, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, esperança e caridade. Não se trata de se mostrar nos eventos sociais, mas de conhecer e descobrir as pessoas que são sensíveis aos apelos do Espírito, e saber dizer as palavras que marcam.

A exposição da doutrina jamais converteu alguém. Jesus manifesta-se pela vida de certas pessoas e não pela doutrina. Não se forma missionários com cursos, seminários ou discussões abstratas. É preciso aprender o linguajar popular. Alguns sacerdotes ou bispos sabem fazer isso perfeitamente: são missionários que se tornaram assim pela graça de Deus, superando os esquemas de formação acadêmica que receberam. Um exemplo: frei Carlos Mesters.

A formação por via de doutrinação veio depois da Revolução francesa para assegurar a fé dos sacerdotes que deviam aprender a resistir às heresias da época. A resistência às heresias deixou de ser uma urgência.

Não posso deixar de assinalar um problema que não é somente de Aparecida mas de toda a Igreja ocidental, dos Concílios ocidentais, dos documentos do magistério, inclusive de Vaticano II. A Igreja ocidental ignora o Espírito Santo. Claro está que o Espírito Santo é mencionado muitas vezes, também no documento de Aparecida, mas sempre para reforçar o planejamento feito pela hierarquia ou pelo clero em geral. A hierarquia define a conduta da Igreja, e, depois, pede ao Espírito Santo que realize o que foi já decidido. Ou se supõe que tudo o que procede da hierarquia, procede do Espírito Santo, o que é a mesma coisa. Não adianta rezar para que o Espírito venha iluminar a minha mente se Ele está presente no mundo e mostra com sinais claros o que Ele quer.

Os Orientais são muito sensíveis a esse aspecto da Igreja do Ocidente. Na América latina a Igreja oriental tem pouca presença e quase nenhuma influência. A Igreja latino-americana é filha do Ocidente de modo quase exclusivo.

O ensinamento do Novo Testamento é diferente, tanto na teologia de Paulo como na teologia de João. Para São Paulo a Igreja é dirigida pelos dons do Espírito Santo (1 Cor12,4-11;27-30). Ora, o primeiro dom é o dom de «apostolado» (1 Cor 12,28). Quando Paulo fala dos apóstolos, não se refere aos Doze, mas àqueles discípulos que, como ele, se tornaram missionários porque foram enviados pelo Espírito Santo.

O dom de governo vem em sétimo lugar. Em segundo lugar aparecem os profetas que são considerados com muita insistência (1 Cor 14). Esses dons estão espalhados e de repente aparecem de modo imprevisto. Ninguém preparou, nem formou Paulo como missionário. Ele recebeu um dom do Espírito Santo e mostrou um caminho verdadeiro e seguro para o povo dos discípulos que conseguiu reunir.

O Espírito Santo está presente na Igreja atual como sempre. Ele mostra os caminhos de seguimento de Jesus. A teologia de João afirma que o Espírito ensinará o alcance da vida de Jesus nas mais diversas circunstâncias. Jesus não deixou nenhum programa de apostolado, mas prometeu que o Espírito estaria presente para mostrar: de que maneira podemos atualizar a vida d’Ele nas mais diversas circunstâncias da história. Jesus não quis encerrar a história num quadro estável, mas prometeu que o Espírito estaria presente para, em cada situação, ensinar o sentido das obras e das palavras que ele realizou ou pronunciou num contexto muito determinado e limitado, na Galiléia. (Jô 14,26; 16,13-15).

Mas não convém acusar a Conferência de Aparecida, porque toda a história da Igreja do Ocidente foi assim. Uma conversão mais radical ainda seria necessária para voltar ao ensinamento do Novo Testamento sobre o Espírito.

3. Os problemas

A parte mais fraca do documento, a meu ver, é a cristologia. Era de se esperar. Não foi por acaso que a Notificação enviada a Jon Sobrino foi publicada na véspera da Conferência de Aparecida. Pois, aqui estamos exatamente no maior problema teológico da atualidade. A questão é: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem?

O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e o que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (129-135).

Esta enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve interpretar-se a partir do contexto histórico em que ela se situa. Aqui, não se fala do contexto histórico como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa encima dos séculos. Cada ser humano constrói a sua vida a partir do contexto histórico que o provoca e o lê para definir as suas opções quanto aos fins e aos meios. Ele tem um projeto, atribuindo à sua vida uma finalidade. Se Jesus foi homem, Ele devia ser assim.

Comecemos pelo anuncio de Jesus: o reino de Deus (101-128). O que foi que entenderam os camponeses de Galiléia quando Jesus lhes falava do reino de Deus? Eles estavam sofrendo o jugo pesado do reino de Roma, do reino do Imperador. De repente Jesus vem anunciar que esse reino vai cair. Era exatamente o que todos esperavam, pelo menos os pobres oprimidos pelo poder duríssimo dos Romanos. A maioria pensava que isso sucederia somente num mundo novo depois deste mundo destruído de acordo com as p;revisões apocalípticas. Jesus vem anunciar que aquilo acontecerá neste mundo. O reino de Satanás encarnado no poder romano vai cair e virá outro reino. Jesus bem sabia de todas as conversas, de todas as queixas e das esperanças do seu povo. Ele falava para essas pessoas. Compreende-se que foi acolhido e aclamado pelo povo simples da Galiléia com entusiasmo.

Depois desse anúncio Jesus teve que explicar como seria o reino de Deus e a diferença radical com o reino de César. Até os doze tiveram muita dificuldade em aceitar as explicações de Jesus.

O que não aparece no documento é que o evangelho de Jesus foi uma Boa Nova para alguns e uma Má Nova para outros. Jesus não tratou todos da mesma maneira. A Boa Nova dirige-se aos pobres e a Má Nova aos ricos (Lc 6,20-26). O evangelho de Maria foi o mesmo: «Depôs poderosos de seus tronos e a humildes exaltou. Cumulou de bens famintos e despediu ricos de mãos vazias». (Lc 1,52-53)

Na base da psicologia de Jesus estava a compaixão pelos oprimidos e a indignação contra os opressores. Porque isso não aparece num documento que pretende renovar a opção pelos pobres? Há uma contradição entre a Segunda e a Terceira parte do documento.

Em segundo lugar, não aparece o conflito com os chefes da nação, que Jesus denuncia como usurpadores e opressores. O que ocupa um lugar fundamental nos evangelhos não aparece: o conflito de Jesus com os sacerdotes, os doutores da lei, os fariseus, os grandes daquele tempo. (Mc 11-13; Mt 23; Lc 20; Jô 8) Esse conflito é o fio condutor dos evangelhos. Todos apresentam a missão de Jesus como caminho para a morte. Desde o início os chefes querem matá-lo. Jesus denuncia a dominação dos grandes associados aos Romanos e permanece fiel a essa missão da sua vida até que o matem.

A morte de Jesus foi a conseqüência da sua ação: Foi como a conclusão final do seu ministério. O documento fala de Jesus que fez o dom da sua vida. (139) Jesus foi morto porque quis ser fiel à sua missão de denunciar a corrupção dos chefes do seu povo, que impunham um jugo insuportável ao povo simples. Jesus era judeu e como judeu estava escandalizado pelo uso que os chefes faziam da Lei. Jesus queria libertar o seu povo da mentira e da dominação das elites. Com a sua interpretação da Lei as elites oprimiam o povo dos pobres.

Esse foi o projeto de Jesus. O que Ele oferece aos seus seguidores, é repetir a mesma trajetória em todas as épocas da história. Ora, no centro da missão está a perseguição a morte a morte de cruz, uma morte infamante.

O Documento faz apenas algumas alusões muito discretas à morte de Jesus sem dizer porque morreu e o significado humano dessa morte.

O texto alude aos mártires das América latina, mas sem explicar em que consistia esse martírio (140) como se o martírio fosse um valor em si, um exemplo de vida heróica. Não coloca os mártires no seu contexto histórico e por isso a morte de Jesus também não está no seu contexto histórico. E como se fosse um exemplo de virtude sem motivo, sem ligação com o seu ministério de profeta.

O documento simplesmente diz que Jesus ofereceu a sua vida. Isto pode significar muitas coisas, mas não evoca o contexto histórico e o lugar dessa morte na vida humana de Jesus..

Nos evangelhos a cruz está no centro da cristologia da vida humana de Jesus. Ela não está no centro da cristologia do Documento. Temos a impressão de que o texto quis evitar qualquer referência ao conflito com os Romanos e com as autoridades de Israel. É um evangelho sem conflito, de pura bondade. Porque um evangelho sem conflito? Para não ter que reconhecer o sentido do martírio de tantos latino-americanos crucificados na segunda parte do século? As elites querem ocultar a responsabilidade histórica que têm nesses martírios do XX. A lembrança desses martírios ofende as classes dirigentes de muitas nações .

Por isso as alusões aos mártires são muito discretas. Os mártires são apresentados com os heróis mas não se diz porque morreram. Ora um evangelho sem conflito: quem quer isso? É exatamente o evangelho que satisfaz a burguesia. Essa cristologia é burguesa na sua inspiração. Não exprime o que sentem os pobres e de que maneira eles entendem a vida e a morte de Jesus. Estamos na situação do conflito entre duas cristologias, uma que é burguesa e outra que é a dos pobres. Este conflito existe desde o início da Igreja

A mesma falta de historicidade se acha na descrição da realidade eclesial na primeira parte. O texto faz uma enumeração dos aspetos positivos e negativos da Igreja latino-americana. (98-100) Não se colocam tanto os aspetos positivos como os negativos no contexto histórico. É como se tudo fosse de igual significado.

Não se faz nenhuma análise das estruturas. O texto atribui a responsabilidade e a culpa a «alguns católicos que se afastaram do evangelho». (100 h) Os aspetos negativos são devidos a «deficiências e ambigüidades» de alguns dos membros (da Igreja). Se esse fosse o problema, não teria sido necessário reunir toda uma Conferência continental. Bastaria enviar um bom confessor a esses pouco católicos.

De modo geral, os documentos da Igreja não questionam as estruturas. Ora, com certeza os membros da Igreja não são piores agora do que antes. Os problemas não são as pessoas, mas as estruturas. Algo disso aparece implicitamente na Terceira Parte, por exemplo, quando se trata da paróquia. Mas, uma análise mais profunda seria muito útil. Um dia terá que ser feita.

Surpreendente é o silêncio quase total sobre os movimentos pentecostais. Há apenas algumas breves alusões (100 g). Um dia Harvey Cox escreveu que se tratava do fenômeno religioso mais importante do século XX e quase tão importante como a Reforma do século XVI. Não se faz nenhuma análise dessa realidade como se fosse uma coisa sem importância que não faz problema.

No entanto, o pentecostalismo está em plena expansão em todos os continentes e também na América latina. Muitos católicos deixam a Igreja para integrar uma comunidade pentecostal. Os pastores são inumeráveis. Em vários lugares do mundo dos pobres, os pentecostais já são mais numerosos do que os católicos.

Seria necessário analisar as razões desse êxito. Sem dúvida o pentecostalismo responde às aspirações de uma grande parte do mundo popular. Vale à pena estudar a mensagem, a metodologia, as formas de organização. Fechar os olhos como se o fenômeno não existisse, pode ser a política da avestruz.

Quando se faz a descrição da sociedade atual, principalmente da cultura contemporânea, muitos se esquecem de que há duas sociedades muito separadas e duas culturas bem diferentes. Há a cultura examinada pelos cientistas e filósofos, que é a cultura dos que estão incluídos na nova sociedade e a cultura dos excluídos.

Assim mesmo, a Conferência de Aparecida constitui um acontecimento imprevisto. Nasceu uma nova consciência. Os bispos recolheram as aspirações da minoria mais sensível aos sinais do tempo. O documento final constitui um motivo de renovada esperança para os velhos e oferece algumas orientações bem definidas aos jovens.

Ainda sobre o projeto de ética mundial de Hans Küng

Na edição 232 da IHU Online, revista do Instituto Humanitas Unisinos, com data de 20 de agosto de 2007, há uma entrevista com os Professores Dr. Vicente de Paulo Barretto, pesquisador da Pós-Graduação em Direito – Unisinos, e Dr. Alfredo Culleton, pesquisador da Pós-Graduação em Filosofia – Unisinos, com o título Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng.

Hoje, 23/08/2007, no evento IHU Ideias, das 17h30 às 19h00 (agora!) eles estão discutindo a importância do projeto de ética mundial de Hans Küng e a sua contribuição para a área do Direito.

Lembro, mais uma vez, que Hans Küng estará no Brasil a partir de 22 de outubro. Além da Unisinos, o teólogo de Tübingen também proferirá palestras na Universidade Federal do Paraná, em Curitiba, no Goethe-Institut de Porto Alegre, na Universidade Católica de Brasília, na Universidade Candido Mendes do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais.

 

Ética mundial e Direito: uma contribuição de Hans Küng

Discutir a importância do projeto de ética mundial de Hans Küng e a sua contribuição para a área do Direito será o objetivo dos professores da Unisinos Alfredo Culleton e Vicente Barretto, no próximo dia 23-08-2007, no evento IHU Ideias, das 17h30min às 19h, na Sala 1G119. E é sobre esse tema que eles concederam a entrevista que segue, por e-mail, à IHU On-Line.

Culleton é graduado em Filosofia pela Universidade Regional no Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutor em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Atualmente leciona nos cursos de Graduação e Mestrado em Filosofia na Unisinos. Confira uma entrevista concedida pelo filósofo à IHU On-Line na edição número 160, de 17-10-2005, junto com o historiador Nilton Mullet Pereira, intitulada Em nome de Deus: um retrato de época, comentando aspectos do filme apresentado no Ciclo de Estudos Idade Média e Cinema, promovido pelo IHU; e outra entrevista na 198ª edição, de 02-10-2006, sobre a Idade Média.

Por sua vez, Vicente de Paulo Barretto é professor no PPG em Direito da Unisinos. Livre docente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), possui graduação em Direito pela Universidade do Estado da Guanabara. Sua atividade acadêmica desenvolve-se na área do Direito, com ênfase em Filosofia do Direito. Barretto foi o idealizador e coordenador científico do primeiro Dicionário de Filosofia do Direito, em língua portuguesa, lançado pela Editora Unisinos, e sobre o qual concedeu uma entrevista para as Notícias do Dia do site do IHU de 09-05-2006.

Culetton e Barretto assinam o número 83 dos Cadernos IHU Ideias, intitulado Dimensões normativas da Bioética.

A palestra da próxima quinta-feira prepara a vinda do teólogo Hans Küng ao Brasil, de 22 a 26 de outubro de 2007. O Ciclo de Conferências com Hans Küng – Ciência e fé – Por uma ética mundial será realizado no campus da Unisinos. Em preparação a este evento, foi criado um Fórum On-line sobre o Projeto de Ética Global de Hans Küng. Para mais informações sobre o ciclo e sobre o fórum, acesse www.unisinos.br/ihu. Hans Küng também proferirá a palestra no campi da UFPR, no Goethe-Institut Porto Alegre, na Universidade Católica de Brasília, na Universidade Cândido Mendes do Rio de Janeiro e na Universidade Federal de Juiz de Fora – UFMG.

IHU On-Line – Em que sentido o projeto de ética mundial de Hans Küng pode contribuir para a área do Direito?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto – Há tempo, o Direito vem passando por uma crise decorrente da sua filiação a um modelo positivista de ver não só o direito, mas a sociedade e o mundo em geral. Trata-se de uma visão dogmática e fechada sobre si mesma que o foi empobrecendo e isolando da sociedade para a qual está a serviço. Daí que alguns grupos dentro deste universo venham buscando referências para dialogar e revisar as suas bases conceituais, filosóficas, hermenêuticas e políticas, em vistas da sua própria identidade de juristas.

IHU On-Line – É possível pensarmos num único ethos global hoje para toda a humanidade, com todas as suas disparidades? Como isso funciona no caso do Direito? É viável pensarmos num conjunto mínimo de valores morais, normas e atitudes básicas humanas comuns para todos os homens e mulheres do planeta?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto – Entendemos que seríamos capazes de formular algumas poucas e mínimas formas básicas de bem humanos; não necessariamente valores morais ou normas comuns a todos os homens, mas sim o reconhecimento de formas básicas de bem para todas as sociedades, de todos os tempos; isto denotaria uma valorização da vida humana; ou a proibição do incesto, ou que toda sociedade humana formulou algum tipo de restrição ao uso da sua sexualidade, ou que o nascimento de uma criança, salvo em casos excepcionais de catástrofes, sempre é considerado um acontecimento bom, digno de celebração. O reconhecimento deste mínimo nos daria condições de discutir políticas, propor universalizações históricas etc.

IHU On-Line – Quais são os valores que devem entrar em jogo ao pensarmos neste ethos mundial que propõe Hans Küng? Onde entram aí as religiões? Qual o papel das religiões quando falamos de valores relacionados à proposta de ética mundial?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto – Podemos destacar dois valores ou bens básicos que devem ser conjugados nesta proposta, que sejam a razoabilidade prática que toda ação humana exige de si mesma, isto é, um mínimo de ordem e justificação para as ações, e a religião, no sentido de que toda sociedade humana reconhece uma ordem que o precedeu no tempo e que tem um valor transcendental, ao qual se deve certa gratidão individual e coletiva. O valor da religião está também no fato de que, por mais dogmática que seja, ela exige justificação, busca as suas razões e nessa busca se justifica para o outro, se revisa e se abre para o outro, para a história.

IHU On-Line – Qual é a contribuição do projeto de ética mundial para a política e a democracia?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto – Uma grande contribuição é o de trazer a proposta para o debate de maneira séria e sistemática. Nisto se diferencia de outras propostas, como a do Dalai Lama , por exemplo, carregada de boas intenções, mas solta. Também há o fato de trazer para o diálogo temas antigos que, no geral, estão sendo abandonados mesmo pela sociedade civil e os partidos políticos. Nem as universidades, nem as igrejas, nem os jornais, parecem interessados em discutir de maneira séria, e não simplesmente reivindicacionista e queixosa, a questão do futuro da humanidade em sentido político. Há uma grande preocupação com o futuro ambiental e de autopreservação do planeta e uma desvalorização do político.

IHU On-Line – Como o pensamento de Hans Küng contribui para a tensão entre a política e a ética?
Alfredo Culleton e Vicente Barretto – O problema acontece quando essa tensão desaparece e pode acontecer de duas maneiras terríveis: quando ética e política se confundem e aí vêm os fundamentalismos, ou quando se privatiza a política como puro gerenciamento administrativo e a ética como guardiã do agir privado. Hans Küng estimula essa tensão no melhor sentido do termo. Ele defende essa sadia tensão entre a arte de governar a favor dos homens, sabendo que se está lidando com disputas de poder e isso é um valor, e a ética como esse referencial de valores com pretensão de universalidade que busca nortear o agir humano.

Hans Küng vem ao Brasil em outubro

Nos dias 21 a 29 de outubro de 2007 o teólogo Hans Küng, de Tübingen, Alemanha, estará no Brasil, com uma programação muito interessante.

Reconhecido como um dos maiores teólogos vivos da atualidade, ele iniciará seu giro pelo Brasil na Unisinos, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Hans Küng passará também por Porto Alegre, Curitiba, Brasília, Rio de Janeiro e Juiz de Fora.

Na mesma página do IHU foi publicada hoje uma entrevista com Manfredo Araújo de Oliveira, Doutor em Filosofia e Professor Titular da Universidade Federal do Ceará, sobre o Projeto de Ética Mundial de Hans Küng.

Manfredo atua principalmente no campo da Ética. Leia O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. Entrevista especial com Manfredo Araújo de Oliveira.

Veja a programação das atividades de Hans Küng no Brasil na página do Instituto Humanitas Unisinos (IHU). Ao clicar nos links da notícia, é possível acessar várias outras matérias sobre Hans Küng e a Fundação Ética Mundial (Stiftung Weltethos) por ele presidida.

 

O Projeto de Ética Mundial de Hans Küng. Entrevista especial com Manfredo Araújo de Oliveira

“A intuição básica que Hans Küng defende em vários livros de que a solução para os grandes problemas da humanidade implica um consenso ético mínimo é correta. Esta intuição, aliás, não é só dele. Hoje, por exemplo, Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel defendem fortemente esta idéia”, afirma Manfredo de Oliveira. “Mas, continua Manfredo de Oliveira, vejo um problema fundamental na proposta de Hans Küng”. “Ele fundamenta sua proposta ética na religião. O problema está todo aqui”.

Hans Küng, estará na Unisinos, no dia 22 de outubro, discutindo o Projeto de uma ética global. Nos dias subsequentes ele estará em Porto Alegre, Curitiba, Brasília, Rio de Janeiro e Juiz de Fora.

O Projeto de uma ética global será debatido nesta quinta-feira, pelos professores Dr. Vicente de Paulo Barretto e Dr. Alfredo Culleton, pesquisadores da Unisinos.

Manfredo Araújo de Oliveira, doutor em Filosofia, é professor titular da Universidade Federal do Ceará, atuando principalmente no campo da Ética. Entre seus livros mais recentes, citamos O Deus dos filósofos contemporâneos (Petrópolis: Vozes, 2003) e Dialética hoje: lógica, metafísica e historicidade (São Paulo: Loyola, 2004).

A seguir, a entrevista que ele concedeu para a IHU On-Line, pessoalmente, durante o Congresso da Sociedade Brasileira de Teologia e Ciencias da Religião – SOTER, realizado no mês de julho, em Belo Horizonte.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a sua apreciação, como filósofo, do projeto de ética mundial de Hans Küng?

Manfredo de Oliveira – Em primeiro lugar, acho que é uma intuição fundamental que as questões que nos desafiam hoje implicam questões éticas. Isto é uma grande coisa, porque, vivendo num mundo em que a racionalidade científica é hegemônica, as pessoas são levadas a pensar que todas as questões que marcam a vida, em última instância, são questões técnicas e, portanto, podem ser resolvidas a partir do saber científico.

A intuição básica que Hans Küng defende em vários livros de que a solução para os grandes problemas da humanidade implica um consenso ético mínimo é correta. Esta intuição, aliás, não é só dele. Hoje, por exemplo, na Alemanha, Habermas e Apel defendem fortemente esta ideia, inclusive dizendo que, por exemplo, as éticas tradicionais são construídas a partir dos medos, tendo como referência as relações privadas e a modernidade, no máximo, os estados nacionais. Quando o mundo se globalizou e a civilização tecnológica se tornou planetária, todas estas éticas se tornaram insuficientes. De modo que hoje nós precisaríamos, como diz Apel, uma macroética de solidariedade. Isto é, as questões são globais.

Uma coisa importante, no caso de Apel, que não está muito clara em Hans Küng, é que a ética em questão é necessariamente política, no sentido grego de política. Ou seja, não diz respeito apenas e nem em primeiro lugar a ações individuais, mas a princípios normativos para instituições políticas de outra ordem, a nível global. Ele sabe muito bem que os gregos diziam que a questão normativa tem sempre duas dimensões: a dimensão do individuo, que eles mesmos chamavam de ética, e a dimensão política, que é aquela que tem princípios normativos para as instituições. Dado que se compreende que a vida humana é fundamental para as instituições e essas fecham ou abrem espaço para a realização de direitos, que envolve a questão da realização da ética. Hans Küng deixa na penumbra este aspecto político, que parece ser importantíssimo.

Porém, eu vejo um problema fundamental na proposta de Hans Küng. Do ponto de vista da motivação, é claro que a referência às religiões é importante, porque elas ajudam os indivíduos não só com princípios, normativos, abstratos, mas com comunidades religiosas que procuram realizar um estilo de vida. Mas, se a questão é política, não adianta só um estilo de vida baseado em indivíduos. Ele fundamenta sua proposta ética na religião. Ele diz que só a religião é capaz de fundamentar o caráter incondicional das normas éticas, uma vez que elas se referem ao incondicionado, ou seja, Deus. Portanto, fora da religião, não há possibilidade de fundamentação do caráter incondicional dos princípios normativos.

O problema está todo aqui. Deus não é demonstrável racionalmente, mas é fruto de uma opção livre nas diversas comunidades religiosas. Portanto, Deus é puro objeto de crença. Se é um objeto de crença que fundamenta o caráter incondicional da ética, quer dizer que todas estas éticas são, no fundo, crenças. Ora, como é que, na base de puras crenças, vamos fundamentar aquilo que deve enfrentar os grandes desafios do mundo contemporâneo? Todo o problema, repito, está aqui. Hans Küng é um não-cognitivista. Ele vê como algo definitivo o questionamento das provas da existência de Deus no pensamento de Kant. Ele considera isto como resolvido, não colocando mais esta questão.

Ora, se Deus é um puro objeto de crença, então ele jamais pode ser apresentado como algo que diz respeito a todos os seres humanos, uma vez que as diversas crenças são relativas aos seus membros e são fruto estrito de uma opção inteiramente livre e que diz respeito àquele grupo. Tanto assim é que, no Brasil, por exemplo, quando questões éticas fundamentais estão em jogo, se diz que não haverá qualquer participação das religiões, pois o estado é laico. Isso tem a ver com a totalidade da população e não com um grupo específico. Portanto, um grupo específico não pode pretender que suas convicções sejam válidas para todos os demais.

IHU On-Line – Isto significa que há um problema com o conceito de religião adotado por Hans Küng?

Manfredo de Oliveira – Há um problema não só com o conceito de religião. O problema é também, e principalmente, com o conceito de ética. Esta termina sendo, em última instância, algo estritamente ligado às religiões, uma vez que o caráter incondicional dos princípios normativos só pode ser demonstrado através de uma referência a Deus. Como Deus não é um objeto de uma demonstração racional, sendo fruto de uma pura crença, em última instância, todas as éticas são fruto de uma pura crença. Não existiria uma ética propriamente reacional. Toda ética seria religiosa. E, como a religião é algo inteiramente livre, algo não válido universalmente, surge um conflito. Os problemas são universais e nós precisamos uma ética mínima universalista. As religiões são todas, por natureza, particulares, mesmo que elas proponham uma salvação de caráter universal, como é o caso da religião cristã. Esta proposição é particular, de um grupo determinado, que acolheu esta proposta, que vive uma determinada experiência religiosa e tira um conteúdo ético desta experiência.

IHU On-Line – Aqui há um problema de fundo: a particularidade das experiências religiosas. Dada esta particularidade, até que ponto é possível avançar nesta questão? Em que medida, é possível falar de algo comum entre as religiões?

Manfredo de Oliveira – Não dá para avançar, porque pressupõe, de fato, uma opção livre, não algo racional, portanto, de validade universal. A razão tem ligação com o que é comum. Os seres humanos são muito diferentes. Todas as culturas são formas específicas de concretização do ser humano e compete à razão descobrir o que é comum.

De fato, Hans Küng trata de buscar elementos que, de certa forma, são compatíveis com diversas tradições religiosas. Mas, no fundo, ele quer dizer que as grandes religiões, em última instância, conhecem princípios universalistas que são iguais para todas. Mas aí é que se encontra o problema: de novo se passa para o nível filosófico, dos grandes princípios universais. Na medida em que os princípios são religiosos, eles não são mais apenas isto: eles têm, como você disse muito bem, uma interpretação a partir da experiência religiosa específica, e então já se perde de novo o princípio da universalidade. O problema é a indecisão entre um desafio universalista e uma proposta particularista, dado que a fundamentação da ética deve ter um caráter incondicionado. Do contrário, se teria uma ética apenas hipotética. Ora, uma ética apenas hipotética não vai resolver os problemas, que são universais. E, como ele mesmo diz que para resolver todos os desafios atuais, que hoje são universais, os principais desafios da humanidade, que são a fome, a miséria, a destruição da natureza, nós precisamos de princípios que não sejam particularistas. Então, há uma contraposição entre o desafio e a proposta. E a razão desta contraposição é porque ele não admite uma demonstração universal, racional, de Deus. Deus é puramente objeto de crença e é ele que garante o caráter incondicional da ética. As duas coisas juntas resultam nisso.

IHU On-Line – Pode-se dizer, então, que universais mesmo são os problemas, e isto ainda depende do contexto em que se manifestam e de como são percebidos em cada contexto?

Manfredo de Oliveira – É claro. Eu estive, por exemplo, em certa ocasião num Congresso na Alemanha que tratava da globalização e o grupo da África insistia o tempo todo que isto não era problema deles, a tal ponto que alguns participantes reagiram achando que era burrice dos africanos. Mas não é problema de burrice, e sim da forma como as coisas são sentidas. Eles diziam que globalização é mais uma face do imperialismo dos países ricos, não queriam saber disso e seus problemas eram outros: 30% da população marcada com a AIDS, guerras tribais e outros problemas. Não estavam interessados em saber de globalização do mesmo modo que os demais participantes do evento. Era uma espécie de desabafo, uma leitura de um fenômeno que era universal, mas feita a partir da própria situação cultural, específica.

IHU On-Line – Diante destas percepções contextuais, ou de perspectivas diferentes de problemas universais, a busca de saída terá que passar pelo caminho do diálogo?

Manfredo de Oliveira – Não é possível mais fugir disso, uma vez que, tendo se internacionalizado o sistema econômico e a civilização tecnológica, todos os problemas dizem respeito a todos os povos. Não é possível mais buscar soluções parciais, como ainda se pensava no passado. Isto significa que esta é a questão universal. Claro que a ética sempre pretendeu ser universal, mas ela nunca teve antes esta universalidade quase que empírica. Agora, pela primeira vez, se pode falar no sentido estrito da palavra, de uma história mundial, uma vez que, com a ligação entre todos os povos, os acontecimentos se tornaram inclusive “on-line”. Nós sabemos das coisas que acontecem no mundo inteiro em questão de minutos ou até segundos. As transações e ligações entre todas as coisas acontecem a todo o momento, porque o sistema capitalista hoje atingiu todo o planeta, já não havendo “grotões” que estão fora do sistema. O capitalismo toca a todos, embora diferenciadamente, dependendo dos contextos diferenciados, das culturas, dos continentes. E, se toca a todos, diz respeito a todos e isto não acontece apenas no sistema econômico. Todas as grandes questões têm estas implicações.

IHU On-Line – E como filósofo, estudioso de ética, que caminhos o senhor vislumbra para a ética hoje?

Manfredo de Oliveira – Eu acho que estamos diante de um problema muito difícil. Uma saída que eu considero relativamente fácil é fazer como Apel e Habermas fazem. Eles dizem que nós temos que buscar estes princípios, mas numa perspectiva puramente formal, sem conteúdos, porque esses vêm das situações históricas concretas. Então, nós não teríamos propriamente uma ética que me diga o que é que eu devo fazer, mas apenas um procedimento de como eu devo discutir as questões éticas.

Mas isto não resolve o problema. Porque, a partir daí, nós só chegaremos a princípios abstratíssimos, que não ajudam nada na solução dos problemas concretos. Todo o princípio ético precisa ser universal. Mas quais são estes princípios?

Eu acho que é impossível minimamente demonstrar princípios que possam enfrentar as questões concretas sem enfrentar uma teoria do mundo, sem saber o que é o mundo. Por exemplo, como vou respeitar a natureza se sou incapaz de dizer o que é a natureza e em que sentido a natureza pode ter direitos? Não é por um sentido puramente formal que eu vou chegar a admitir, por exemplo, que a natureza é portadora de direitos e que não pode ser destruída sem mais.

A meu ver, o problema se encontra, sobretudo, no pensamento europeu, ainda por uma resistência que vem desde Kant , com uma enorme barreira a qualquer ontologia. Quer dizer, não se faz mais uma teoria do mundo. A filosofia virou apenas uma teoria do nosso conhecimento do mundo. Enquanto não superarmos a dicotomia entre ser humano e mundo, entre sujeito e objeto, entre teoria e realidade, que é a herança deixada pela modernidade, ainda hegemônica no pensamento atual, nós não teremos saídas. Teremos saídas, no máximo, abstratíssimas, que não são capazes de me dizer o que devo fazer frente às questões que cada um deve enfrentar. A questão fundamental da filosofia hoje é voltar a ser uma teoria da realidade, é voltar a falar do real. A partir dos valores, em primeiro lugar, ontológicos, eu posso me perguntar o que a realidade pode me dizer enquanto exigência ética. Ou seja, como aquilo que o Hans Jonas gostava tanto de dizer, o mundo e a realidade são, para mim, uma interpelação a respeitá-los. Enquanto não se chegar a compreender isto, não há saída.

IHU On-Line – Quando o senhor fala em “teoria do mundo”, qual é o seu conceito de mundo? O senhor se refere ao mundo com seus problemas concretos, o mundo enquanto experimentado por nós?

Manfredo de Oliveira – É o mundo com seus problemas concretos, o mundo não só humano, mas o mundo natural. Eu devo ser capaz de fazer com que a filosofia não seja apenas uma teoria das condições de possibilidade de conhecer o mundo, mas uma teoria do mundo, da natureza e da história humana. Sem isto eu não teria critérios para uma ética. Critérios racionais devem vir daí, da constituição das coisas.

IHU On-Line – Trata-se então de uma fidelidade ao real, mais do que teorias filosóficas?

Manfredo de Oliveira – Exatamente. O real me questiona. Enquanto a filosofia se perder numa teoria incapaz de compreender e dizer o que é o mundo, ela não vai saber dizer quais são os desafios que desta constituição do mundo provêm para a nossa ação.

TdL

Gênese, crise e desafios da Teologia da Libertação
…três ordens de fatores e (…) cinco aspectos eclesiais, combinados entre si, estão na raiz da Teologia da Libertação. Esta nasce e se desenvolve como uma reflexão crítica a partir da práxis libertadora dos cristãos. Ou seja, num primeiro momento desenrola-se em inúmeros grupos, movimentos e pastorais sociais a luta pela libertação; só depois, num segundo momento, é que se desenvolve a reflexão teórica. Esta, no decorrer do tempo torna-se simultaneamente causa e efeito de novas lutas e novas sínteses reflexivas. Instala-se o que Juan Luis Segundo irá chamar de círculo hermenêutico: a consciência sobre a realidade opressiva leva a uma prática libertadora, a qual alimenta uma reflexão teórica que, por sua vez, retroage sobre a realidade, renovando e aprofundando a ação social e política (…) Mas um dos maiores desafios que hoje se coloca à TdL é, sem dúvida, o pluralismo cultural e religioso, como uma das principais características da chamada pós-modernidade. Leia o texto completo do Pe. Alfredo J. Gonçalves na Adital – 27.06.2007.

A Teologia da Libertação está viva
A história faz-se às vezes como ondas que vão e vêm. Mas nunca se consegue destruir os ventos da libertação e a palavra profética, a coragem de enfrentar os poderes, anunciar a justiça e construir a solidariedade. Sempre há um São Francisco, um Bartolomeu de las Casas, um D. Oscar Romero, sempre surge um Santo Dias, um Chico Mendes, uma Dorothy Stang. Ou um D. Luciano Mendes de Almeida, um Adriano Hypólito, um Ivo Lorscheiter, um Helder Câmara, que foram, cada um a seu tempo, portadores do novo e protagonistas do futuro. E sempre de novo surgem os mártires do povo, muitos dos quais nunca vai se ouvir falar, mas que no chão da vida doam seu sangue por um novo céu e uma nova terra, pelo Reino. Leia o texto completo de Selvino Heck na Adital – 31.05.2007 [link quebrado: 21.08.2010 – leia sobre este mesmo tema aqui].

Vida e morte da Teologia da Libertação
A Teologia da Libertação quer pensar a fé cristã respondendo às perguntas dos aflitos. A Teologia da Libertação continua viva ao preocupar-se com os novos pobres do continente e assumir-se como uma teologia da compaixão. Leia o texto completo de Fernando Altemeyer Júnior na Adital – 14.05.2007

Leia Mais:
Anacronismo e compromisso
Conservadorismo político-religioso na Internet

Crossan: Latim, Grego ou Aramaico?

Leia o post Crossan, Back to Greek, or, Better, Aramaic? no biblioblog de Mark Goodacre, NT Blog.

 

Crossan’s latest contribution to On Faith is:

Back to Greek, or, Better, Aramaic?

. . . . In terms of Roman Catholicism, our ancestors in faith began with Aramaic, changed to Greek, then tried Latin, and finally, moved into the various vernaculars. If we wish to revert to our linguistic origins, why just to Latin, why not to Aramaic with Jesus or Greek with the New Testament? . . .

Mas não fique apenas no Crossan. Siga o link no post de Mark, para apreciar a riqueza de opiniões sobre o assunto, como, por exemplo, a de Kathleen Flake…