Quem foi Ezequiel?
Ezequiel foi um estranho personagem. Parece que ele tinha uns comportamentos inusitados, o que levou os estudiosos a terem opiniões divergentes sobre ele, tachando-o de “santo a louco”.
Pode exemplificar?
Claro. Um dia ele pegou um tijolo, gravou nele a cidade de Jerusalém, ao seu redor montou um cerco com trincheiras, aterro, acampamento, aríetes e, em seguida, deitado, imóvel, ao lado do tijolo, passou a racionar, por muitos dias, o próprio alimento e a água que bebia. Isto está em Ez 4, 1-17.
Tem mais?
Ora, se tem. Outro dia, ele pegou uma espada e com ela raspou o cabelo e a barba. Em seguida, repartiu assim os pelos em três partes: um terço foi queimado na cidade, outro terço foi cortado com a espada e o restante foi espalhado ao vento. Somente uns poucos fios foram presos à aba de sua veste. Isto está em Ez 5,1-4.
Parece esquisito mesmo. E então?
E então? Pois ele fez mais coisas estranhas. Noutra ocasião, ele, de dia, arrumou uma bagagem para viagem, e, ao anoitecer, com as mãos, abriu um buraco na parede e saiu com a carga nos ombros cobrindo o próprio rosto para não ver a terra que deixava. Isto está em Ez 12,1-20.
Acabou?
Que nada. Quando a sua mulher morreu, ele não lamentou a perda e nem ficou de luto, embora ela fosse, como ele mesmo diz, o desejo de seus olhos. E, a partir desta data, o profeta ficou mudo, não abrindo mais sua boca. Isto está em Ez 24, 15-27.
Quando e onde atuou Ezequiel?
Muitos textos do livro de Ezequiel são datados. E cerca de uma dúzia destas datas são consideradas seguras, o que nos leva a situar sua atuação de 593 a 571 a.C. entre os exilados judaítas da Babilônia. Filho de um sacerdote, ele seria jovem quando foi enviado para a Babilônia na primeira etapa da deportação, em 597 a.C., tendo se tornado profeta somente alguns anos depois.
Pode-se dizer, a partir destes e de outros textos, que Ezequiel é, para os pesquisadores, um controvertido personagem?
Sacerdote, viúvo, profeta, poeta, teólogo, ele já foi chamado de tudo por aí, desde maluco até uma das maiores figuras espirituais de todos os tempos. Na opinião de alguns especialistas, que tentaram diagnosticar Ezequiel, ele seria portador de alguma doença mental. Nestes estranhos comportamentos de Ezequiel alguns viram, do século XIX para cá, sintomas de catalepsia, catatonia, paranoia, esquizofrenia, psicose, delírios de perseguição e grandeza, fantasias de castração, regressão sexual inconsciente… embora muitos deles concluam que, mesmo sendo um doente mental, Ezequiel foi uma importante voz profética entre os exilados judaítas na Babilônia.
Quais autores chegaram a este tipo de conclusão?
Bem, estas são conclusões de autores como August Klostermann (1877), Edwin C. Broome (1946), Karl Jaspers (1947) e David J. Halperin (1993), para citar alguns entre os mais discutidos.
É possível descrever com mais detalhes o pensamento de algum destes autores?
Claro. Um bom exemplo é o estudo de David J. Halperin. O livro é Seeking Ezekiel: Text and Psychology. University Park, PA: Penn State University Press, 1993, 276 p. – ISBN 9780271009476.
Na Introdução, leio:
Sem dúvida, o livro de Ezequiel é poderoso. No entanto, podemos estar inclinados a ver o seu poder como o da demência e a aplicar a Ezequiel as palavras de outro profeta: “O profeta é tolo, o inspirado é louco” (Os 9,7).
“Louco” é um diagnóstico vago. Em 1946 Edwin C. Broome tentou melhorá-lo. Ele aceitou a afirmação do livro de que era obra do profeta Ezequiel, sacerdote de Jerusalém, mais tarde na Babilônia – e supôs que as estranhezas do livro eram as estranhezas do Ezequiel histórico. Ele abordou essas peculiaridades a partir de uma perspectiva psicanalítica e as unificou com um diagnóstico clínico. Elas eram, argumentou ele, sintomas de esquizofrenia paranoide.
A resposta acadêmica ao artigo de Broome foi menos do que entusiasmada. O biblista Carl Gordon Howie e o psiquiatra Ned H. Cassem prepararam refutações completas das propostas de Broome. A maioria o ignorou totalmente ou deu como certo que Howie e Cassem o haviam demolido. Bernhard Lang, escrevendo em 1981, resumiu o consenso: “O trabalho de Broome não requer mais refutações. Deve ser notado mais como uma curiosidade do que como uma contribuição séria para a compreensão do profeta”.
Este consenso está errado. O artigo de Broome contém de fato muitas coisas que podem ser refutadas e devem ser descartadas. Seu diagnóstico arrogante, mesmo que correto, oferece pouca ajuda na compreensão de Ezequiel ou de seu livro. Mas ele também oferece insights importantes e provocativos que abrem as portas para investigações frutíferas sobre o que está por trás do texto. Rejeitar o artigo de Broome como uma “curiosidade” é bater estas portas, desnecessariamente, na cara dos estudos.
Proponho reabrir as portas de Broome e avançar, em segurança, o mais longe que puder para o que está além. A peça central do meu argumento será um reexame de uma das sugestões de Broome: que o ato de abrir uma fenda na parede, descrito em Ez 8,7-12, é uma representação simbólica da relação sexual. Acredito que esta interpretação está correta e que pode e deve ser desenvolvida consideravelmente mais do que Broome.
Mas antes disso resumo o argumento de Broome e examino as respostas de Howie, Cassem, Stephen Garfinkel, Ellen F. Davis e (brevemente) outros. O objetivo do capítulo 1 é em parte polêmico. Comprometo-me a defender Broome, o que envolverá atacar os seus atacantes. Mas a controvérsia em torno do artigo de Broome também servirá como introdução a questões metodológicas mais amplas. Nem todos admitirão que os métodos psicanalíticos possam ser legitimamente aplicados aos textos bíblicos. O ceticismo neste ponto e a incapacidade de Broome em antecipá-lo e em responder a ele são responsáveis por grande parte do ridículo e da negligência que Broome recebeu. Se espero que uma abordagem psicanalítica da Bíblia seja levada a sério, não posso fugir às questões metodológicas que ela levanta.
Se o contexto literário de Ez 8,7-12 são os capítulos 8-11, seu contexto psíquico se estende a outras partes do livro. No Capítulo 4 examino esse contexto. Sugiro que oculto por trás das imagens de Ez 8,7-12 está o mesmo padrão – violenta aversão à sexualidade feminina – que é expresso abertamente nos capítulos 16 e 23 e mais secretamente no comportamento de Ezequiel por ocasião da morte de sua esposa, em Ez 24,15-24. O exame destas passagens confirmará minha interpretação de Ez 8,7-12, assim como Ez 8,7-12 ajuda a explicar a horrível intensidade dos capítulos 16 e 23.
Este material nos permitirá prosseguir nossa investigação em uma nova direção. Acredito poder detectar algo mais, algo ainda mais primário e importante, por trás do ódio relativamente direto de Ezequiel pela mulher – uma ambivalência profunda e carregada de erotismo em relação a uma figura masculina dominante. Ezequiel, defendo, tendia a deslocar os elementos positivos da sua ambivalência para o seu Deus, e os seus elementos negativos para outros homens reais ou imaginários. No entanto, ele não conseguiu levar a cabo esta divisão com absoluta consistência. A compreensão deste fato nos permitirá explicar alguns dos elementos mais estranhos e teologicamente mais perturbadores do livro de Ezequiel. Meu argumento até este ponto sugerirá uma nova solução para o velho problema da mudez de Ezequiel, o que explicará por que sua mudez cessou com a destruição do Templo. Elaborarei essa solução em meu capítulo final.
Na conclusão do livro de David J. Halperin, leio:
O argumento central deste livro reside na correlação de Ezequiel 8,7-12, capítulos 16 e 23, e 24,15-27. Essas passagens expressam, de três modos distintos, a mesma postura emocional de seu autor; ou seja, pavor e aversão à sexualidade feminina.
Esta posição é expressa quase abertamente, coberta apenas por um fino véu de alegoria histórica, nos capítulos 16 e 23. Em 8,7-12, é transmitida na linguagem simbólica dos sonhos. Ela se manifesta em 24,15-27, no comportamento autodescrito do autor. Estes três modos de expressão reforçam-se mutuamente, e cada uma das passagens relevantes confirma a interpretação que dei das outras. Eles formam, juntos, uma corda tripla que não se rompe facilmente.
Meu argumento pressupõe que o relato de Ezequiel sobre seu próprio comportamento em 24,15-27 é verdadeiro e preciso. Pressupõe, também, que 8,7-12 deve ser lido como um artefato genuíno de uma experiência alucinatória, que transmite os processos inconscientes do autor de forma tão autêntica (e tão enigmática) quanto nossos sonhos transmitem os nossos. Ambas as premissas podem ser e foram questionadas. Nenhum dos dois, entretanto, é de forma alguma implausível. O ganho exegético que vimos resultar deles justifica a nossa adoção deles.
Estamos, consequentemente, justificados em ler psicologicamente o livro de Ezequiel. Ou seja, podemos permitir-nos compreendê-lo como um documento criado por um ser não menos humano que nós, um documento não menos expressivo de sua humanidade individual do que nossos escritos expressam os nossos. Podemos supor que Ezequiel foi governado, não menos que nós, por uma realidade interior obstinadamente mantida. Uma vez que tenhamos levado em conta as diferenças históricas e culturais, podemos corajosamente procurar reconhecer e compreender a sua realidade interior com base no que sabemos da nossa.
Quem é David J. Halperin?
David J. Halperin foi professor de Estudos Religiosos na Universidade da Carolina do Norte, USA, e autor de The Faces of the Chariot: Early Jewish Responses to Ezekiel’s Vision (1988) e The Merkabah in Rabbinic Literature (1980). Ele diz de si mesmo no Prefácio de Seeking Ezekiel: “Não sou psicanalista, nem tenho uma educação formal em psicologia. Minha formação e especialização são em filologia e história, tendo como temas principais a língua hebraica e a história e literatura do judaísmo antigo. Meu conhecimento da psicanálise deriva da leitura das obras de Freud e de seus seguidores, de conversas e correspondência com profissionais de psiquiatria e da experiência pessoal como paciente analítico”.
Mas este tipo de análise ainda é costumeira ou não?
O que se nota é que este tipo de análise sofreu forte retração nos últimos anos. Isto se deve a vários fatores, mas é mais do que evidente de que qualquer estudo psicológico de um homem morto há cerca de dois mil e seiscentos anos enfrenta formidáveis dificuldades metodológicas. Por isso, alguns sugerem que, ao invés de especularmos sobre hipotéticos traumas sofridos por Ezequiel em sua infância, seria bem mais sensato analisar o seu comportamento a partir da categoria de transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), considerando as suas experiências de exílio e destruição de Jerusalém. O fato é que nada se ganha com a análise psicológica de personalidades bíblicas quando o trabalho exegético básico não é feito. E muitos não o fazem. E há, sim, críticos deste tipo de abordagem que chegam a dizer que tais diagnósticos de personalidades bíblicas nos dizem mais sobre seus autores do que sobre os personagens bíblicos.
Você pode citar um autor crítico deste tipo de abordagem?
Vou citar Christopher C. H. Cook, no artigo Psychiatry in scripture: sacred texts and psychopathology, publicado em The Psychiatrist 36, 2012, p. 225-229, que toma como referência de análise psiquiátrica de Ezequiel três artigos de G. Stein, publicados no British Journal of Psychiatry entre 2008 e 2010. Christopher C. H. Cook é Professor Pesquisador no Departamento de Teologia e Religião da Durham University, Reino Unido.
Ele diz, por exemplo:
Faltam evidências robustas de que Ezequiel sofria de esquizofrenia. G. Stein não explora diagnósticos diferenciais ou evidências de que os textos antigos se referem a uma forma de profecia que era entendida como cultural e religiosamente normal, mesmo que extraordinariamente desafiadora e dramática. Ele não examina se os textos foram realmente escritos por Ezequiel ou se fornecem um relato confiável no qual basear uma avaliação da psicopatologia. Ele não explora suas interpretações do texto no contexto histórico, teológico, literário e cultural da sociedade em que se originaram. Muitas das evidências oferecidas em apoio ao diagnóstico baseiam-se em interpretações errôneas dos textos dos quais foram extraídas.
Evidências psiquiátricas críticas para qualquer conclusão específica estão praticamente ausentes. Os estudos no campo dos estudos bíblicos sugeririam que fosse exercida extrema cautela no que diz respeito a interpretações simplistas de textos específicos como prova dos pensamentos, experiências ou comportamentos reais do profeta. Isto é especialmente verdade quando tais evidências são utilizadas para apoiar conclusões estranhas ao propósito teológico original para o qual o texto foi escrito e anacrônicas às suas tradições culturais e literárias.
A psiquiatria está orientada para a interpretação dos pensamentos, experiências e comportamentos humanos com o propósito específico de diagnosticar e tratar transtornos mentais. Só pode fornecer interpretações fiáveis quando o contexto cultural é levado em consideração. Quando os textos históricos fornecem a evidência diagnóstica, é ainda necessário considerar os recursos dos estudos acadêmicos associados ao estudo desses textos. Não fazer isso deixa aberto o perigo de se chegar a conclusões que não resistem ao escrutínio crítico e que podem levar as pessoas religiosas, especialmente os usuários de serviços de saúde mental, a concluir que a psiquiatria é antipática à busca espiritual ou religiosa e que as experiências e os textos associados a esta busca serão interpretados pelos psiquiatras como evidência de patologia (…).
O livro de Ezequiel é um texto considerado revelador da verdade espiritual e religiosa em pelo menos duas das principais tradições religiosas do mundo. Isto não significa que não possa ser examinado criticamente, e a riqueza de estudos associados a este livro fornece testemunho da disposição judaica e cristã de fazer perguntas difíceis sobre o texto e sua tradição. No entanto, usar a psiquiatria para examiná-la acriticamente e para chegar a conclusões de tipo estritamente psiquiátrico é um desserviço à psiquiatria e à religião.
Autores e obras citadas
BROOME, E. C. Ezekiel’s Abnormal Personality. Journal of Biblical Literature vol. 65 n. 3, 1946, p. 277-292.
CASSEM, N. H. Ezekiel’s Psychotic Personality: Reservations on the Use of the Couch for Biblical Personalities. In: CLIFFORD, R. J.; MACRAE, G. W. (eds.)The Word in the World: Essays in Honor of Frederick L. Moriarty, S.J. Cambridge, Mass.: Weston College Press, 1973, p. 59-70.
COOK, C. C. H. Psychiatry in scripture: sacred texts and psychopathology. The Psychiatrist 36, 2012, p. 225-229.
DAVIS, E. F. Swallowing the Scroll: Textuality and the Dynamics of Discourse in Ezekiel’s Prophecy. Sheffield: Almond Press, 1989.
GARFINKEL, S. Another Model for Ezekiel’s Abnormalities. Journal of the Ancient Near Eastern Society 19, 1989, p. 39-50.
HALPERIN, D. J. Seeking Ezekiel: Text and Psychology. University Park, PA: Penn State University Press, 1993.
HOWIE, C. G. The Date and Composition of Ezekiel. Philadelphia: Society of Biblical Literature, 1950.
JASPERS, K. Der Prophet Ezechiel: Eine pathographische Studie. In: VV. AA. Arbeiten zur Psychiatrie, Neurologie und ihrem Grenzgebieten. Heidelberg: H. Kranz, Scherer, Willsbach, 1947, p. 77-85.
KLOSTERMANN, A. Ezechiel: Ein Beitrag zu besserer Wiirdigung seiner Person und seiner Schrift. Theologische Studien und Kritiken 50, 1877, p. 391-439.
LANG, B. Ezechiel: Der Prophet und das Buch. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1981.