Sobre Gn 3,1-24

A maçã do paraíso. Sobre Gn 3,1-24 – Por Johan Konings

Resumo

Diante da generalizada identificação do “pecado do paraíso” (e do pecado em geral) com o intercurso sexual (inclusive legítimo), convém uma leitura atenta de Gn 2–3 noEstudos Bíblicos - Dossiê: Gênesis a Apocalipse sem fundamentalismos. v. 35, n. 140, 2018. seu contexto canônico, isto é, em continuidade com a criação de homem e mulher como imagem e semelhança de Deus, conforme Gn 1 (prescindindo da diacronia da gênese literária). Uma leitura narrativa, mesmo sem análise aprofundada, evidencia que se trata do querer ser igual a Deus de um modo que não é o de Gn 1,27. A continuação da história do paraíso nas outras narrativas de Gn 1–11 confirma isso.

Recomendo a leitura deste excelente artigo.

Konings começa assim:

Se perguntássemos ao povo em geral o que foi o pecado de Adão e Eva, creio que boa parte responderia: o sexo. A maçã virou símbolo do desejo, não do desejo puro e angelical de ver a Deus, mas da concupiscência da “carne”. A expressão “fruto proibido” tornou-se sinônimo de intercurso sexual. A maçã mordida é usada como logotipo por motéis e marcas de computadores, para sugerir o desejo por excelência. Do ponto de vista humorístico, isso é até divertido, mas ao refletir um pouco mais sentimos com amargor que o ato mais fundamental e indispensável (pelo menos até pouco tempo atrás) para a subsistência do gênero humano é, sem mais, considerado como transgressão do mandamento de Deus – do mesmo Deus que ordenou: “Crescei e multiplicai-vos”. Sobretudo no momento atual, em que uma considerável parte da sociedade exime qualquer atividade sexual de qualquer culpa e, por outro lado, a própria moral católica reconhece a nobreza do ato sexual quando exercido no quadro da vocação matrimonial, não se pode permitir que continue pairando sobre o sexo um escuso sentimento de culpa, que só produz repressão e hipocrisia – ou seu antípoda, a libertinagem.

Pode-se ilustrar essa situação insana por exemplos da experiência pastoral. Na proximidade da Páscoa há ainda certo número de católicos que se sentem obrigados a fazer uma confissão pessoal – como “desobriga”. Vez por vez o confessor ouve: “Eu não tenho pecado, mas devo confessar para receber a hóstia”. Em tais casos, geralmente, faço uma pergunta sobre a ética social… Um dia perguntei a um “penitente sem pecado”, trajado de terno escuro e gravata, quanto ele pagava à empregada. O homem não respondeu, mas saiu furioso do confessionário.

Não pretendo aqui entrar em detalhes de moral sexual, pois os próprios moralistas estão pagando muitos pecados ao tentarem destrinchar esse assunto. A respeito da maçã, há outras interpretações que não a sexual – mas talvez menos populares. A opinião “sensata” é de que o pecado do paraíso foi a desobediência diante de Deus, e por causa dessa desobediência a humanidade sofre as consequências. A criação, que era tão boa (Gn 1!), torna-se um lugar de dor e sofrimento. A vida, que era para ser eterna, torna-se brevidade: “Os dias da nossa vida sobem a setenta anos ou, em havendo vigor, a oitenta; neste caso, o melhor deles é canseira e enfado, porque tudo passa rapidamente, e nós voamos” (Sl 90,10). Tal interpretação é coerente com a doutrina clássica do pecado original, que se baseia no texto de Rm 5,12.19: “Como por um só homem o pecado entrou no mundo e, por meio do pecado, a morte […] Como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos”.

Além dessa interpretação clássica, há outras, demais para serem examinadas uma por uma. Aponto apenas as principais. A maçã seria o símbolo do interdito que é necessário para que o ser humano reconheça seus limites e assim se torne sociável, suportável para seus semelhantes e para si mesmo, pois a ilusão da onipotência torna o homem insustentável, insuportável a si mesmo e aos outros. Na linha da antropologia cultural pode-se até dizer que a instituição da proibição ou interdito (o tabu) é a base da humanização. A exegese judaica identifica a árvore da vida no paraíso com a Torá, que dá vida, mas, como veremos, existe um problema pelo fato de se falar em duas árvores (Gn 3,6.22). Voltaremos, depois, a ver a relação entre a árvore da vida e a árvore da proibição.

Uma leitura “emancipacionista” da Bíblia vai mais longe ainda. A narrativa do paraíso significaria que, pela transgressão – comer da maçã –, os olhos do ser humano se abriram. As dificuldades da vida são o preço que ele paga pela emancipação de sua razão. A transgressão seria, assim, antes um bem do que um mal. É uma leitura “prometeica”, que merece ser levada em consideração.

Vamos agora ao texto (continua).

Johan Konings é Doutor em Teologia (Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica), Mestre em Teologia (Katholieke Universiteit Leuven, Bélgica). Professor da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), Belo Horizonte.

Fonte: Johan Konings. (2021). A maçã do paraíso. Sobre Gn 3,1-24. Estudos Bíblicos, 35(140), 440–450. Recuperado de https://revista.abib.org.br/EB/article/view/45

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2 comentários em “Sobre Gn 3,1-24”

  1. Bem interessante o texto do teólogo Johan Konings. Li sofregamente o texto.

    Dentro do quadro racional, o texto do Gênesis ainda se cinge à historiografia mítica do ser humano. Na conjuntura pré-racional de consciência humana, vinga a face mais visível do “fundamentalismo”, também é o Gênesis a historiografia do ser humano, mas como nesta consciência Gênesis compõe o “Livro de Deus”, é verdade absoluta acima da Ciência.

    Dentro de determinado prisma, o apóstolo Paulo vive desacompanhado quase sempre dos teólogos de diversos nichos, pois ele transcende inclusive o estágio racional de consciência. Não por acaso, ele ao pontuar sobre o capítulo 1º de Gênesis, declara (as citações bíblicas são de João Ferreira de Almeida, Revista e Atualizada):

    “2Coríntios 4:6 Porque Deus, que disse: Das trevas resplandecerá a luz, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus, na face de Cristo.”

    Ainda segundo esse prisma, o cap. 1º de Gn, até cap. 2:4a, dentro de determinada filosofia, é texto de movimento ascendente de consciência, enquanto na sequência se retrata o movimento descendente de consciência. Um é o céu e terra da consciência descendente, e o novo céu e nova terra, onde vige a Jerusalém celeste, é o estágio superior da consciência ascendente.

    Por meio de um só “Adam”, o pecado entrou no “mundo”. É “Adam” feito alma vivente. Por meio de último “Adam”, viceja o espírito vivificante, isto é, é ab-rogado o pecado. Nem todos conhecem o último “Adam”, como Paulo conheceu, nem teve a Jerusalém celeste como ele ainda conheceu:

    “Gálatas 4:26 Mas a Jerusalém lá de cima é livre, a qual é nossa mãe”

    No estágio avançado de consciência, conhece-se a ressurreição:

    “Efésios 2:6 e, juntamente com ele, nos ressuscitou, e nos fez assentar nos lugares celestiais em Cristo Jesus;”

    Dentro do prisma aventado, o panorama da teologia paulina excede o quadro meramente racional de construção teológica, pois nesta, a figura da mensagem bíblica se faz e se cinge ainda na natureza histórica.

    Portanto, para a visão de consciência mítica-literal, que é sede por excelência do denominado “fundamentalismo”, a teologia paulina, no prisma postulado, é nicho muito mais distante de entendimento do que ao da sede racional de consciência.

  2. Um complemento: determinada filosofia atesta a corrente descendente de consciência a partir do cap. 2:4b de Gênesis, como dito no comentário anterior. Todavia, filio-me por ora à corrente que consagra todo o itinerário do Gênesis na linha ascendente. O cap. 1 de Gênesis ao cap. 2:4a é estágio posterior de ascendência ao cap. 2:4b e imediatamente sucessivos. Portanto, do cap. 2:4b e seguintes não é sequência do cap. 1. Certos estudiosos veem redação de diferenciada época desses capítulos, no que eu concordo.

    Na teologia paulina, primeiro ocorre o corpo psíquico natural, ou Adam feito de alma vivente; na sequência, surge o Adam de espírito vivificante. No dizer do apóstolo:

    “1 Coríntios 15:44 Semeia-se corpo natural, ressuscita corpo espiritual. Se há corpo natural, há também corpo espiritual.
    1 Coríntios 15:46 Mas não é primeiro o espiritual, e sim o natural; depois, o espiritual.”

    Isso vem ao encontro das pesquisas da ciência psicológica desenvolvimentista, que definem o desenvolvimento do ego num primeiro plano, e na sequência o transcender desse plano.

    Numa escola de pensamento, o ego, ou o corpo natural paulino, é estágio que Paulo denomina também de carnal. O estágio de despertar espiritual, posterior ao estágio do ego, ou do “eu” de sobrevivência, está compreendido, de forma concisa, no cap. 1 ao 2:4a de Gênesis, em níveis sucessivos de evolução, até alcançar o “sábado”. Mas claro que Gênesis não se cinge somente no preâmbulo ao enredo do despertar espiritual, todo o seu corpo é figura dele, porém abarca o surgimento anterior do ego.

    Nesse estágios de desenvolvimento referidos no preâmbulo de Gênesis, Adam é feito à imagem de Elohîms (Deus), não a dicotomia do conceito de “deus” e “ser humano” distintos, próprio ainda do raciocínio carnal. Felizmente o contingente de pessoas de consciência espiritual está se multiplicando neste planeta Terra, o que é alvissareiro, próprio da evolução da humanidade, um salto monumental na história. Esses já não “vestem” estofos de lã e linho juntamente (Deuteronômio 22:11).

    Sim, concordo, Gênesis e outros livros dão azo a vários galhos de interpretação, e sua elucidação é de difícil solução, sendo que escolas diferentes de pensamento se digladiarão por muito tempo ainda. Não tenho a pedra sobre o assunto, longe disso, porém entendo que a Bíblia teve e tem poucos intérpretes que se deram conta do seu campo próprio de conhecimento. Muitos estudos são complementares num outro plano, e são muito bem-vindos.

    Todavia, há intérpretes fabulosos que, alegoricamente, tangenciam o cerne bíblico, os quais o estudo tradicional ignora. Entendo que surgirão pesquisas que se debruçarão e desvelarão a correspondência entre as recentes conquistas da Psicologia desenvolvimentista e a sapiência dos antigos sábios que compuseram as escrituras bíblicas, assim como está a ocorrer com a sabedoria e práticas de escrituras místicas de outras tradições.

    Agradeço, de coração, ao Airton, por acolher opiniões tão inusitadas, creio, como esta.

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