Caim, de Saramago, por Eduardo Hoornaert

Acabei de ler uma instigante resenha do romance Caim de Saramago.

Escrita por Eduardo Hoornaert, foi publicada pela REB 70, n. 278, abril de 2010, p. 515-516.

Esplendidamente escrito e demonstrando um domínio insuperável da língua portuguesa, o novo romance de José Saramago, prêmio nobel de literatura, intitulado Caim e recentemente editado pela Companhia das Letras (São Paulo, 2009), vem nos surpreender. Caim, irmão de Abel, é inimigo jurado de senhor deus. Condenado a viajar do futuro ao passado, das terras do amanhã às terras de ontem, sem nunca encontrar repouso, Caim vê por todo lado maus feitos de senhor deus: por que rejeitar as ofertas de Caim e aceitar as de Abel, se ambos agiram de boa vontade? Por que condenar com penas tão cruéis duas mulheres, Eva e a mulher de Lot, que agem por curiosidade, ou seja, por inteligência? Por que ordenar a Abraão matar seu próprio filho? Haverá ordem mais cruel e mais sem sentido? Por que lançar fogo e enxofre do céu sobre as crianças inocentes de Sodoma e Gomorra? Não são elas em maior número que as dez almas sem culpa que senhor deus exigiu para não exterminar as cidades e toda a planície? O que as crianças têm a ver com a perversidade de seus pais? Por que contemplar com benevolência, do alto do Sinai, a matança de três mil pessoas, só porque alguns dançaram em torno de uma imagem, no acampamento do povo no deserto, já que toda criação é feita à imagem e semelhança de deus? Por que vingar de forma tão cruel a matança de 17 soldados israelitas pelas forças de Madian, a ponto de ordenar o extermínio da cidade? E o que dizer das crueldades cometidas por Josué e seu exército na destruição total de Jericó, por ordem do senhor? A lista é interminável. Caim conclui: as ordens do senhor, além de incompreensíveis, são maldosas. O senhor deus só quer a derrota dos homens e Caim resolve combatê-lo de todas as forças. O romance termina dizendo que o senhor deus e sua criatura inconformada continuam discutindo pelos séculos afora: a única coisa que se sabe de ciência certa é que continuaram a discutir e que a discutir estão ainda (p. 172).

Que discussão é essa? Eis o que constitui o segredo do romance. O que se pode dizer que Saramago não tem a intenção de escandalizar seus (suas) leitores(as) com disparates levianos e incongruentes contra os textos bíblicos, mas pretende lutar contra uma apresentação banalizada da bíblia, que tira o sentido do texto, mas que infelizmente constitui a leitura comum nos dias em que vivemos. A estranheza que esse romance provoca em nós mostra que não conhecemos a bíblia, mas estamos presos(as) a uma apresentação da literatura bíblica feita durante séculos pelas igrejas, por meio de sermões e do catecismo. O(a) leitor(a) atento(a) descobrirá logo que Saramago não comenta textos bíblicos. O romance todo só tem uma citação (da carta aos hebreus, 11, 4) no pórtico de entrada. Pelo resto, Saramago não comenta a bíblia, ele se refere o tempo todo ao que se pode chamar de apresentação catequética da bíblia, ou seja, à ‘história sagrada’. Seu romance é uma crítica ácida e corrosiva da ‘história sagrada’ tal qual é intensamente difundida e universalmente conhecida, pois ela retira o conteúdo vivo das narrativas bíblicas e joga a carcaça morta ao povo, ou seja, um amontoado de histórias incompreensíveis e estranhas, como a história de um deus que resolve destruir a humanidade de vez (o dilúvio), manda fogo e enxofre sobre uma cidade onde, ao que parece, se pratica a homossexualidade (Sodoma e Gomorra), manda a um pai matar seu próprio filho (Abraão e Isaac), consente na matança de três mil pessoas que praticaram um rito religioso que não é de seu agrado (os israelitas no deserto) e se deleita nas crueldades cometidas pelos exércitos de Israel (tomada de Jericó por Josué).

A frase da página 88 conclui: a história do homem é a história de seus desentendimentos com deus, nem ele nos entende a nós nem nós o entendemos a ele. O homem inteligente não entende o deus do catecismo, apresentado como senhor de uma humanidade que aspira a permanecer pequena. Saramago declara-se ateísta desse senhor deus, ou seja, da imagem de um deus que se apresenta como senhor, com tudo que a imagem de um senhor evoca na mente das pessoas. ‘Eis o deus das igrejas, criação do pensamento e das intencionalidades das igrejas’, sussurra Saramago. O autor desmascara a manipulação catequética e sermonária das narrativas bíblicas. Toda a ironia de Saramago está na conjunção de duas palavras: deus senhor (ou senhor deus). O autor combate a ingenuidade com que as pessoas identificam a imagem de deus com a imagem de um senhor que manda, governa e faz o que quer, sem respeitar o interesse da pessoa humana que parece um joguete em suas mãos.

O romance de Saramago pode criar desconforto em leitores(as) acostumados(as) à apresentação de um deus senhor todo-poderoso. Pois a apresentação da história bíblica feita pelo autor é de caráter militante. Por trás do tom de leveza e humor que perpassa o texto existe a ânsia de alguém que percebe que a humanidade se deixa enganar. O alvo do romance é a fé do rebanho que se recusa a pensar com liberdade. Saramago gostaria que o ser humano fosse mais consciente de suas potencialidades e se libertasse do domínio de representações que secularmente explicam as sagradas escrituras como lhes convém. Ele desconstrói a maneira em que as narrativas bíblicas são apresentadas ao povo e, para tanto, transforma Caim em herói da liberdade humana.

Vale a pena ler Caim. É um livro que, além de proporcionar o prazer causado pelo um domínio perfeito da língua portuguesa, ajuda a pensar.

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