Resenha de um bom livro sobre o Jesus Histórico

Na Review of Biblical Literature acaba de ser publicada, com data de 1 de setembro de 2007, uma boa resenha do livro de David Gowler sobre o Jesus Histórico, do qual já falei aqui. É o tipo de livro que seria muito útil para nossos alunos de graduação em Teologia, se fosse rapidamente traduzido para o português.

GOWLER, D. B. What Are They Saying About the Historical Jesus? Mahwah, NJ: Paulist Press, 2007, x + 190 p. ISBN 9780809144457

A resenha é assinada por Mary J. Marshal, da Murdoch University, Murdoch, Austrália. A resenhista assim termina as 8 páginas em pdf:
Notwithstanding the various concerns expressed above, I consider this volume a most welcome addition to the WATSA series and to the extant range of publications pertaining to the historical Jesus. A feature I find particularly appealing is Gowler’s emphasis on the relevance of the historical Jesus for Christian faith, and I appreciate his reference to John 1:38–39a at the beginning and end of his text (2, 144), to form an inclusio. As he states, “[the] historical Jesus still challenges our hearts, minds, and imaginations, and, as we search for ‘where he is staying,’ he is there before us, dialogically inviting us to ‘Come andsee’ ” (144). While the constraints under which Gowler was working meant that he could not cover the field as comprehensively as he would have liked (ix), he nevertheless showed wisdom in his selection of key scholars. The book provides a valuable overview of contemporary research on the subject, and I strongly recommend it as an introductory volume for students and others who are seeking a deeper understanding of Jesus of Nazareth, his ministry, and his mission.

Sem dúvida, o livro oferece um bom panorama da pesquisa atual sobre a questão do Jesus Histórico.

Leia-se isso em conexão com o que fala Comblin em seu texto sobre um projeto missionário a partir da Conferência de Aparecida. Especialmente quando ele enfatiza a necessidade de uma cristologia fundada sobre um conhecimento mais sólido do Jesus Histórico, que, no documento de Aparecida, segundo Comblin, é um ponto fraco:
A questão é: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem? O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e o que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (129-135). Esta enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve interpretar-se a partir do contexto histórico em que ela se situa. Aqui não se fala do contexto histórico, como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa acima dos séculos.

Resenhas na RBL – 05.09.2007

As seguintes resenhas foram recentemente publicadas pela Review of Biblical Literature:

Roger S. Bagnall and Raffaella Cribiore
Women’s Letters from Ancient Egypt, 300 BC-AD 800
Reviewed by Carolyn Osiek

Mark J. Boda and Gordon T. Smith, eds.
Repentance in Christian Theology
Reviewed by David H. Wenkel

M. Eugene Boring
Mark: A Commentary
Reviewed by Darrell L. Bock

Georg Braulik
Studien zu den Methoden der Deuteronomiumsexegese
Reviewed by Jack R. Lundbom

Robert L. Brawley, ed.
Character Ethics and the New Testament: Moral Dimensions of Scripture
Reviewed by Patrick J. Hartin

David B. Gowler
What Are They Saying about the Historical Jesus
Reviewed by Mary J. Marshall

Gordon J. Hamilton
The Origins of the West Semitic Alphabet in Egyptian Scripts
Reviewed by Youri Volokhine

Larry W. Hurtado
The Earliest Christian Artifacts: Manuscripts and Christian Origins
Reviewed by James F. McGrath
Reviewed by Joseph Verheyden

Giorgio Jossa
Giudei o cristiani? I seguaci di Gesù in cerca di una propria identità
Reviewed by Joseph Verheyden

Richard Kalmin
Jewish Babylonia between Persia and Roman Palestine
Reviewed by Lester L. Grabbe

Megan Moore
Philosophy and Practice in Writing a History of Ancient Israel
Reviewed by Ernst Axel Knauf

William S. Morrow
Protest against God: The Eclipse of a Biblical Tradition
Reviewed by James L. Crenshaw

Hillel Newman, edited by Ruth Ludlam
Proximity to Power and Jewish Sectarian Groups of the Ancient Period: A Review of Lifestyle, Values, and Halakhah in the Pharisees, Sadducees, Essenes, and Qumran
Reviewed by Gerbern Oegema

Jerome H. Neyrey
The Gospel of John
Reviewed by Mary L. Coloe

Reinhard Nordsieck
Das Thomas-Evangelium: Einleitung; Zur Frage des historischen Jesus; Kommentierung aller 114 Logien
Reviewed by Ismo Dunderberg

Brant Pitre
Jesus, the Tribulation, and the End of the Exile: Restoration Eschatology and the Origin of the Atonement
Reviewed by Matthew S. Harmon

Thilo Alexander Rudnig
Davids Thron: Redaktionskritische Studien zur Geschichte von der Thronnachfolge Davids
Reviewed by John Van Seters

Dirk Sager
Polyphonie des Elends: Psalm 9/10 im konzeptionellen Diskurs und literarischen Kontext
Reviewed by Joachim Vette

Peter Wick
Paulus
Reviewed by Matthias Konradt

Toda a História de Israel caberia em dez páginas

Philip Davies afirma, em artigo publicado por The Expository Times 2007 119: 15-21, The History of Ancient Israel and Judah, que uma história política do Antigo Israel, que preencha os requisitos da moderna historiografia, caberia em apenas dez páginas. Mas isto teria um custo: o abandono da Bíblia, o produto cultural mais importante (de Israel)…

“… [a] modern political history of Ancient Israel [which would] satisfy modern criteria of history writing … might stretch to ten pages. But the cost is to abandon the most important historical product, the Bible, and to leave it without explanation.”

Coloque este trecho do artigo no contexto da dificuldade em identificar o Israel bíblico com o Israel histórico, já discutido por Philip R. Davies em seu livro In Search of ‘Ancient Israel’, e a polêmica afirmação começa a ficar mais clara.

E não se esqueça dos dois livros de Philip Davies que serão publicados em breve.

Cito o resumo do artigo The History of Ancient Israel and Judah de Philip R. Davies, publicado por The Expository Times, Edimburgo, Escócia:

Writing a `history of Israel’ is a task that is vastly different to writing history of modern events, yet this distinction is often not recognized. There are limitations in the written sources, the archaeological record is unable to locate a `biblical Israel’ in differentiation from the various cultures that inhabited Palestine in the same period and the bible itself was written with a particular theological agenda many centuries after the events it purports to report. Rather what is preserved in the biblical texts is a collection of snapshots of how Israel has been remembered. This `cultural history’ allows for the appropriation of the stories of communities of faith. It is within such layers of memory that the resources can be found to refashion the understanding of the biblical story in a way that finds meaning for successive generations.

Ortodoxia: futuro problema para Israel?

Crescimento de população ortodoxa preocupa israelenses — Folha Online – BBC Brasil: 04/09/2007 – 09h37
Israel enfrenta um crescente dilema demográfico em relação aos judeus ortodoxos: a população não pára de crescer, aumentando a pressão sobre a defesa do país, uma vez que o grupo não presta serviço militar.

Threat to Israeli army future – BBC News: 2 Sep 2007 (video)
A rise in the number of youngsters becoming ultra-orthodox Jews could threaten the future of the army, as they will avoid conscription duties.

Oxford vai discutir a questao sinotica em 2008

Mark Goodacre, que é da área, recebeu e postou em seu NT Gateway Weblog, a notícia da realização de importante conferência sobre a questão sinótica a ser realizada no Lincoln College da Universidade de Oxford, Reino Unido, de 7 a 10 de abril de 2008.

Veja Oxford Conference in the Synoptic Problem.

A Conferência quer marcar o centenário das conversações sobre a questão sinótica que levaram à publicação da obra Oxford Studies in the Synoptic Problem (ed. William Sanday; Oxford: Clarendon, 1911).

A proposta é traçar um panorama da pesquisa sobre a questão sinótica nos últimos cem anos e indicar os rumos que esta poderá tomar no futuro. Os resultados serão publicados por Peeters, de Leuven, Bélgica.

Veja a lista dos participantes no post de Mark Goodacre, que, por sinal, apresentará um trabalho na conferência, a quem agradeço pela notícia. É um assunto que pode interessar a vários colegas brasileiros que pesquisam e lecionam Novo Testamento.

Juda e os judaitas nos seculos VI-IV AEC

A ideia de fazer uma conferência sobre Judá e os judaítas no período babilônico nasceu em um colóquio de pesquisadores da área, em Paris, no ano 2000.

A conferência aconteceu na Universidade de Tel Aviv, Israel, em maio de 2001. E dela surgiu  

LIPSCHITS, O.; BLENKINSOPP, J. (eds.) Judah and the Judeans in the Neo-Babylonian Period. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2003 [2018], xii + 612 p. – ISBN 9781575060736,

Obra que foi muito bem avaliada em três resenhas às quais tive acesso: na RBL, em 2004, por Bob Becking e por John Kessler, e na CBQ, por John C. Endres, em 2005.


Uma segunda conferência, desta vez cobrindo o período persa foi realizada na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Como resultado do debate foi publicado  

LIPSCHITS, O.; OEMING, M. (eds.) Judah and the Judeans in the Persian Period. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2006 [reprint: 2018], xxii + 721 p. – ISBN 9781575061047.

Obra bem recebida nas resenhas de Erhard Gerstenberger, na RBL em outubro de 2006, e de Richard J. Bautch, na CBQ de julho de 2007.


Uma terceira conferência, desta vez sobre Judá e os Judaítas no século IV AEC, foi realizada em Münster, na Alemanha, em agosto de 2005. O volume com os debates acaba de ser publicado, assim como os anteriores, pela Eisenbrauns, agora, no dia 31 de agosto de 2007:
  
LIPSCHITS, O.; KNOPPERS, G. N.; ALBERTZ, R. (eds.) Judah and the Judeans in the Fourth Century B.C.E. Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2007, xii + 423 p. – ISBN 9781575061306.

Espero que a contribuição seja tão significativa para a História de Israel como foram as duas primeiras.

Comblin analisa o projeto missionário de Aparecida

Uma extraordinária análise do grande mestre. Transcrevo alguns trechos para que o leitor interessado possa ver o que o espera na leitura do artigo. O texto do teólogo José Comblin pode ser lido na revista AlterInfos – América Latina/Dial (Diffusion de l’information sur l’Amérique Latine), em espanhol e português. Encontrei-o também no site do CEBI – Centro de Estudos Bíblicos.

José Comblin
El proyecto de Aparecida – 8 de agosto de 2007
O projeto de Aparecida – 13 de agosto de 2007
Projeto Ambicioso – Conferência dos Bispos Católicos – CEBI: 27 de agosto de 2007

No primeiro parágrafo diz Comblin:
“O projeto da Conferência de Aparecida é ambicioso. Trata-se de nada menos do que uma inversão radical do sistema eclesiástico. Há séculos a pastoral da Igreja está concentrada na conservação da herança do passado. Todas as instituições foram adaptadas a essa finalidade. O sistema foi instalado no século XII e desde então não mudou sensivelmente. De acordo com o projeto de Aparecida, tudo vai ser orientado para a missão. A realização prática desse projeto vai exigir o século XXI inteiro. Pois, os bispos lançaram esse projeto, mas agora o primeiro problema consiste em convencer o clero. A presente geração não está preparada para essa inversão das suas tarefas. Vai ser necessário mudar radicalmente a formação e preparar novas gerações sacerdotais bem diferentes da atual”.

Em seguida Comblin faz uma síntese histórica do projeto missionário da Igreja desde o primeiro milênio até hoje, para concluir que:
“Agora vem o projeto episcopal, que vai exigir uma mudança de mentalidade e uma mudança de comportamento. A missão será a prioridade e deixará no segundo plano a administração da pequena minoria que frequenta as paróquias. Será necessário mudar a formação sacerdotal de modo radical. Os religiosos vão ter que voltar à sua vocação original, e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras”.

A partir deste ponto, o artigo está dividido em três partes:
1. Os temas mais significativos do documento conclusivo
2. Algumas dúvidas
3. Os problemas

:: Entre os temas mais significativos, Comblin destaca:

. A escolha do tema geral de toda a Conferência: missão
“Há uns 30 anos atrás na América Latina não se falava em missão (…) A missiologia nem sequer estava nos programas de formação sacerdotal. Era a especialidade de alguns que iam dedicar-se a regiões mais despovoadas ou retiradas como a Amazônia (…) Desde então apareceram muitas experiências que se apresentaram como missionárias. A própria palavra missionário entrou no uso comum do povo que identifica já certas pessoas como missionários e missionárias. Muitos grupos adotaram o nome de missionários. Hoje em dia a consciência de uma necessidade missionária no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada cresceu muito. A V Conferência do Celam recolheu o que se preparou durante 30 anos”.

. A Conferência decidiu voltar ao método de Medellín e Puebla: o esquema ver-julgar-agir da Ação Católica
“Há uma insistência muito forte nessa continuidade (n.391-398). É difícil não descobrir nessa insistência uma discreta expressão de arrependimento e de confissão. É inegável que tinha diminuído a influência de Medellín e de Puebla nos últimos anos. Não faltavam sacerdotes que simplesmente diziam que Medellín já estava superado e já não servia mais para a Igreja atual. Por isso, convém destacar a forte insistência da Conferência de Aparecida. Essa continuidade com Medellín e Puebla manifesta-se, sobretudo, em dois temas fundamentais: a opção pelos pobres e as comunidades eclesiais de base. São justamente dois temas que foram muito atacados ou tratados com indiferença como sendo coisas do passado (…) A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (n. 397,398, 399). Não se trata de uma fórmula convencional. O texto é insistente (…) O documento conclusivo fala explicitamente das Comunidades Eclesiais de Base (n. 178-179). Esta é a parte do documento que sofreu mais correções em Roma, pois o texto dos bispos era muito mais incisivo. Assim mesmo, o texto enuncia todos os frutos positivos das Comunidades Eclesiais de Base, reconhecendo que elas foram o sinal da opção pelos pobres”.

. Os melhores capítulos do Documento são os capítulos 7 e 8 sobre a missão. Aí se acham as afirmações mais fortes
“A mudança deve afetar todas as instituições da Igreja. Começa com a reforma da paróquia. Esta terá que ser subdividia em unidades menores (372), de pequenos grupos com melhor relacionamento (…) O capítulo 8 elabora uma pastoral social que vai ser reafirmada e reforçada (401-404). O documento enumera as novas categorias de pobres que surgiram (…) nos últimos tempos. Enfim o Documento assume desafios contemporâneos: a ecologia e os problemas do meio ambiente e a pastoral urbana. O programa de pastoral urbana é muito completo (…) O desafio da pastoral urbana já foi definido por sociólogos católicos no final do século XIX. Depois de 100 anos a hierarquia assume o desafio. A Igreja católica tem ainda estruturas rurais e mentalidade rural. Na sociedade rural a paróquia identifica-se com a sociedade. Agora as coisas mudaram tanto que a imensa maioria dos cidadãos vive na margem da Igreja e somente recorre a ela no nascimento e na morte ou recorre aos Santos nas doenças”.

. A análise da realidade da América Latina
“No segundo capítulo há uma extensa apresentação da realidade de América latina. Essa exposição recorreu à ajuda de especialistas e cientistas, já que oferece informações bastante completas e pormenorizadas (…) No entanto, o Documento não chega a condenar o capitalismo e o sistema atual de globalização embora tenha mostrado todos os seus vícios. Não podia ir mais longe do que a chamada Doutrina social da Igreja, tão silenciosa nos últimos tempos”.

:: Na seção sobre as dúvidas, diz Comblin:

. Quem vai pôr esse programa em prática?
“O projeto de Aparecida é tão radical que surge uma dúvida: quem vai pôr esse programa em prática? (…) O clero atual não tem condições para aplicar esse programa (…) Pessoalmente acho que os futuros missionários capazes de mudar a fisionomia da Igreja serão leigos, missionários leigos”.

. Como vai começar a aplicação do programa de Aparecida?
“Não poderá realizar-se de cima para baixo. Não se poderá começar com um planejamento teórico. Começará com pessoas voluntárias dispostas a entrar numa aventura, desta vez com o apoio da hierarquia (…) Nos últimos anos em muitos lugares as dioceses realizaram anos missionários, missões populares, sem êxito nenhum. Tudo ficou no papel porque em lugar de partir das pessoas voluntárias que se sentiam pouco valorizadas, mais toleradas do que apoiadas na sua vocação missionária, entregaram a missão as agentes de pastoral da estrutura diocesana ou paroquial (…) Não adianta dar cursos para ensinar uma doutrina”.

.Como será a formação missionária?
“O que se entende por formação de missionários? A atual formação nos seminários ou nas faculdades de teologia é justamente o contrário. O sistema atual dá uma formação acadêmica ou com pretensões acadêmicas. No Brasil muitos deram muito valor ao reconhecimento dos estudos de seminário pelo Ministério da Educação. Ora, com certeza o Ministério da Educação não tem projetos missionários. Os certificados oficiais parecem ser garantias justamente para aqueles que não sentem uma vocação missionária muito forte. Não tenho nada contra esses certificados acadêmicos, mas isto não tem nada a ver com a missão. A formação acadêmica torna a pregação vazia, sem contato com o povo. Os padres foram preparados para ser pequenos professores de teologia. Só isso já explica muitas coisas quanto aos problemas da Igreja que foram denunciados pelo documento de Aparecida. A formação missionária inclui primeiro uma forte e radical espiritualidade concentrada na Bíblia em geral, mas sobretudo nos evangelhos, isto é, na vida terrestre de Jesus. Em segundo lugar, a formação consiste em multiplicar os encontros com pessoas, famílias, grupos. O missionário precisa aprender a estar presente em todos os lugares da vida social, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, esperança e caridade (…) A exposição da doutrina jamais converteu alguém. Jesus manifesta-se pela vida de certas pessoas e não pela doutrina. Não se forma missionários com cursos, seminários ou discussões abstratas. É preciso aprender o linguajar popular. Alguns sacerdotes ou bispos sabem fazer isso perfeitamente: são missionários que se tornaram assim pela graça de Deus, superando os esquemas de formação acadêmica que receberam. Um exemplo: frei Carlos Mesters”.

. Um problema de toda a Igreja ocidental: ela ignora o Espírito Santo
“O ensinamento do Novo Testamento é diferente, tanto na teologia de Paulo como na teologia de João (…) Uma conversão mais radical ainda seria necessária para voltar ao ensinamento do Novo Testamento sobre o Espírito”.

:: Quanto aos problemas, diz Comblin:

. Uma cristologia fraca
“A parte mais fraca do documento, a meu ver, é a cristologia. Era de se esperar. Não foi por acaso que a Notificação enviada a Jon Sobrino foi publicada na véspera da Conferência de Aparecida. Pois aqui estamos exatamente no maior problema teológico da atualidade. A questão é: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem? O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e o que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (129-135). Esta enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve interpretar-se a partir do contexto histórico em que ela se situa. Aqui não se fala do contexto histórico, como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa acima dos séculos”.

. Falta análise da estrutura eclesial latino-americana
“O texto faz uma enumeração dos aspectos positivos e negativos da Igreja latino-americana. (98-100) Não se colocam tanto os aspectos positivos como os negativos no contexto histórico. É como se tudo fosse de igual significado. Não se faz nenhuma análise das estruturas”.

. Há um surpreendente silêncio sobre os movimentos pentecostais…

. Na descrição da sociedade atual, não são devidamente consideradas as duas culturas existentes: a dos incluídos e a dos excluídos…

Comblin finaliza:
“Mesmo assim (…) nasceu uma nova consciência. O documento final constitui um motivo de renovada esperança para os velhos e oferece algumas orientações bem definidas aos jovens”.


O projeto de Aparecida

José Comblin

segunda-feira 13 de agosto de 2007, postado por Dial

3 de agosto de 2007 – O projeto da Conferência de Aparecida é ambicioso. Trata-se de nada menos do que uma inversão radical do sistema eclesiástico. Há séculos a pastoral da Igreja está concentrada na conservação da herança do passado. Todas as instituições foram adaptadas a essa finalidade. O sistema foi instalado no século XII e desde então não mudou sensivelmente. De acordo com o projeto de Aparecida, tudo vai ser orientado para a missão. A realização prática desse projeto vai exigir o século XXI inteiro. Pois, os bispos lançaram esse projeto, mas agora o primeiro problema consiste em convencer o clero. A presente geração não está preparada para essa inversão das suas tarefas. Vai ser necessário mudar radicalmente a formação e preparar novas gerações sacerdotais bem diferentes da atual.

Fazer com que toda a Igreja seja missionária é uma tarefa gigantesca. Durante o primeiro milênio a missão foi assumida pelos monges. Muitos tornaram-se bispos e deixaram a fama de fundadores de Igrejas. A Igreja era predominantemente rural. Nos séculos XI e XII criou-se o sistema das paróquias. Mas o clero paroquial era ignorante não tendo recebido nenhuma formação.

Já no século XIII s.Tomás de Aquino se queixava de que o clero não evangelizava, não era missionário. Em compensação ele mostrava que eram os Mendicantes que evangelizavam.

A mesma queixa foi repetida durante todos os séculos até hoje. A missão foi assumida pelos Mendicantes a partir do século XIII, e, depois, pelas Sociedades de sacerdotes missionários tais como a Congregação da missão de São Vicente de Paul, a Congregação do SSmo. Redentor de Sto Alfonso de Ligório e outras.

Na América Latina, a missão foi assumida em primeiro lugar pelos Franciscanos que forneceram mais da metade dos missionários. Os Dominicanos tiveram a sua atuação mais forte no século XVI. Os Carmelitas e os Agostinianos chegaram com menos missionários., assim como os Beneditinos Depois vieram várias Congregações.

No século XX essas Ordens e Congregações assumiram paróquias e com isso somente uma pequena minoria se dedicou à missão. Assim mesmo usaram métodos adaptados ao século XVII ou XVIII, mas totalmente inadequados no século XX. Dedicaram-se ao mundo rural no momento em que 80% da população latino-americana migrava para as cidades.

Agora vem o projeto episcopal, que vai exigir uma mudança de mentalidade e uma mudança de comportamento. A missão será a prioridade e deixará no segundo plano a administração da pequena minoria que freqüenta as paróquias. Será necessário mudar a formação sacerdotal de modo radical. Os religiosos vão ter que voltar à sua vocação original, e deixar de ser administradores de paróquias ou de obras.

Há alguns anos atrás escrevi que dom Helder era o modelo de bispo do século XXI. Dom Helder foi missionário e tinha um excelente colaborador para todas as tarefas de administração. Sobretudo depois da sua conversão em 1955 e a nova conversão com a chegada no Recife, dom Helder foi o homem do contato pessoal, o homem que era capaz de atrair, capaz de transformar as pessoas com as quais entrava em comunicação, de modo que estas sentiam a necessidade de mudar de vida. Ele tinha a dom de despertar vocações de cristãos missionários.

1. Os temas mais significativos do documento conclusivo

Em primeiro lugar, precisamos destacar a escolha do tema geral de toda a Conferência. Há uns 30 anos atrás na América Latina não se falava em missão. Na mentalidade popular os missionários eram os padres e os religiosos e as religiosas que vinham da Europa ou da América do Norte para reforçar os quadros das Igrejas locais. Ou eram os pregadores das «Santas Missões».

Era uma herança da colônia. A missiologia nem sequer estava nos programas de formação sacerdotal. Era a especialidade de alguns que iam dedicar-se a regiões mais despovoadas ou retiradas como a Amazônia. Missionários eram os evangelizadores dos índios e a maioria deles era estrangeira.

Isto não quer dizer que não havia católicos, sacerdotes, religiosos, religiosas e, sobretudo, leigos missionários. Não sabiam que eram missionários porque os missionários não tinham visibilidade, e não tinham status definido. Eram missionários anônimos.

Desde então apareceram muitas experiências que se apresentaram como missionárias. A própria palavra missionário entrou no uso comum do povo que identifica já certas pessoas como missionários e missionárias. Muitos grupos adotaram o nome de missionários. Hoje em dia a consciência de uma necessidade missionária no meio de uma sociedade cada vez mais secularizada cresceu muito. A V Conferência do Celam recolheu o que se preparou durante 30 anos.

Em segundo lugar, precisamos destacar que a Conferência decidiu voltar ao método de Medellín e Puebla, ou seja, ao esquema ver-julgar-agir da Ação católica. (n.19) Há uma insistência muito forte nessa continuidade (n.391-398). É difícil não descobrir nessa insistência uma discreta expressão de arrependimento e de confissão. É inegável que tinha diminuído a influência de Medellín e de Puebla nos últimos anos. Não faltavam sacerdotes que simplesmente diziam que Medellín já estava superado e já não servia mais para a Igreja atual. Por isso, convém destacar a forte insistência da Conferência de Aparecida.

Essa continuidade com Medellín e Puebla manifesta-se, sobretudo, em dois temas fundamentais: a opção pelos pobres e as comunidades eclesiais de base. São justamente dois temas que foram muito atacados ou tratados com indiferença como sendo coisas do passado. Tinham desaparecido no Sínodo romano de 1997 Ecclesia in América. Se bem nos textos oficiais ainda se mencionavam em certos paises a opção pelos pobres e as comunidades de base (sobretudo no Brasil), a situação geral era bem diferente. Basta lembrar o documento que um dia publicou o padre José Marins que tinha sido o apóstolo incansável das CEBs em toda América Latina. Era de uma triste amargura. No Brasil é difícil imaginar até que ponto desapareceu a opção pelos pobres e pelas comunidades de base e em vários (muitos!) países da América latina.

A Conferência de Aparecida renova a opção pelos pobres (397,398, 399). Não se trata de uma fórmula convencional. O texto é insistente: «Assumindo com nova força esta opção pelos pobres» (399). Aqui também há um certo acento de arrependimento e como uma consciência de que essa opção tinha perdido a sua urgência na pastoral da Igreja: já não era vivida como prioridade. Além disso, o texto reconhece que os pobres são sujeitos da evangelização e da promoção humana (398). A ver todo o parágrafo (391-398)

O texto vai até o ponto de usar duas vezes a palavra «libertação» que era uma palavra proibida. É verdade que a libertação está matizada pelo adjetivo ‘autêntica’, (399) ou ‘integral’. Mas ela esta aí, o que significa que doravante se pode usar de novo (385).

O documento conclusivo fala explicitamente das Comunidades Eclesiais de Base (178-179). Esta é a parte do documento que sofreu mais correções em Roma, pois o texto dos bispos era muito mais incisivo. Assim mesmo, o texto enuncia todos os frutos positivos das Comunidades Eclesiais de Base, reconhecendo que elas foram o sinal da opção pelos pobres.

Os bispos tinham escrito: «Queremos decididamente reafirmar e dar novo impulso à vida e à missão profética e santificadora das CEBs» no seguimento missionário de Jesus. Elas foram uma das grandes manifestações do Espírito na Igreja de América latrina e do Caribe depois de Vaticano II” (194). Estas frases foram censuradas e o texto ficou mais fraco. As outras correções vão no mesmo sentido. Mas o texto dos bispos existe e pode ser consultado. Para a consciência latino-americana ele é mais significativo do que as censuras.

No texto dos bispos há o reconhecimento de que as CEBS não puderam desenvolver-se apesar do seu valor, e vários bispos fizeram restrições. Agora os bispos querem levantar essas restrições e dar vida nova a essas comunidades pobres.

Mesmo com as restrições do texto final, vale a pena ler atentamente os n. 178 e 179.

Os melhores capítulos do Documento são os capítulos 7 e 8 sobre a missão. Aí se acham as afirmações mais fortes:

§ «A Igreja precisa de uma forte comoção que a impeça de se instalar no comodismo, no estancamento e na tibieza, marginalizando os pobres do Continente» (362).

§ «A conversão pastoral de nossas comunidades exige que se passe de uma pastoral de mera conservação à uma pastoral decididamente missionária» (370).

§ «A pastoral da Igreja não pode prescindir do contexto histórico (367)».

A ver, sobretudo os n. 362-370.

A mudança deve afetar todas as instituições da Igreja. Começa com a reforma da paróquia. Esta terá que ser subdividia em unidades menores (372), de pequenos grupos com melhor relacionamento. Tomaremos cuidados para que essas pequenas comunidades não reproduzam a estrutura e a atividade da paróquia. Mas é muito bom que a Conferência faça alusão ao mau funcionamento da paróquia como instituição inadequada para os nossos tempos de urbanização crescente e de secularização.

O capítulo 8 elabora uma pastoral social que vai ser reafirmada e reforçada (401-404). O documento enumera as novas categorias de pobres que surgiram no desenvolveram nos últimos tempos.

Enfim o Documento assume desafios contemporâneos: a ecologia e os problemas do meio ambiente e a pastoral urbana. O programa de pastoral urbana é muito completo e define tarefas que vão exigir a colaboração de milhões de pessoas formadas. O desafio da pastoral urbana já foi definido por sociólogos católicos no final do século XIX. Depois de 100 anos a hierarquia assume o desafio. A Igreja católica tem ainda estruturas rurais e mentalidade rural. Na sociedade rural a paróquia identifica-se com a sociedade. Agora as coisas mudaram tanto que a imensa maioria dos cidadãos vive na margem da Igreja e somente recorre a ela no nascimento e na morte ou recorre aos Santos nas doenças.

No segundo capítulo há uma extensa apresentação da realidade de América latina. Essa exposição recorreu à ajuda de especialistas e científicos, já que oferece informações bastante completas e pormenorizadas. É um exemplo de colaboração entre a hierarquia e os leigos. No entanto, o Documento não chega a condenar o capitalismo e o sistema atual de globalização embora tenha mostrado todos os seus vícios. Não podia ir mais longe do que a chamada Doutrina social da Igreja, tão silenciosa nos últimos tempos.

Claro está que nos outros capítulos há também muitas coisas importantes que oferecem orientações para aplicação do projeto global. Mas um artigo não oferece espaço suficiente para comentar todas essas doutrinas. Com certeza, vão ser publicados comentários extensos do documento de Aparecida para analisar o documento inteiro.

2. Algumas dúvidas

O projeto de Aparecida é tão radical que surge uma dúvida: quem vai pôr esse programa na prática? A história mostra que todas as mudanças profundas na Igreja foram realizadas por pessoas novas, formando grupos novos e criando um novo estilo de vida, sempre a partir de uma opção de vida na pobreza. Nunca foram as lideranças estabelecidas, nem as estruturas instaladas. Estas não conseguem sair do seu papel tradicional. É o que faz pensar que o clero atual não tem condições para aplicar esse programa.

Nunca mais me esqueci daquilo que aconteceu na virada do século XII com o século XIII. Houve uma avalancha de fenômenos religiosos semelhantes à expansão pentecostal hoje em dia. Apareceram novos animadores religiosos que logo conseguiram atrair e converter multidões de católicos. Nasceu em poucos anos um mundo de comunidades que receberam vários nomes, sendo o nome de Albigenses o mais usado. Ninguém conseguia frear o movimento. O Papa Inocêncio III pediu à Ordem Cisterciense que era a mais poderosa naquele momento, que assumisse essa missão de converter os hereges, ou, pelo menos, de frear o movimento de expansão. Foi um fracasso total. Os Cistercienses vinham de mosteiros muito ricos e não sabiam falar aos pobres. Eram missionários ricos, sem capacidade missionária.

Então apareceram quase simultaneamente Francisco de Assis na Itália e Domingos de Guzmán na Espanha. Escolheram a via da pobreza, vivendo uma vida realmente evangélica. Evangelizaram as massas populares do mundo rural e das cidades. E conseguiram o que as Ordens poderosas não tinham conseguido. Deles nasceram em poucos anos os chamados franciscanos (irmãos menores) e dominicanos (irmãos pregadores) que foram milhares em pouco tempo. Eles se instalaram no meio do povo e foram missionários itinerantes, sempre à procura do povo, dos pobres Deram à Igreja uma fisionomia diferente. Eram uma estrutura diferente na qual o povo dos pobres se reconheceu e não se reconhecia nas Ordens monásticas. O clero paroquial recolheu as conversões feitas pelos Mendicantes, mas não tinha podido fazer aquela mudança necessária.

Hoje em dia, já há na Igreja cristãos semelhantes que convivem com o mundo dos pobres. Mas eles são pouco conhecidos e pouco valorizados, antes tolerados do que apoiados, porque não correspondem ao esquema oficial: não têm lugar no direito canônico. Geralmente, são leigos embora haja também bispos ou presbíteros que fizeram a sua conversão escapando-se da estrutura em que estavam metidos.

Pessoalmente acho que os futuros missionários capazes de mudar a fisionomia da Igreja serão leigos, missionários leigos.

Como é que vai começar a aplicação do programa de Aparecida ? Não poderá realizar-se de cima para baixo. Não se poderá começar com um planejamento teórico. Começará com pessoas voluntárias dispostas a entrar numa aventura, desta vez com o apoio da hierarquia. Não se lhes dará nenhum programa prévio porque o Espírito lhes mostrará o que podem fazer. Se o seu agir missionário não procede deles mesmos, não terá nenhum efeito, porque não será um testemunho humano vivo, o único que pode tocar no coração dos ouvintes.

Não adianta planejar. Ninguém planejou o nascimento ou a vida de São Francisco. Ele apareceu e o Papa o confirmou. Nos últimos anos em muitos lugares as dioceses realizaram anos missionários, missões populares, sem êxito nenhum. Tudo ficou no papel porque em lugar de partir das pessoas voluntárias que se sentiam pouco valorizadas, mais toleradas do que apoiadas na sua vocação missionária, entregaram a missão as agentes de pastoral da estrutura diocesana ou paroquial. Não pode concentrar-se na Igreja paroquial porque os pobres não freqüentam a Igreja paroquial. Eles percebem logo que a Igreja paroquial não pertence à sua cultura.

Não adianta dar cursos para ensinar uma doutrina porque o Espírito mostrará aos missionários o que devem falar e fazer. O que se pode fazer é acompanhar a espera da voz do Espírito. A hierarquia tem um papel fundamental que consiste em fazer o discernimento do Espírito a partir da tradição cristã, e estimular uma espiritualidade de espera e fidelidade ao que o Espírito diz.

Na América latina o apoio dos bispos e dos padres é fundamental. Pois, sobretudo no mundo dos pobres, os católicos são tímidos, inseguros, não confiam nas suas próprias qualidades. É preciso apoiar, aceitar erros ou fracassos temporários. Não se pode acertar de uma vez. A hierarquia terá que organizar a harmonia entre todos os carismas.

Como será a formação? O que se entende por formação de missionários? A atual formação nos seminários ou nas faculdades de teologia é justamente o contrário. O sistema atual dá uma formação acadêmica ou com pretensões acadêmicas. No Brasil muitos deram muito valor ao reconhecimento dos estudos de seminário pelo Ministério de Educação. Ora, com certeza o Ministério de Educação não tem projetos missionários.

Os certificados oficiais parecem ser garantias justamente para aqueles que não se sentem uma vocação missionária muito forte. Não tenho nada em contra desses certificados acadêmicos, mas isto não tem nada a ver com a missão. A formação acadêmica torna a pregação vazia, sem contato com o povo. Os padres foram preparados para ser pequenos professores de teologia. Só isso já explica muitas coisas quanto aos problemas da Igreja que foram denunciados pelo documento de Aparecida.

A formação missionária inclui primeiro uma forte e radical espiritualidade concentrada na Bíblia em geral, mas sobretudo nos evangelhos, isto é, na vida terrestre de Jesus.

Em segundo lugar, a formação consiste em multiplicar os encontros com pessoas, famílias, grupos. O missionário precisa aprender a estar presente em todos os lugares da vida social, como um sinal de vida renovada, animada pela fé, esperança e caridade. Não se trata de se mostrar nos eventos sociais, mas de conhecer e descobrir as pessoas que são sensíveis aos apelos do Espírito, e saber dizer as palavras que marcam.

A exposição da doutrina jamais converteu alguém. Jesus manifesta-se pela vida de certas pessoas e não pela doutrina. Não se forma missionários com cursos, seminários ou discussões abstratas. É preciso aprender o linguajar popular. Alguns sacerdotes ou bispos sabem fazer isso perfeitamente: são missionários que se tornaram assim pela graça de Deus, superando os esquemas de formação acadêmica que receberam. Um exemplo: frei Carlos Mesters.

A formação por via de doutrinação veio depois da Revolução francesa para assegurar a fé dos sacerdotes que deviam aprender a resistir às heresias da época. A resistência às heresias deixou de ser uma urgência.

Não posso deixar de assinalar um problema que não é somente de Aparecida mas de toda a Igreja ocidental, dos Concílios ocidentais, dos documentos do magistério, inclusive de Vaticano II. A Igreja ocidental ignora o Espírito Santo. Claro está que o Espírito Santo é mencionado muitas vezes, também no documento de Aparecida, mas sempre para reforçar o planejamento feito pela hierarquia ou pelo clero em geral. A hierarquia define a conduta da Igreja, e, depois, pede ao Espírito Santo que realize o que foi já decidido. Ou se supõe que tudo o que procede da hierarquia, procede do Espírito Santo, o que é a mesma coisa. Não adianta rezar para que o Espírito venha iluminar a minha mente se Ele está presente no mundo e mostra com sinais claros o que Ele quer.

Os Orientais são muito sensíveis a esse aspecto da Igreja do Ocidente. Na América latina a Igreja oriental tem pouca presença e quase nenhuma influência. A Igreja latino-americana é filha do Ocidente de modo quase exclusivo.

O ensinamento do Novo Testamento é diferente, tanto na teologia de Paulo como na teologia de João. Para São Paulo a Igreja é dirigida pelos dons do Espírito Santo (1 Cor12,4-11;27-30). Ora, o primeiro dom é o dom de «apostolado» (1 Cor 12,28). Quando Paulo fala dos apóstolos, não se refere aos Doze, mas àqueles discípulos que, como ele, se tornaram missionários porque foram enviados pelo Espírito Santo.

O dom de governo vem em sétimo lugar. Em segundo lugar aparecem os profetas que são considerados com muita insistência (1 Cor 14). Esses dons estão espalhados e de repente aparecem de modo imprevisto. Ninguém preparou, nem formou Paulo como missionário. Ele recebeu um dom do Espírito Santo e mostrou um caminho verdadeiro e seguro para o povo dos discípulos que conseguiu reunir.

O Espírito Santo está presente na Igreja atual como sempre. Ele mostra os caminhos de seguimento de Jesus. A teologia de João afirma que o Espírito ensinará o alcance da vida de Jesus nas mais diversas circunstâncias. Jesus não deixou nenhum programa de apostolado, mas prometeu que o Espírito estaria presente para mostrar: de que maneira podemos atualizar a vida d’Ele nas mais diversas circunstâncias da história. Jesus não quis encerrar a história num quadro estável, mas prometeu que o Espírito estaria presente para, em cada situação, ensinar o sentido das obras e das palavras que ele realizou ou pronunciou num contexto muito determinado e limitado, na Galiléia. (Jô 14,26; 16,13-15).

Mas não convém acusar a Conferência de Aparecida, porque toda a história da Igreja do Ocidente foi assim. Uma conversão mais radical ainda seria necessária para voltar ao ensinamento do Novo Testamento sobre o Espírito.

3. Os problemas

A parte mais fraca do documento, a meu ver, é a cristologia. Era de se esperar. Não foi por acaso que a Notificação enviada a Jon Sobrino foi publicada na véspera da Conferência de Aparecida. Pois, aqui estamos exatamente no maior problema teológico da atualidade. A questão é: o que significa a humanidade de Jesus? Qual é o significado das palavras e dos atos de Jesus tais como os evangelhos os relatam? Em que consiste a humanidade de Jesus? O que é ser homem?

O texto lembra muitas coisas bonitas tiradas dos evangelhos, que o mostram como mestre de sabedoria e revelador de um modo de vida a ser imitado pelos discípulos. É uma enumeração de atos e palavras belas da vida de Jesus. Falta a síntese e o que reúne todos esses ditos e fatos numa vida humana (129-135).

Esta enumeração não diz o significado da vida humana de Jesus, ou seja do seu ministério missionário. A vida dos seres humanos deve interpretar-se a partir do contexto histórico em que ela se situa. Aqui, não se fala do contexto histórico como se Jesus estivesse fora da história, como um mestre que voa encima dos séculos. Cada ser humano constrói a sua vida a partir do contexto histórico que o provoca e o lê para definir as suas opções quanto aos fins e aos meios. Ele tem um projeto, atribuindo à sua vida uma finalidade. Se Jesus foi homem, Ele devia ser assim.

Comecemos pelo anuncio de Jesus: o reino de Deus (101-128). O que foi que entenderam os camponeses de Galiléia quando Jesus lhes falava do reino de Deus? Eles estavam sofrendo o jugo pesado do reino de Roma, do reino do Imperador. De repente Jesus vem anunciar que esse reino vai cair. Era exatamente o que todos esperavam, pelo menos os pobres oprimidos pelo poder duríssimo dos Romanos. A maioria pensava que isso sucederia somente num mundo novo depois deste mundo destruído de acordo com as p;revisões apocalípticas. Jesus vem anunciar que aquilo acontecerá neste mundo. O reino de Satanás encarnado no poder romano vai cair e virá outro reino. Jesus bem sabia de todas as conversas, de todas as queixas e das esperanças do seu povo. Ele falava para essas pessoas. Compreende-se que foi acolhido e aclamado pelo povo simples da Galiléia com entusiasmo.

Depois desse anúncio Jesus teve que explicar como seria o reino de Deus e a diferença radical com o reino de César. Até os doze tiveram muita dificuldade em aceitar as explicações de Jesus.

O que não aparece no documento é que o evangelho de Jesus foi uma Boa Nova para alguns e uma Má Nova para outros. Jesus não tratou todos da mesma maneira. A Boa Nova dirige-se aos pobres e a Má Nova aos ricos (Lc 6,20-26). O evangelho de Maria foi o mesmo: «Depôs poderosos de seus tronos e a humildes exaltou. Cumulou de bens famintos e despediu ricos de mãos vazias». (Lc 1,52-53)

Na base da psicologia de Jesus estava a compaixão pelos oprimidos e a indignação contra os opressores. Porque isso não aparece num documento que pretende renovar a opção pelos pobres? Há uma contradição entre a Segunda e a Terceira parte do documento.

Em segundo lugar, não aparece o conflito com os chefes da nação, que Jesus denuncia como usurpadores e opressores. O que ocupa um lugar fundamental nos evangelhos não aparece: o conflito de Jesus com os sacerdotes, os doutores da lei, os fariseus, os grandes daquele tempo. (Mc 11-13; Mt 23; Lc 20; Jô 8) Esse conflito é o fio condutor dos evangelhos. Todos apresentam a missão de Jesus como caminho para a morte. Desde o início os chefes querem matá-lo. Jesus denuncia a dominação dos grandes associados aos Romanos e permanece fiel a essa missão da sua vida até que o matem.

A morte de Jesus foi a conseqüência da sua ação: Foi como a conclusão final do seu ministério. O documento fala de Jesus que fez o dom da sua vida. (139) Jesus foi morto porque quis ser fiel à sua missão de denunciar a corrupção dos chefes do seu povo, que impunham um jugo insuportável ao povo simples. Jesus era judeu e como judeu estava escandalizado pelo uso que os chefes faziam da Lei. Jesus queria libertar o seu povo da mentira e da dominação das elites. Com a sua interpretação da Lei as elites oprimiam o povo dos pobres.

Esse foi o projeto de Jesus. O que Ele oferece aos seus seguidores, é repetir a mesma trajetória em todas as épocas da história. Ora, no centro da missão está a perseguição a morte a morte de cruz, uma morte infamante.

O Documento faz apenas algumas alusões muito discretas à morte de Jesus sem dizer porque morreu e o significado humano dessa morte.

O texto alude aos mártires das América latina, mas sem explicar em que consistia esse martírio (140) como se o martírio fosse um valor em si, um exemplo de vida heróica. Não coloca os mártires no seu contexto histórico e por isso a morte de Jesus também não está no seu contexto histórico. E como se fosse um exemplo de virtude sem motivo, sem ligação com o seu ministério de profeta.

O documento simplesmente diz que Jesus ofereceu a sua vida. Isto pode significar muitas coisas, mas não evoca o contexto histórico e o lugar dessa morte na vida humana de Jesus..

Nos evangelhos a cruz está no centro da cristologia da vida humana de Jesus. Ela não está no centro da cristologia do Documento. Temos a impressão de que o texto quis evitar qualquer referência ao conflito com os Romanos e com as autoridades de Israel. É um evangelho sem conflito, de pura bondade. Porque um evangelho sem conflito? Para não ter que reconhecer o sentido do martírio de tantos latino-americanos crucificados na segunda parte do século? As elites querem ocultar a responsabilidade histórica que têm nesses martírios do XX. A lembrança desses martírios ofende as classes dirigentes de muitas nações .

Por isso as alusões aos mártires são muito discretas. Os mártires são apresentados com os heróis mas não se diz porque morreram. Ora um evangelho sem conflito: quem quer isso? É exatamente o evangelho que satisfaz a burguesia. Essa cristologia é burguesa na sua inspiração. Não exprime o que sentem os pobres e de que maneira eles entendem a vida e a morte de Jesus. Estamos na situação do conflito entre duas cristologias, uma que é burguesa e outra que é a dos pobres. Este conflito existe desde o início da Igreja

A mesma falta de historicidade se acha na descrição da realidade eclesial na primeira parte. O texto faz uma enumeração dos aspetos positivos e negativos da Igreja latino-americana. (98-100) Não se colocam tanto os aspetos positivos como os negativos no contexto histórico. É como se tudo fosse de igual significado.

Não se faz nenhuma análise das estruturas. O texto atribui a responsabilidade e a culpa a «alguns católicos que se afastaram do evangelho». (100 h) Os aspetos negativos são devidos a «deficiências e ambigüidades» de alguns dos membros (da Igreja). Se esse fosse o problema, não teria sido necessário reunir toda uma Conferência continental. Bastaria enviar um bom confessor a esses pouco católicos.

De modo geral, os documentos da Igreja não questionam as estruturas. Ora, com certeza os membros da Igreja não são piores agora do que antes. Os problemas não são as pessoas, mas as estruturas. Algo disso aparece implicitamente na Terceira Parte, por exemplo, quando se trata da paróquia. Mas, uma análise mais profunda seria muito útil. Um dia terá que ser feita.

Surpreendente é o silêncio quase total sobre os movimentos pentecostais. Há apenas algumas breves alusões (100 g). Um dia Harvey Cox escreveu que se tratava do fenômeno religioso mais importante do século XX e quase tão importante como a Reforma do século XVI. Não se faz nenhuma análise dessa realidade como se fosse uma coisa sem importância que não faz problema.

No entanto, o pentecostalismo está em plena expansão em todos os continentes e também na América latina. Muitos católicos deixam a Igreja para integrar uma comunidade pentecostal. Os pastores são inumeráveis. Em vários lugares do mundo dos pobres, os pentecostais já são mais numerosos do que os católicos.

Seria necessário analisar as razões desse êxito. Sem dúvida o pentecostalismo responde às aspirações de uma grande parte do mundo popular. Vale à pena estudar a mensagem, a metodologia, as formas de organização. Fechar os olhos como se o fenômeno não existisse, pode ser a política da avestruz.

Quando se faz a descrição da sociedade atual, principalmente da cultura contemporânea, muitos se esquecem de que há duas sociedades muito separadas e duas culturas bem diferentes. Há a cultura examinada pelos cientistas e filósofos, que é a cultura dos que estão incluídos na nova sociedade e a cultura dos excluídos.

Assim mesmo, a Conferência de Aparecida constitui um acontecimento imprevisto. Nasceu uma nova consciência. Os bispos recolheram as aspirações da minoria mais sensível aos sinais do tempo. O documento final constitui um motivo de renovada esperança para os velhos e oferece algumas orientações bem definidas aos jovens.

Biblical Studies Carnival 21

Acabou agosto, mês de cachorro doido, mês de desgosto, mas, para nosso conforto, Duane Smith, em seu biblioblog Abnormal Interests, de apropriado nome, fez uma seleção dos melhores posts do avoado mês que versaram sobre estudos bíblicos e áreas afins, operação por nós apelidada de Biblical Studies Carnival XXI.

Entrementes, de setembro que começa, mais ainda se espera, sendo, por aqui, o Mês da Bíblia!