Por que sempre me preocupo com o destino do Iraque, em um blog sobre estudos bíblicos?
Simples: porque ali é a Mesopotâmia e vivo boa parte de meu tempo estudando este pedaço do planeta. Até porque não é possível explicar a Bíblia Hebraica – nem o Israel que a produziu – sem recorrer à Babilônia e sua literatura parcialmente herdada e desenvolvida a partir de povos mais antigos como os sumérios e os acádios. Como estudar a criação na Bíblia sem falar do Enuma Elish, poema babilônico da criação?
E nestes dias estou estudando, com o Primeiro Ano de Teologia, Gn 1,1-2,4a. Enquanto passamos, no estudo do Gênesis, do caos ao cosmos, a região mesopotâmica faz caminho inverso. E cruzamos com esta realidade a todo momento, pois: onde ficava a antiga Babilônia? Bem no coração do que hoje chamamos Iraque. Aliás, ainda chamamos, porque se você ler o texto abaixo, trecho de artigo maior, verá que Iraque poderá ser uma realidade do passado em futuro muito próximo… E a desintegração da herança cultural da antiga Mesopotâmia está acompanhando a desintegração política e social do Iraque atual, sangrando em violento conflito desde 2003.
O Fim de uma Nação?
Pioram a luta e a “limpeza étnica” no Iraque. Os EUA poderão deixar para trás um país física e politicamente destruído
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
…Falta muito pouco para a desintegração definitiva do país. Em 11 de outubro, o Parlamento iraquiano aprovou a formação de federações de províncias, abrindo o caminho para a tripartição do país, à qual só os remanescentes do partido Baath e os sunitas laicos continuam a se opor. Em 15 de outubro, o Conselho Mujahidin Shura, aliança de facções sunitas que inclui a Al-Qaeda, proclamou um Estado islâmico sunita em seis províncias do centro e do oeste, seguido por desfiles de suas tropas em várias cidades de sua área de influência, como Ramadi. Apesar da oposição da Turquia, os curdos governam o norte do Iraque praticamente como Estado independente desde a invasão e as milícias xiitas já ditam a lei em quase todo o resto do país. Um relatório publicado em 17 de outubro, pela Instituição Brookings, de Washington, e pela Universidade de Berna, assinala um vasto deslocamento de populações. Os sunitas (e muitos xiitas baathistas) refugiam-se em áreas de maioria sunita, os xiitas no sul, os curdos no norte e os cristãos na província de Nínive. Cidades onde conviviam etnias e religiões tornam-se curdas, xiitas ou sunitas, revertendo a integração promovida por governos laicos e centralizadores a partir dos anos 50. A maioria dos que podem, cerca de 800 mil desde a invasão, 650 mil dos quais desde 2005, deixa o país. Prepara-se o cenário para guerras de “limpeza étnica”, como as vistas na ex-Iugoslávia e no Líbano (…) Consagrar a tripartição significaria, hoje, um revés moral para os EUA: depois de entrarem no Iraque com o pretexto de acabar com inexistentes armas de destruição em massa e depois trocá-lo pela promessa de resgatar o povo iraquiano da ditadura de Saddam Hussein e colocá-lo no caminho do progresso, o saldo final de sua intervenção será a completa destruição de uma das mais importantes nações árabes – aquela que, nos anos 80, era a mais forte e independente. Em vez disso, haverá: 1. Um estado xiita muito rico em petróleo e alinhado ao Irã. 2. Um miserável estado sunita sem petróleo que, na melhor das hipóteses, seria um satélite da Síria baathista e, na pior, um feudo fundamentalista da Al-Qaeda. 3. Um estado curdo medianamente rico em petróleo e simpático aos EUA, mas em conflito com os vizinhos. Principalmente com a Turquia, que luta contra seus separatistas curdos desde 1984. O surgimento de um Estado curdo poderia até levar essa aliada estratégica e tradicional a fechar a fronteira ao antigo Iraque, afastar-se dos EUA e aproximar-se do fundamentalismo, deixando Washington mais mal posicionada no Oriente Médio que antes da invasão…
Fonte: CartaCapital: 01 de novembro de 2006 – número 417