A crítica de Oseias aos sacerdotes e ao culto

Porque é solidariedade (hesedh) que eu quero e não sacrifício,
conhecimento de Deus [= prática do javismo] mais do que holocaustos (Os 6,6).

No citado artigo de Brad E. Kelle, a pergunta agora é sobre a posição de Oseias a respeito do culto e do comportamento dos sacerdotes. Ele diz na p. 336:

Alongside this discussion of kingship, twentieth-century Hosea scholarship has participated heavily in the long-standing debate over the relationship between prophets and the priestly cult (…) The traditional answers throughout much of the modern period as to why Hosea criticizes these cultic offices and practices have proposed that he operated from a general orientation of opposition to the priesthood and priestly religion (Ward 1966; Wolff 1974; Utzschneider 1980; Stuart 1987), or that he rejected particular priests because of their specific actions or faulty inner dispositions (Brueggemann 1968; Mays 1969; Andersen and Freedman 1980; Yee 1996) (…) By far, however, modern scholarship’s most widely shared conclusion has explained Hosea’s predominantly negative view of the priestly cult as a reaction to the supposed influence of Baalism on the religious life and practices of eighth-century Israel.

 

Os estudos sobre Oseias no século XX têm participado intensamente do longo debate sobre a relação entre os profetas e as práticas cultuais israelitas (…) As respostas tradicionais durante grande parte do período moderno a respeito das críticas de Oseias aos sacerdotes e ao culto israelitas propõem ou que ele rejeita o culto como tal, ou que ele rejeita sacerdotes específicos por causa de suas atitudes nas práticas cultuais, mas não o culto em si (…) No entanto, a conclusão mais amplamente compartilhada pelos estudiosos modernos explica a visão predominantemente negativa de Oseias sobre o culto e os sacerdotes como uma reação à suposta influência do baalismo na vida religiosa e nas práticas do Israel do século VIII a.C.

SOTER 2019: Decolonialidade e práticas emancipatórias

A SOTER – Sociedade de Teologia e Ciências da Religião – comunica que seu 32º Congresso Anual terá como tema Decolonialidade e práticas emancipatórias – Novas perspectivas para a Área de Ciências da Religião e Teologia e será realizado no campus Coração Eucarístico da PUC-Minas, em Belo Horizonte, de 9 a 12 de julho de 2019.

SOTER 2019: Decolonialidade e práticas emancipatóriasO Congresso Internacional da SOTER está entre os mais tradicionais da Área de Ciências da Religião e Teologia no país, chegando, em 2019, à sua 32ª edição, o que demonstra a consolidação da sua proposta e a importante contribuição acadêmica que traz à sociedade, na especificidade do seu saber, sempre com temas atuais e de interesses urgentes para a sociedade. A cada ano, o Congresso Internacional da SOTER reúne um número significativo de teólogos, cientistas da Religião, estudantes de pós-graduação e pesquisadores de áreas afins, tanto em nível nacional como internacional.

Para 2019, o Congresso prossegue as discussões anteriores e mantém a preocupação de estar atento às urgências da sociedade. Por esta razão, tratará sobre decolonialidade e práticas emancipatórias, abordando as novas perspectivas para a Área de Ciências da Religião e Teologia.

Hoje, a sociedade apresenta inúmeros desafios e muitos deles podem ser classificados como étnicos, culturais e religiosos, que tocam em questões fundamentais do existir humano, atingindo aspectos do direito, da ética e de novas categorias de interpretação e de interação da realidade. Logo, um olhar a partir desta perspectiva, de baixo, das muitas resistências sociais, oferece novos caminhos e novas abordagens para o saber.

A categoria decolonial vem sendo estudada em várias frentes e em várias Áreas de Pesquisa; assim, é importante que a Área de Ciências da Religião e Teologia também se debruce sobre este tema, a fim de levantar pontos e práticas já existentes, mas também com a finalidade de oferecer novas perspectivas de atuação e investigação. É um discurso que oferece outra composição, pois sua proposta tem como base estrutural o lugar de onde se diz e se produz o conhecimento, alimentado pelas lutas, resistências e marcado pelo tempo e lugar, em que as esperanças se encontram.

A proposta deste Congresso investe em conferências com especialistas nacionais e internacionais, grupos de trabalho e fóruns temáticos, painéis e publicações.

Leia Mais:
Congressos e publicações da SOTER
América Latina e o giro decolonial
Para transcender a colonialidade

As críticas de Oseias à monarquia

Eles instituíram reis sem o meu consentimento,
escolheram príncipes, mas eu não tive conhecimento (Os 8,4a)

No artigo sobre Oseias 4-14 Brad E. Kelle trata das críticas do profeta à monarquia nas p. 335-336:

A primary aspect within this twentieth-century historical study of Hosea 4–14 has been the investigation into the relationship between Hosea and the social, religious, and political institutions of his day, especially the monarchy, priesthood, and prophecy. Debate over the attitude in the book toward the institution of kingship has occupied a prominent place in this regard. Several passages in Hosea explicitly relate to kingship, often talking about the misdeeds and/or removal of the rulers and stressing inappropriate behavior by the king in political, military, and cultic activities (e.g., 5.1-2, 10; 6.11–7.7, 16; 8.4; 9.15; 10.1-4, 7-8a). The referent in most of these texts is the northern monarchy, with only 5.10 dealing with Judah alone within the context of chs. 4–14 (cf. 2.2; 3.4-5). While the references to kingship in 2.2 and 3.4-5 are positive, all of the references in Hosea 4–14 are negative. Among these, the enigmatic condemnation in 8.4 has consistently drawn the most attention, and its meaning continues to confuse (cf. Mays 1969; Wolff 1974; Hayes and Kuan 1991).

The discussion surrounding Hos. 8.4 is representative of the wider range of interpretations of Hosea’s overall view on kingship that appears in commentaries and other studies throughout the modern period. The major question giving rise to divergent interpretations primarily centers on whether Hosea condemns the very existence of the institution of the monarchy, or only engages in a more specific critique. Along these lines, scholars read Hosea’s references to kingship in several major ways, although their conclusions are, at times, partially determined by their views on the book’s redactional history:
1. Hosea opposes the entire system and idea of kingship in principle (Mays 1969; Wolff 1974);
2. Hosea sees the northern monarchy as illegitimate in nature and function (Harper 1905; Rudolph 1966; Emmerson 1984; Macintosh 1997a);
3. Hosea condemns specific kings, especially of the northern kingdom, because of their particular acts of disobedience (Utzschneider 1980; Hayes and Kuan 1991).

(…)

More recently, however, Machinist (2005) offers a complex analysis of the book’s references to the monarchy, and argues that Hosea’s view of kingship is ambiguous. He resists the oversimplifications of many previous analyses, and demonstrates that all of the usual scholarly interpretations can find support within the relevant passages (…) Hosea reflects the deep tension and ambiguity between the problematic nature of the very institution of the monarchy and the reality that kingship will play a role in the future of the restored community.

 

Um aspecto fundamental da pesquisa sobre Oseias 4–14 no século XX é a investigação da relação do profeta com as instituições sociais, religiosas e políticas de seu tempo, especialmente a monarquia, o sacerdócio e a profecia.

O debate sobre a atitude do profeta em relação à monarquia ocupou um lugar de destaque a este respeito. Várias passagens em Oseias explicitamente se referem à monarquia, muitas vezes falando sobre os erros e/ou remoção* dos governantes e enfatizando o comportamento inadequado do rei nas atividades políticas, militares e cultuais. Os textos tratam, na maioria dos casos, da monarquia de Israel Norte, com apenas Os 5,10 falando de Judá. Embora as referências à monarquia em Os 2,2 e Os 3,4-5 sejam positivas, todas as referências em Oseias 4–14 são negativas. Entre estas, a condenação enigmática em Os 8,4 tem consistentemente atraído mais atenção. E seu significado continua a desafiar os especialistas.

A discussão em torno de Os 8,4 é representativa da gama mais ampla de interpretações, feitas ao longo do século XX, da posição de Oseias a respeito da monarquia. A principal questão que dá origem a interpretações divergentes centra-se principalmente no seguinte dilema: Oseias condena a própria existência da instituição monárquica? Ou apenas faz uma crítica mais específica a uma determinada monarquia ou às decisões políticas reais? Nessa linha, os estudiosos leram as referências deWOLFF, H. W. Hosea. Minneapolis: Fortress Press, 1988, 259 p. - ISBN 9780800660048 Oseias à monarquia de várias formas. São três as posições principais dos estudiosos:
1. Oseias se opõe à instituição da monarquia
2. Oseias vê a monarquia de Israel Norte como ilegítima
3. Oseias condena reis específicos, especialmente do reino do norte, por causa de suas decisões equivocadas

(…)

Mas há autores que fazem uma análise mais complexa das referências do livro à monarquia. E argumentam que a visão da monarquia no livro é ambígua. Dizem que é preciso abandonar as supersimplificações de muitas análises e demonstram que todas as interpretações acadêmicas usuais, como as três acima, podem encontrar apoio dentro das passagens relevantes (…) Oseias, na verdade, reflete a profunda tensão e ambiguidade entre a natureza problemática da própria instituição da monarquia e a percepção de que a monarquia desempenhará um papel no futuro da comunidade restaurada. Cf., neste sentido, Machinist, P. 2005.

* Grande instabilidade tomou conta do reino de Israel Norte nos seus últimos 30 anos, pois de 753 a 722 a.C. seis reis se sucederam no trono de Samaria, abalado por as­sassinatos e golpes sangrentos. Houve 4 golpes de Estado (golpistas: Salum, Me­nahem, Pecah e Oseias) e 4 assassinatos (assassinados: Zacarias, Salum, Pecahia e Pecah).

Oseias pode ser usado como fonte para a história de Israel Norte?

No artigo de Brad E. Kelle sobre Oseias 4-14 uma das perguntas obrigatórias é se o livro pode ser usado como fonte para a história de Israel Norte entre 755 e 725 a.C., época da atuação do profeta. Como a pesquisa do século XX e primeira década do século XXI lidou com isso? Diz o autor nas p. 332-334:

Building upon the common twentieth-century view that the book contains original material from the eighth-century prophet himself, modern scholarship has typically understood Hosea as a useable and important source for the historical reconstruction of pre-exilic Israel (for an early example, see Brown 1932). Interpreters have observed elements such as the book’s apparent references to political actions and treaties involving Israel, Assyria, and Egypt (e.g., 5.13; 7.11; 8.9; 12.1 [MT]). Even though many of these texts are vague, offering no specific references or clearly identifiable personal names, throughout most of the twentieth century before the 1980s, the dominant view in scholarship professed a high level of confidence in Hosea as a useable historical source, and identified the historical information yielded by the book as directly relevant to the northern kingdom of Israel in the eighth century BCE. From this perspective, the book was particularly useful for the history of the northern kingdom because Hosea himself is commonly considered to be the only prophet who addressed the northern kingdom as a native (see Harper 1905: cxli-clv; Davies 1993: 13).

(…)

The most common topic among historical interpretations of Hosea throughout the twentieth century is the attempt to relate particular texts in the book to the events of the Syro-Ephraimitic War (ca. 734–731 BCE ).

(…)

Despite the enduring nature of readings that use Hosea as a historical source for eighth-century Israel, there is a growing trend in scholarship since the 1980s that is much less confident about Hosea’s ability to provide useable historical information. Some of these approaches are simply more cautious with regard to Hosea’s potential historical information.

(…)

Some of the most recent works on Hosea, however, have contributed a new formulation of this older line of historical inquiry. These works show a renewed openness to the possibility that the texts of Hosea can yield historical information, but, in keeping with some of the new formulations of redaction criticism, they assert that the historical information yielded by Hosea consists primarily, if not solely, of what the final form reveals about its authors, audience, circumstances, and concerns. Ben Zvi’s commentary (2005), with its proposal that the book of Hosea was created to be read and re-read by the literati of postmonarchical Yehud, once again provides a primary example of this trend. He concludes that the book contains only enough specific historical references to establish a general framework (e.g., a sequence of Judaean kings), and that ‘they cannot be taken as a reliable source for an understanding of the history of monarchic Judah…nor that of the northern kingdom in the days of Jeroboam’ (2005: 18).

BEN ZVI, E. Hosea.Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005, 336 p. - ISBN 9780802807953Baseando-se na visão comum do século XX de que o livro contém material original do próprio profeta do século VIII a.C., os estudos modernos têm visto Oseias como uma fonte útil e importante para a reconstrução histórica do Israel pré-exílico. Os intérpretes observaram diversos elementos no livro como as aparentes referências a ações políticas e tratados envolvendo Israel, a Assíria e o Egito. Embora muitos desses textos sejam vagos, não oferecendo referências específicas ou nomes de pessoas claramente identificáveis, durante a maior parte do século XX, antes dos anos 80, a visão dominante nos estudos professava um alto nível de confiança em Oseias como uma fonte histórica utilizável e identificava a informação histórica produzida pelo livro como diretamente relevante para o reino do norte de Israel no século VIII a.C. Mais ainda: o livro foi considerado particularmente útil para a história do reino do norte porque Oseias é o único profeta natural do reino de Israel Norte que lá atuou e de quem temos um livro.

(…)

Segundo os estudiosos de Oseias, há várias referências históricas no livro, mas o tópico mais comum entre as interpretações históricas de Oseias ao longo do século XX foi a tentativa de relacionar textos específicos do livro com os eventos da guerra siro-efraimita (ca. 734–731 a.C).

(…)

Apesar da natureza duradoura das leituras que usam Oseias como fonte histórica para o Israel do século VIII a.C., há uma tendência crescente nos estudos desde a década de 80 que confia muito menos na capacidade de Oseias de fornecer informações históricas utilizáveis. Algumas dessas abordagens são simplesmente mais cautelosas em relação à potencial informação histórica de Oseias [observo que isto está em consonância com as tendências mais recentes sobre o uso da Bíblia Hebraica como fonte para a História de Israel].

(…)

Algumas das publicações mais recentes sobre Oseias, no entanto, contribuíram com uma nova formulação da antiga linha de investigação histórica. Esses estudos mostram uma abertura renovada para a possibilidade de que os textos de Oseias possam produzir informações históricas. Mas, de acordo com algumas das novas formulações da crítica da redação, eles afirmam que a informação histórica produzida por Oseias consiste primordialmente, talvez unicamente, naquilo que a forma final do texto revela sobre seus autores, público, circunstâncias e preocupações. O comentário de Ben Zvi (2005), com sua proposta sobre o livro de Oseias ter sido criado para ser lido e re-lido pelos eruditos do Yehud pós-exílico, mais uma vez fornece um exemplo claro dessa tendência. Ele conclui que o livro contém apenas referências históricas específicas suficientes para estabelecer uma estrutura geral – por exemplo, uma sequência de reis de Judá -, e que ele não pode ser considerado como uma fonte confiável para uma compreensão da história do Judá monárquico e nem para a história do reino do norte nos dias de Jeroboão II.

O texto hebraico do livro de Oseias é difícil

O texto hebraico do livro de Oseias é difícil, digo sempre aos estudantes de Literatura Profética. Basta ver a quantidade significativa de notas de rodapé que as traduções modernas da Bíblia precisam colocar. E isto é uma pena, já que dificulta a leitura e a compreensão do texto.

Especialmente porque considero Oseias e Jeremias como os profetas mais radicais de Israel. Em que sentido? Porque “quase” entenderam, apesar dos limites da linguagem teológica, que a raiz principal de todos os problemas que eles denunciam é a estrutura tributária dos dois estados israelitas governados por Samaria e Jerusalém.

No citado artigo, Brad E. Kelle fala das dificuldades do texto hebraico de Oseias e das explicações apresentadas pelos estudiosos do livro do profeta para tal fenômeno ao longo do século XX e primeira década do século XXI. Ele diz nas p. 317-321:

 

Hosea has garnered particular attention among text critics over the last century, largely because the Hebrew text of the book is exceedingly difficult and often obscure. Virtually every major commentary from the modern period contains some statement that the text of Hosea is second only to Job in the Hebrew Bible in the number of textual problems, literary idiosyncrasies, unintelligible passages, and generally having ‘many verses so badly preserved that the original sense can scarcely be determined with certainty’ (Neef 1999: 522; see Mays 1969: 5; Andersen and Freedman 1980: 66; Stuart 1987: 13). Such linguistic difficulties include ellipses, hapax legomena, and other constructions out of keeping with standard Hebrew grammar (e.g., see hapax legomena in 5.2, 13; 7.9; 8.6).

Throughout the first three-quarters of the twentieth century, Hosea scholarship commonly attributed the obscurities of the book’s language to textual corruption that had occurred in the transmission process, and thus proposed numerous emendations based on other available manuscripts and versions (…) The final quarter of the twentieth century witnessed a significant change in the assessment of the textual particularities of Hosea. In contrast to earlier scholars’ explanations involving the corruption of the text during transmission, the present consensus concludes that Hosea’s textual difficulties reflect a peculiar northern dialect of Hebrew, coming from Hosea’s origins in Israelite territory, and evidenced in a few other places in the Hebrew Bible (e.g., Mays 1969; Stuart 1987; Davies 1992; Macintosh 1997a).

(…)

Andersen and Freedman’s textual work (1980) seeks a third way between the corruption/emendation and northern dialect proposals, arguing for a linguistic method based on comparative ancient Near Eastern texts, and concluding that many of the so-called ‘problematic’ features of Hosea (unusual verb forms, archaic spellings, etc.) are legitimate grammatical and syntactical elements when viewed in their broader linguistic context.

(…)

More recently, Sherwood (2004) has drawn upon postmodernist literary theories to change common conceptions of the irregularities and complexities of the text of Hosea, including especially the hapax legomena, irregular structures, interrupted construct chains, and so on. She reads these features as a ‘disjointed rhythm’ that serves to destabilize the text’s images of God and people, and disorient the reader in ways that engender multiple readings. This perspective, she argues, invites one to explore Hosea’s linguistic particularities through the lens of the postmodern conception of the ‘back-broke sentence’ and the ways in which prophecy uses ‘lexically and sexually exhibitionistic terms’ to confront the reader (2004: 329).

 

No século XX Oseias chamou a atenção dos especialistas em crítica textual, em grande parte porque o texto hebraico do livro é extremamente difícil e muitas vezes obscuro. Praticamente todos os comentários importantes do período moderno contêm alguma afirmação de que o texto de Oseias perde apenas para Jó, na Bíblia Hebraica, quanto ao número de problemas textuais, idiossincrasias literárias e passagens ininteligíveis. E, geralmente, tendo muitos versículos tão mal preservados que o sentido original dificilmente pode ser determinado com certeza. Tais dificuldades linguísticas incluem elipses, hapax legomena e outras construções que vão além da gramática hebraica padrão.

Ao longo dos primeiros três quartos do século XX, os estudiosos de Oseias atribuíram as obscuridades da linguagem do livro à corrupção textual ocorrida no processo de transmissão e, assim, propuseram numerosas emendas baseadas em outros manuscritos e versões disponíveis (…) Contudo, o último quartel do século XX testemunhou uma mudança significativa na avaliação das particularidades textuais de Oseias. Em contraste com as explicações anteriores dos estudiosos envolvendo a corrupção do texto durante a transmissão, o consenso atual [2010] conclui que as dificuldades textuais de Oseias refletem um dialeto peculiar do hebraico do norte, por ser Oseias um profeta do reino de Samaria. Dialeto este que aparece em alguns outros textos da Bíblia Hebraica.

(…)

Entretanto, há autores que buscam uma terceira via entre a proposta de corrupção/emenda do texto e a proposta de um dialeto do norte, concluindo que muitas das Yvonne Sherwood, The Prostitute and the Prophet: Reading Hosea in the Late Twentieth Century. 2 ed. London: Bloomsbury T&T Clark, 2004.características “problemáticas” de Oseias, como formas verbais incomuns, ortografia arcaica etc, são elementos gramaticais e sintáticos legítimos quando vistos em seu contexto linguístico mais amplo, especialmente em comparação com outros textos do antigo Oriente Médio.

(…)

E há autores que recorrem a teorias literárias pós-modernas para explicar as dificuldades do texto de Oseias. Yvonne Sherwood, The Prostitute and the Prophet: Reading Hosea in the Late Twentieth Century. 2 ed. London: Bloomsbury T&T Clark, 2004, por exemplo, lê as irregularidades do texto como a elaboração proposital de um “ritmo desarticulado”, que serve para chacoalhar as imagens de Deus e do povo de Israel, presentes no texto, e desorientar os leitores para que possam fazer múltiplas leituras. Essa perspectiva nos convida a explorar as particularidades linguísticas de Oseias sob a ótica de uma linguagem de impacto que usa termos sexualmente chamativos para provocar o leitor.

Este artigo de Brad E. Kelle, assim como o anterior, pode ser acessado no site Academia.edu.

O livro de Oseias na pesquisa do século XX

KELLE, B. E. Hosea 4–14 in Twentieth-Century Scholarship. Currents in Biblical Research, 8.3, p. 314-375, 2010. Disponível online.

Brad E. Kelle escreveu dois artigos importantes sobre a pesquisa de Oseias no século XX e primeira década do século XXI. Do primeiro, de 2009, sobre O casamento de Oseias na pesquisa do século XX, resumi alguns pontos aqui, aqui, aqui e aqui. Do segundo, sobre Oseias 4-14, de 2010, começo a falar agora. Ele diz na introdução do artigo, nas p. 315-316:

The study of the book of Hosea in the twentieth century and the opening decade of the twenty-first century has been a curious mixture of breadth and myopia, tradition and innovation. On the one hand, scholarship has ranged broadly across interpretive issues relevant to all aspects of the book as a whole, and many of these issues represent the traditional questions that have long been germane to the critical study of all the Hebrew Bible’s prophetic literature. On the other hand, Hosea scholarship in recent decades has witnessed the emergence of innovative approaches to various aspects of the book, including in particular the study of metaphor and its relationship to rhetoric, gender construction, and socio-economic ideologies and structures. Both the traditional and these innovative approaches, however, have operated with an overwhelmingly myopic focus on the marriage metaphor in Hosea 1–3, often to the exclusion of serious engagement with other parts of the book.

The contradictory tendencies toward breadth and myopia have shaped the modern study of Hosea 4–14 in particular (for major surveys of the history of interpretation of Hosea as a whole, see Craghan 1971; Clements 1975; Williams 1975; Seow 1992; Davies 1993; Heintz and Millot 1999; Neef 1999; Sherwood 2004; Kelle 2005). Interpreters have often overlooked the pressing issues found in chs. 4–14 in favor of those raised by the stories and sayings ostensibly related to Hosea’s personal life. For some scholars, chs. 1–3 have served to establish the primary interpretive framework through which all subsequent portions of the book were understood.

Since the final decades of the twentieth century, works within Hosea scholarship evidence an increasing move away from both of the tendencies to underemphasize the interpretive issues in chs. 4–14, and to drive a wedge between the content and dynamics of chs. 1–3 and 4–14. This move has led to fresh considerations of the materials in Hosea 4–14, with, for example, new attention being placed on the text’s metaphors on their own terms, and to the possible shared compositional settings and ideological functions for the book as a whole.

This article sketches the major contours and trends of the modern interpretation of Hosea 4–14, with particular attention being given to scholarship in the second half of the twentieth century (for a similar survey of Hosea 1–3, see Kelle 2009). Unlike the scholarly discussion of other major prophetic collections, such as the book of Isaiah, or even of the marriage imagery in Hosea 1–3, the study of chs. 4–14 does not exhibit a clear movement in which newer methodological perspectives have steadily replaced older, traditional approaches. Rather, nearly all of the long-standing scholarly pursuits concerning chs. 4–14 remain alive in the current critical conversation. Yet, scholars now ask the traditional questions from new angles and bring them into conversation with some previously unexplored lines of inquiry, both of which have largely been generated by interdisciplinary influences, especially those derived from social-scientific analysis and metaphor theory. Form criticism, for example, perhaps constitutes the classic approach to Hosea 4–14, and this perspective continues to occupy a prominent place in examinations of these chapters. But the scholarly literature now places Wolff’s seminal form-critical analysis (1974) alongside Ben Zvi’s reformulation of Hosea’s genre, setting, and function in the provenance of scribal circles in post-exilic Yehud (2005). These reconsiderations of traditional pursuits take shape alongside previously unexplored lines of inquiry, such as synchronic, literary, and theological readings, Book of the Twelve studies, and metaphor theory, which are finding an increasingly prominent place in Hosea scholarship.

 Currents in Biblical ResearchO estudo do livro de Oseias no século XX e na primeira década do século XXI foi uma mistura curiosa de abertura e miopia, tradição e inovação. Por um lado, a pesquisa abrange amplamente questões interpretativas relevantes para todos os aspectos do livro como um todo, e muitas dessas questões representam os problemas tradicionais que há muito tempo são pertinentes para o estudo crítico de toda a literatura profética da Bíblia Hebraica. Por outro lado, a pesquisa de Oseias nas últimas décadas testemunhou o surgimento de abordagens inovadoras para vários aspectos do livro, incluindo, em particular, o estudo da metáfora e sua relação com a retórica, a construção de gênero e as estruturas e ideologias socioeconômicas. As abordagens tradicional e inovadora, no entanto, operaram com um foco predominantemente míope quando trataram da metáfora do casamento em Oseias 1–3, levando muitas vezes à falta de envolvimento sério com outras partes do livro.

As tendências contraditórias em relação à abertura e à miopia moldaram, especialmente, o estudo moderno de Oseias 4–14. Os intérpretes negligenciaram frequentemente os problemas mais importantes encontrados no capítulos 4–14 em favor dos que foram levantados pelas narrativas relacionadas à vida pessoal de Oseias. Para alguns estudiosos, os capítulos 1-3 serviram para estabelecer a estrutura interpretativa primária através da qual todas as partes subsequentes do livro foram compreendidas.

Entretanto, desde as últimas décadas do século XX, a pesquisa de Oseias mostra um distanciamento cada vez maior destas tendências que subestimam as questões interpretativas nos capítulos 4–14 e que criam uma divisão entre o conteúdo e a dinâmica dos capítulos 1–3 e 4–14. Esse movimento levou a novas considerações sobre os materiais em Oseias 4–14, por exemplo, com nova atenção sendo dada às metáforas do texto em seus próprios termos e aos possíveis cenários de composição compartilhada e funções ideológicas para o livro como um todo.

Este artigo traça os principais contornos e tendências da interpretação moderna de Oseias 4–14, com especial atenção para os estudos da segunda metade do século XX. Ao contrário da discussão acadêmica de outras grandes coleções proféticas, como o livro de Isaías, ou mesmo das imagens do casamento em Oseias 1–3, o estudo dos capítulos 4–14 não apresenta um movimento claro no qual novas perspectivas metodológicas substituíram nitidamente as abordagens tradicionais mais antigas. Em vez disso, quase todas as antigas pesquisas acadêmicas sobre os capítulos 4–14 permanecem vivas na atual abordagem crítica. No entanto, os estudiosos agora fazem as perguntas tradicionais a partir de novos ângulos e as colocam em diálogo com algumas linhas de pesquisa anteriormente inexploradas, ambas amplamente geradas por influências interdisciplinares, especialmente aquelas derivadas da análise sociocientífica e da teoria da metáfora. A crítica formal, por exemplo, talvez constitua a abordagem clássica de Oseias 4–14, e essa perspectiva continua a ocupar um lugar de destaque nos exames desses capítulos. Mas a literatura erudita agora coloca a análise crítica da forma seminal de Wolff (1974), juntamente com a reformulação de Ben Zvi do gênero, cenário e função de Oseias na origem dos círculos de escribas no Yehud pós-exílico (2005). Essas reconsiderações das atividades tradicionais tomam forma ao lado de linhas de pesquisa anteriormente inexploradas, como leituras sincrônicas, literárias e teológicas, os estudos do Livro dos Doze e a teoria da metáfora, que estão encontrando um lugar cada vez mais destacado na pesquisa de Oseias.

As metáforas de Oseias 1-3

Brad E. Kelle no artigo sobre Oseias 1-3, p. 202-208, trata dos estudos que olham o texto a partir de suas metáforas.

As the discussion thus far demonstrates, virtually every interpretive trend in scholarship on Hosea 1–3 has concerned itself in some way with the text’s metaphors. Since the 1980s, however, the study of Hosea through the lens of metaphor, especially the use of metaphor theory and the question of the primary function of the text’s marriage imagery, has achieved the dominant position in Hosea scholarship. Naturally, such studies make use of insights from historical reconstruction, comparative data, and gender analysis, but they are characterized by a central concern to elucidate the primary underlying issue(s) or rhetorical focus that stands behind Hosea’s metaphors. Part of the explanation for the prominence of these metaphorfocused studies is dissatisfaction with the results of biographical and historical readings.

(…)

In the various metaphor studies, we find three predominant interpretations of the overall rhetorical issue and metaphorical imagery in Hosea 1–3, with many overlapping features among them:
1. cultic-religious interpretation;
2. socio-economic interpretation; and,
3. historical-political interpretation.

(…)

1. Cultic-religious interpretation

The longest-standing interpretation of the imagery of Hosea 1–3, which has attained nearly unanimous support during various periods of the twentieth century, Brad E. Kelle – Point Loma Nazarene University, San Diego, Californiaunderstands the discourse as addressing a widespread religious conflict in eighth-century Israel between Yahwism and Baalism, and as symbolizing Israel’s apostasy through some form of the veneration of Baal (…) Since virtually all cultic-religious interpretations of Hosea 1–3 link these chapters in some way with a supposed Baalism active in Hosea’s day, scholarship has often looked to the text’s metaphors as sources for reconstructing the history of Israelite religion. Such religio-historical study has produced a massive amount of scholarly attention, and has moved from a relatively stable consensus in the middle of the twentieth century to a state of fragmented debate at present. General questions center on the proper definitions of Baal and Baalism in relation to Hosea’s language and imagery.

(…)

The purported practice of cultic prostitution formed the most prominent example of such fertility interpretations of Hosea 1–3. Scholars drew evidence for this practice primarily from prophetic texts and classical writers like Herodotus, and suggested that Hosea’s sexual imagery portrays Israel as literally engaging in such rituals to Baal (e.g., Mays 1969: 3; Jacob, Keller, and Amsler 1965: 20). Since the 1980s, however, scholars have challenged nearly every aspect of the commonly cited literary and archaeological evidence for this practice in general, and its relevance for the study of Hosea 1–3 in particular (see Bucher 1988; Bird 1989; Nwaoru 1999; Keefe 2001; Kelle 2005). The present consensus seems to be that the notion of an institution of cultic prostitution providing the background for texts like Hosea 2 can no longer be sustained without great caution. These developments concerning the specific notion of cultic prostitution are representative of the changes that have occurred in the last two decades concerning the overall idea of a literal, sexual Baal cult as the key to the religious interpretation of Hosea’s metaphors. Virtually every ‘fertility rite’ proposed by earlier scholars (cultic prostitution, ritual defloration, sexual promiscuity at Baalistic worship festivals, etc.) has come under scrutiny, and the scholarly consensus has moved away from even the general concept of sexualized cultic practices as the background for a religious interpretation of Hosea 1–3’s central rhetorical issue.

(…)

Although the lack of evidence for a sexualized Baal cult in Hosea’s day has led most scholars to move away from cultic, fertility interpretations of Hosea 1–3, the dominant reading of these chapters continues to see widespread, non-sexual Baal worship in eighth-century Israel as the interpretive key for the text’s metaphors (e.g., Stuart 1987; Bucher 1988; Bird 1989; Garrett 1997). Hence, while the metaphors of fornication and adultery may not refer to literal sexual activity, they serve as negative metaphors describing Israel’s veneration of Baal. In keeping with recent changes in the study of the history of Israelite religion, however, the religious interpretation of Hosea 1–3 has become more complex than the notion of a simple conflict between Yahwism and Baalism. Some recent treatments, for example, identify the background of Hosea’s metaphors not as the Israelites’ abandonment of Yahweh for Baal, but as their syncretistic practice of blending or identifying Yahweh with Baal.

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In sum, the dominant religious interpretation of the metaphors of Hosea 1–3 takes many forms in present scholarship, including a conflict between the rival gods Yahweh and Baal, the veneration of numerous local deities, the blending of Yahweh and Baal in Israelite worship, and the presence of ‘non-orthodox’ forms of Yahwism as a part of ‘popular’ religion. These various religious reconstructions and rhetorical analyses, as opposed to the literal sex-cult readings of earlier in the twentieth century, represent the present primary form of the religious interpretation of Hosea’s language and imagery.

2. Socio-economic interpretation

A socio-economic reading of the metaphors of Hosea 1–3 has emerged more recently (…) These studies read the prophet’s speech as directly concerned with shifting social, political, and economic relationships among king, cult, priest, and prophet within Israel’s body politic (…) The female body being prostituted in Hosea 1–3 ymbolizes the social body of eighth-century Israel in the midst of a crisis over communal identity and socio-economic practice (…) Through the symbol of a female body that accepts illegitimate lovers, Hosea condemns Israel’s social body, especially the royal elites who govern it, as accepting a new social organization based on land accumulation and dispossession.

3. Historical-political interpretation

A number of individual studies of different aspects of Hosea 1–3 have moved toward a more thoroughly political interpretation of Hosea’s metaphors (…) Citing the lack of evidence for widespread Baal worship in eighth-century Israel, some of these works (e.g., Schmitt 1989) examine the wife/mother image in Hosea 2 against its ancient Near Eastern background as a metaphor for the capital city of Samaria, and thus for the political leaders who rule there. Others observe the prevalent use of ‘lovers’ as a metaphor for allies in ancient Near Eastern political treaties and biblical texts (see Ackerman 2002; Yee 2003: 104; Kelle 2005: 112-22), as well as the use of ‘fornication’ as a metaphorical vehicle for political and commercial alliances (e.g., Day 2006).

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From these and other observations, Kelle has suggested that Hosea 2 in particular is a rhetorical discourse that attempts to persuade the prophet’s audience to a particular perspective regarding a political crisis. Hosea condemns the political rulers in the capital city of Samaria for their involvement with Aram-Damascus during the Syro-Ephraimitic War by feminizing them as sexually loose women, labeling their political alliances as fornication and adultery, and using the term ‘baal’ for their Aramean ally, in order to evoke an association with sinful Baal worship of Israel’s earlier history. Thus, the metaphors of Hosea 2 work together as a rhetorical speech that offers a metaphorical and theological commentary on the political affairs of Samaria at the time of the Syro-Ephraimitic War, ultimately asserting that the ‘political misdeeds of Samaria and her rulers are equivalent to the religious apostasy of previous generations and constitute a complete abandonment of Yahweh’ (Kelle 2005: 283-84).

 

 

KELLE, B. E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005Como se pode perceber, virtualmente toda tendência interpretativa nos estudos sobre Oseias 1–3 preocupou-se de alguma forma com as metáforas do texto. Desde a década de 80 do século XX, no entanto, o estudo de Oseias através das lentes da metáfora, especialmente o uso da teoria da metáfora e a questão da função primária das imagens matrimoniais do texto, alcançou uma posição de destaque nos estudos de Oseias. Naturalmente, esses estudos fazem uso de insights de reconstrução histórica, dados comparativos e análise de gênero, mas eles são caracterizados por uma preocupação central em elucidar a principal questão subjacente ou foco retórico que está por trás das metáforas de Oseias. Parte da explicação para o aparecimento desses estudos focados em metáforas é a insatisfação com os resultados das leituras biográficas e históricas.

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Nos vários estudos sobre as metáforas de Oseias 1-3, encontramos três interpretações predominantes:
1. interpretação cultual
2. interpretação socioeconômica
3. interpretação histórico-política

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1. Interpretação cultual

A interpretação mais duradoura das imagens de Oseias 1–3, que alcançou apoio quase unânime durante vários períodos do século XX, compreende o discurso como se referindo a um conflito religioso generalizado no Israel do século VIII a.C. entre o javismo e o baalismo, e como simbolizando a apostasia de Israel através de alguma forma de culto a Baal (…) Dado que virtualmente todas as interpretações cultuais de Oseias 1–3 ligam esses capítulos de alguma forma a um suposto baalismo ativo nos dias de Oseias, os estudos frequentemente consideram as metáforas do texto como fontes para reconstruir a história da religião israelita. Esse estudo histórico-religioso chamou a atencão da academia e passou de um consenso relativamente estável em meados do século XX para um estado de debate fragmentado no momento [2009]. As questões mais importantes dizem respeito às definições adequadas de Baal e baalismo em relação à linguagem e às imagens de Oseias.

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A suposta prática da prostituição cultual formou o exemplo mais marcante de tais interpretações de fertilidade de Oseias 1–3. Estudiosos extraíram evidências para essa prática principalmente de textos proféticos e escritores clássicos como Heródoto, e sugeriram que as imagens sexuais de Oseias retratam Israel como literalmente envolvido em tais rituais para Baal. Desde a década de 80, no entanto, estudiosos têm desafiado quase todos os aspectos das evidências literárias e arqueológicas comumente citadas para esta prática em geral, e sua relevância para o estudo de Oseias 1–3 em particular. O consenso atual parece ser que a noção de uma instituição de prostituição cultual fornecendo o pano de fundo para textos como Oseias 2 não pode mais ser sustentada sem grande cautela. Esses desenvolvimentos relativos à noção específica de prostituição cultual são representativos das mudanças que ocorreram nas duas últimas décadas em relação à ideia geral de um culto sexual literal de Baal como a chave para a interpretação religiosa das metáforas de Oseias. Praticamente todos os ‘ritos de fertilidade’ propostos por eruditos anteriores (prostituição cultual, defloração ritual, promiscuidade sexual em festivais baalistas etc.) estão sob suspeita, e o consenso erudito afastou-se significativamente do conceito geral de práticas cultuais sexualizadas como pano de fundo para uma interpretação religiosa de Oseias 1–3.

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Embora a falta de evidência de um culto sexualizado de Baal nos dias de Oseias tenha levado a maioria dos estudiosos a abandonar as interpretações cultuais de fertilidade de Oseias 1–3, a leitura dominante desses capítulos continua a ver o culto generalizado e não sexual de Baal no Israel do século VIII a.C. como a chave interpretativa para as metáforas do texto. Assim, enquanto as metáforas da fornicação e do adultério podem não se referir à atividade sexual literal, elas servem como metáforas negativas descrevendo o culto de Israel a Baal. Contudo, de acordo com as recentes mudanças no estudo da história da religião israelita, a interpretação religiosa de Oseias 1–3 tornou-se mais complexa do que a noção de um simples conflito entre o javismo e o baalismo. Algumas abordagens recentes, por exemplo, identificam o pano de fundo das metáforas de Oseias não como o abandono de Iahweh por Baal por parte de Israel, mas como a prática sincrética de misturar ou identificar Iahweh com Baal.

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Resumindo, a interpretação religiosa dominante das metáforas de Oseias 1–3 toma muitas formas na pesquisa atual, incluindo um conflito entre os deuses rivais Iahweh e Baal, o culto de numerosas divindades locais (os baalim), o sincretismo de Iahweh e Baal no culto israelita, e a presença de formas “não-ortodoxas” do javismo como parte da religião “popular”. Essas várias reconstruções, em oposição às leituras literais do início do século XX, representam a principal forma atual da interpretação religiosa da linguagem e das imagens de Oseias.

2. Interpretação socioeconômica

Uma leitura socioeconômica das metáforas de Oseias 1–3 apareceu mais recentemente (…) Esses estudos leram o discurso do profeta como diretamente relacionado à mudança das relações sociais, políticas e econômicas entre o rei, o culto, o sacerdote e o profeta na organização política de Israel (…) O corpo feminino sendo prostituído em Oseias 1–3 simboliza o corpo social do Israel do século VIII a.C. em meio a uma crise de identidade e condena as práticas socioeconômicas da época (…) Através do símbolo de um corpo feminino que aceita amantes ilegítimos, Oseias condena o corpo social de Israel, especialmente as elites reais que o governam, porque impõem uma nova organização social baseada na desapropriação e acumulação de terras.

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3. Interpretação histórico-política

Uma série de estudos específicos sobre diferentes aspectos de Oseias 1–3 avançaram em direção a uma interpretação mais política das metáforas de Oseias (…) Citando a falta de evidência do difundido culto a Baal no Israel do século VIII a.C., algumas dessas obras examinam a imagem da esposa/mãe em Oseias 2 como uma metáfora para a cidade de Samaria e, portanto, para os líderes políticos que lá governam. Outros observam o uso predominante de “amantes” como uma metáfora para aliados em tratados políticos do antigo Oriente Médio, bem como o uso de “fornicação” como um veículo metafórico para alianças políticas e comerciais.

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Brad E. Kelle, por exemplo, sugeriu que Oseias 2 é um discurso retórico que tenta persuadir o público do profeta sobre uma crise política a partir de um ponto de vista específico. Oseias condena os governantes políticos na capital Samaria por seu envolvimento com Aram-Damasco durante a Guerra Siro-Efraimita, feminilizando-os como mulheres sexualmente dissolutas, rotulando suas alianças políticas como fornicação e adultério, e usando o termo ‘baal’ para seu aliado arameu. Assim, as metáforas de Oseias 2 funcionam como um discurso retórico que faz um comentário metafórico e teológico sobre os assuntos políticos de Samaria na época da Guerra Siro-Efraimita, afirmando em última instância que os “erros políticos de Samaria e seus governantes são equivalentes à apostasia religiosa das gerações anteriores e constituem um completo abandono de Iahweh” (KELLE, B. E. Hosea 2: Metaphor and Rhetoric in Historical Perspective. Atlanta: Society of Biblical Literature, 2005, p. 283-284. Disponível online).

Sobre os estudos feministas de Oseias 1-3

Brad E. Kelle, no citado artigo, explica as abordagens feministas de Oseias 1-3 que emergiram especialmente a partir da década de 80 do século XX. Cito trechos das páginas 197-199:

Beginning in the 1980s, the rising tide of feminist criticism swept into Hosea scholarship alongside the primary currents of historical, comparative, and theological studies (for general surveys, see Boshoff 2002; Baumann 2003: 8-23; Sherwood 2004: 254-322). Within a few short years, gender-based studies came virtually to dominate Hosea scholarship, and chs 1–3 quickly became one of the primary foci of feminist biblical criticism in general.

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The emergence of feminist-critical studies marked a significant shift in Hosea scholarship. As seen above, prior to the 1980s, scholars largely explored Hosea’s marriage metaphor under a theological and historical rubric, emphasizing the experiences of Hosea and the nature of Yahweh’s love (cf. the continuation of this approach in Seifert 1996). Since the rise of feminist criticism, the metaphor has increasingly been examined under topics like pornography and sexual violence (Baumann 2003: 8).

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The basic feminist critique of Hosea 1–3 focuses on both the text’s content and implications, especially the ideological constructions of the imagery and how they shape women’s experiences: the discourse objectifies female sexuality, denies any significant subjectivity to the woman, establishes a hierarchical relationship that equates the divine with male and the sinful with female, and legitimates physical and sexual violence against a woman.

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Another strand of feminist criticism of Hosea 1–3 offers a critique not only of the content of the chapters, but also of the ways in which ancient and modern, especially male, biblical commentators have identified with the text’s imagery, adopted its ideological biases, and reinscribed its misogyny. These critiques often make the observation that commentators have traditionally sympathized almost completely with the purportedly abandoned husband, and ignored Gomer and the children.

 

 

A partir da década de 1980 a crescente onda de críticas feministas invadiu os estudos de Oseias, juntamente com as principais correntes de estudos históricos, comparativos e teológicos. Dentro de poucos anos os estudos baseados em gênero virtualmente dominaram a abordagem acadêmica de Oseias, e os capítulos 1 a 3 tornaram-se rapidamente um dos principais focos da crítica bíblica feminista em geral.

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O surgimento de estudos feministas críticos marcou uma mudança significativa nos estudos de Oseias. Antes dos anos 80 os estudiosos exploraram amplamente a metáfora do casamento de Oseias sob uma ótica teológica e histórica, enfatizando as experiências de Oseias e a natureza do amor de Iahweh. Desde o surgimento da crítica feminista, a metáfora tem sido cada vez mais examinada em tópicos como pornografia e violência sexual.

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A crítica feminista básica de Oseias 1-3 estuda o conteúdo e as implicações do texto, especialmente as construções ideológicas do imaginário e como elas moldam as experiências das mulheres: o discurso objetifica a sexualidade feminina, nega qualquer subjetividade significativa à mulher, estabelece uma relação hierárquica que iguala o divino ao masculino e o pecaminoso ao feminino e legitima a violência física e sexual contra uma mulher.

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Há muitas e diferentes abordagens feministas de Oseias. Uma vertente, por exemplo, faz uma crítica não apenas ao conteúdo dos capítulos, mas também às maneiras pelas quais os comentaristas bíblicos antigos e modernos, especialmente os masculinos, identificaram-se com as imagens do texto, adotaram seus preconceitos ideológicos e reinscreveram sua misoginia. Essas críticas muitas vezes observam que os comentaristas tradicionalmente simpatizavam quase completamente com o marido supostamente abandonado, e ignoraram Gomer e os filhos. Tais comentaristas, ao olhar para Gomer em Oseias 1-3, oscilam entre a fantasia erótica e a condenação moralista.

Ainda sobre a pesquisa de Oseias 1-3 no século XX

Brad E. Kelle em seu artigo, p. 182, indicado aqui, sintetiza a pesquisa sobre Os 1-3 ao longo do século XX da seguinte maneira:

From the early 1900s to the 1980s, the primary interpretive trends of Hosea 1–3 focused on the biography of the prophet and the historical-, form-, and text-critical analysis of the text’s language and imagery (e.g., Harper 1905). Investigations prior to the 1930s dedicated much energy to reconstructing the details of Gomer as an unfaithful wife, while scholarship from the 1930s forward increasingly emphasized the purported background of a sexualized Baal cult in eighth-century Israel, with an increasing emphasis on identifying comparative ancient Near Eastern traditions that shed light on the text’s imagery. Beginning in the 1980s, feminist-critical readings and gender-related issues came to the fore. In subsequent years, a particular focus on metaphor, literary, and symbolic analyses have joined the variety of gender-focused treatments, resulting in new literary and socio-historical readings that revisit older issues and offer previously unseen ways of conceptualizing the book of Hosea as a whole, as well as the marriage metaphor with which it begins.

De 1900 até por volta de 1980, as principais tendências interpretativas de Oseias 1–3 priorizaram a biografia do profeta e as análises histórico-crítica, formal e textual da linguagem e das imagens do livro. Investigações anteriores à década de 30 dedicaram muita energia à reconstrução dos detalhes de Gomer como uma esposa infiel, enquanto a pesquisa a partir da década de 30 enfatizou cada vez mais o suposto pano de fundo de um culto sexualizado de Baal no Israel do século VIII a.C., com ênfase crescente na comparação com tradições do antigo Oriente Médio que esclarecem as imagens do texto. A partir dos anos 80, as leituras crítico feministas e as questões relacionadas a gênero vieram à tona. Nos anos subsequentes, um enfoque particular nas análises metafóricas, literárias e simbólicas juntaram-se à variedade de tratamentos focados no gênero, resultando em novas leituras literárias e sócio-históricas que revisitam questões antigas e oferecem maneiras nunca antes vistas de conceituar o livro de Oseias como um todo, assim como a metáfora do casamento com a qual ele começa.