A lenga-lenga da direita continua

A narrativa que a direita fabrica, consome e distribui para justificar o golpe de 1964: a teoria dos dois demônios

Teoria dos dois demônios é apenas farsa histórica – Breno Altman: 24/7 – 01.04.2014

O cinquentenário do golpe militar traz à baila narrativa que a direita gloriosamente fabrica para enquadrar o episódio. Núcleo fundamental do teorema: os militares romperam a Constituição e tomaram o poder, com amplo da burguesia brasileira, para se anteciparem a supostos planos golpistas de João Goulart e seus aliados. Setores mais lúcidos e malandros do conservadorismo (entre os quais, obviamente, não estão correntes abertamente fascistas) até reconhecem crimes e atropelos da ditadura. Mas a alternativa fardada é apresentada como um demônio que a outro se contrapunha. Os artífices desta explicação reconhecem que a truculência do diabo verde-oliva, de posse dos aparatos de Estado, excedeu a violência de seu inimigo vermelho. Resolvem esse detalhe, porém, valorando a sedição dos quartéis como remédio amargo e exagerado à doença que estaria tomando conta do corpo pátrio e se preparava para o bote final. O roteiro se completa com uma determinada dissertação sobre os desdobramentos de 1968, quando a ditadura impõe o Ato Institucional nº 5. Até então, segundo os teóricos das opções infernais, vivia-se período de autoritarismo brando, que teria sido desafiado pelo surgimento da resistência armada. O endurecimento do regime militar, assim, seria consequência dos mau-modos da besta vermelha, que teriam provocado o descontrole do belzebu das casernas. Nos últimos dias, esta tese tem sido brandida por diversas vozes, com uma ou outra variação. Está presente, por exemplo, nos editoriais da Folha e do Estado, nos quais a mea-culpa vem maquiada e travestida por estas supostas condições históricas. Pesquisadores mequetrefes e penas de aluguel, da extirpe de Marco Antônio Villa, também cantam nesse coro. Sequer um jornalista renomado como Elio Gaspari escapa da tentação de flertar com esta interpretação fuleira. O mais curioso são as pontes erguidas por Fernando Henrique Cardoso e José Serra, vítimas e adversários do golpe, em direção à teoria da dualidade demoníaca, provavelmente no intuito de manter os atuais laços entre a nova e a velha direita, aliança que corresponde ao núcleo duro da oposição contra os governos liderados pelo PT. A questão central é que a ladainha dos infernos está apoiada sobre uma dupla mentira. Não havia qualquer plano ou operação em curso, dirigida por Jango ou os demais protagonistas de esquerda, com o objetivo de executar as reformas prometidas por fora da via institucional e das possibilidades previstas na Constituição. Tampouco a luta armada foi efetivamente implementada, apesar de moralmente legítima desde o putsch militar, antes que os caminhos legais tivessem sido fechados pela decretação do AI-5. O levante de 1964 foi urdido aos poucos, ao longo de quinze anos. Quem estiver interessado, basta ler sobre a fundação da Escola Superior de Guerra, em 1949, depois que o general Salvador César Obino regressa de uma visita ao National War College, nos Estados Unidos, no alvorecer da tensão com a União Soviética.

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