Que as hipóteses de Albrecht Alt e Martin Noth para explicar as origens e a estrutura social do Israel pré-monárquico são insuficientes, a gente já sabe. Mas…
José Ademar Kaefer, Doutor em S. Escritura e Professor no ITESP – Instituto São Paulo de Estudos Superiores -, escreveu na revista Espaços, 18/2, de 2010, p. 169-177, o artigo
Tribalismo na História de Israel: perspectiva de estudos ainda válida?
Kaefer é autor do livro Un pueblo libre y sin reyes: La función de Gn 49 y Dt 33 en la composición del Pentateuco. Estella: Verbo Divino, 2006, 352 p. – ISBN 9788481692365. Do livro se diz: En este trabajo monográfico, José Ademar Kaefer se ocupa de la formación del pueblo de Israel. Su punto de partida es el estudio de dos textos, Gn 49 y Dt 33, tanto a nivel sincrónico como diacrónico.
No artigo Tribalismo na História de Israel Kaefer lembra que os estudos do Pentateuco e dos livros históricos (que prefiro chamar de OHDtr: Obra Histórica Deuteronomista, enquanto outros não gostam deste rótulo!) sofreram significativa reviravolta nas duas últimas décadas. “Textos, até então, considerados antigos, receberam nova datação, bem mais recente da que se supunha, o que colocou em cheque as grandes teorias de estudiosos como Albrecht Alt, John Bright, Martin Noth, G. E. Mendenhall, Norman Gottwald etc. Com isso, assuntos como tribalismo, projeto tribal, tribos de Israel, tornaram-se temas suspeitos e sobre os quais pesa hoje uma grande interrogação. Em compensação as pesquisas recentes voltaram sua atenção à literatura pós-exílica, menos complexa e muito mais segura quanto ao seu contexto vital”.
Entretanto, uma observação, aqui necessária: a afirmação do autor, feita pouco antes disso, de que “o estudo sobre a formação do povo de Israel, que dominou o palco da pesquisa bíblica no século passado, deixou de mostrar interesse nas duas últimas décadas” não é referendada pela quantidade enorme de pesquisas e estudos atualmente desenvolvidos e publicados.
O estudo das origens de Israel continua a ser tarefa fundamental. O antigo Israel, de solução que era – porque antes nos parecia muito bem conhecido através da Bíblia Hebraica – tornou-se, hoje, um problema a ser enfrentado, isto quando não se considera o texto bíblico como fonte primária, mas, muito mais apropriadamente, como fonte secundária, e a arqueologia tem a maturidade para deixar de ser “bíblica” e se tornar arqueologia da Palestina. Recomendo, sobre isto, conferir um item de meu esboço de “História de Israel”, As fontes: seu peso, seu uso e uma postagem de 28 de janeiro de 2007 no Observatório Bíblico, onde falo de Uma brilhante defesa de Finkelstein.
Mas, voltando ao artigo de Kaefer, ele afirma, em seguida:
“O que fica, então, do tribalismo ou do projeto tribal na Bíblia? Acreditamos que o avanço da pesquisa bíblica, de forma alguma, deve levar-nos ao abandono desse assunto. Antes, devemos, a partir de novas descobertas, rever e enriquecer tal referência, tão essencial para o estudo e ação pastoral libertadora. A passagem bíblica que nos propomos a estudar para ajudar-nos a lançar luzes sobre o complexo tema das tribos de Israel é Gn 49,19” [sobre Gad]. E a estela de Mesha, rei de Moab, encontrada em Dibon no século XIX, que faz referência a Gad.
No final, após o estudo destas duas fontes sobre a tribo de Gad, o autor define:
“Em uma situação semelhante à de Gad se encontrava a maioria das pequenas tribos do interior de Canaã e arredores mencionadas em Gn 49, Zabulon, Issacar, Dã, Aser e Neftali, continuamente espoliadas pelo poder de turno; ora pelo Egito, ora pelas grandes tribos como Efraim e Judá, ou algum monarca local, e ora pelos fenícios. Portanto, a ideia de uma grande união e organização das 12 tribos em torno de um único santuário, formulada por Noth e outros, nunca existiu. O esboço desse projeto delineado na literatura bíblica não passa de um sonho dos teocratas do Segundo Templo. A própria distância entre as diversas tribos, que eram mais de 12, além de suas diferenças culturais, não tornaria isso viável. Além disso, os poderes locais tinham outros interesses”.
E conclui:
“O que resta, então do projeto tribal, esta proposta tão encantadora, que manteve acesa a utopia dos pequenos na luta por um mundo mais igualitário e justo? O que resta desta proposta, cujos rastros perpassam toda a literatura do Primeiro e Segundo Testamento, denunciando os poderes centralizadores das monarquias de ontem e de hoje? Resta a aldeia comunitária, não mais na magnitude que se imaginava antes, mas com a mesma proposta e que, pela partilha e vivência cotidiana, sobrevive no interior de Canaã, apesar das cidades-estado, das monarquias e dos templos, até onde a história de Israel alcança”.
Termino com três observações:
. o texto, querendo ou não, mostra o impasse a que se chega quando se tenta fazer história de Israel (exclusivamente ou primordialmente) a partir de textos bíblicos escritos no período do Segundo Templo
. mostra a necessidade de superação da “arqueologia bíblica” em benefício de uma arqueologia da Palestina (ou outro nome válido que se queira dar àquele território)
. dá razão, por outro lado, às várias propostas do surgimento de Israel de maneira fragmentada, a partir de Canaã, através de lentas e complexas mudanças econômicas, políticas, sociais e religiosas. É o caso de se conferir, sobre isso, os possíveis cenários de uma evolução pacífica e gradual de (parte de) Canaã para Israel.