Narrativas de Deus na Literatura Latino-americana

A narrativa literária de Deus na América Latina

Que sociedade é essa que estamos inseridos, atualmente? Para alguns, essa é uma sociedade pós-metafísica, uma sociedade que busca apoio da religião, mas reconstrói a genealogia da razão com pessimismo, de maneira considerada até derrotista. Como narrar Deus nessa sociedade? Para discutir a atualidade a partir de questões éticas, do pensamento religioso e da cultura, o Instituto Humanitas Unisinos – IHU está promovendo até 26 de abril, uma programação especial de Páscoa. Nestes eventos, o IHU está realizando um conjunto de atividades integradas que pretendem compreender o impacto da figura de Jesus na cultura contemporânea. E, hoje, dia 26-03-2009, o professor da Universidade Federal do Paraná e diretor-adjunto do escritório da Fundação Ética Mundial no Brasil, Paulo Soethe, fará uma palestra intitulada Narrativas de Deus na Literatura Latino-americana. Soethe refletirá sobre como a América Latina fala sobre Deus e que influências essa narrativa sofre nesse contexto da literatura e, ainda, poderá esclarecer expressões simbólicas de narrativas religiosas que destacam e diferem a literatura latino-americana de outros países fora desse eixo. A palestra de Paulo Soethe é parte da programação do IHU Ideias durante o período da Páscoa.

Um trecho da reportagem sobre a palestra do Professor Paulo Soethe, Narrativas de Deus na Literatura Latino-americana:

(…) A partir de João Guimarães Rosa (1908-1967), por exemplo, o “nosso escritor maior”, segundo Soethe, também se percebe a emergência de uma nova forma de habitar o mundo e de novos estatutos das trocas culturais. Ou seja, o autor consegue criar uma abrangência que ultrapassa os limites da mera literalidade. Citando Wolf Lustig, Soethe percebe nessa literatura a correlação de vivências genuinamente americanas com situações básicas e existenciais que “qualquer homem em qualquer rincão do mundo” pode ter vivido. Também em sua relação com Deus.

De uma gama de grandes autores, ainda muitas vezes esquecidos na academia, como Jorge de Lima, Cornélio Pena, Alceu Amoroso Lima e Cecília Meireles, Soethe citou três obras chaves para uma releitura das narrativas de Deus na literatura brasileira: “Grande Sertão Veredas”, de Guimarães Rosa; “Lavour Arcaica”, de Raduan Assar; e “Crônica da Casa Assassinada”, de Lúcio Cardoso.

Nessas obras, afirmou, encontram-se imagens jesuânicas (de Jesus), ou mesmo crísticas (de Cristo), marcantes, que se revelam por meio de personagens como Diadorim, Ana e Nina, respectivamente. Essas figuras, todas femininas, por meio de sacrifícios e imolações que sofrem durante as narrativas, trazem grandes reflexões sobre culpa e pecado, amor e redenção. Essas temáticas, explicou Soethe, são muito caras ao cristianismo e, por isso, também à própria cultura latino-americana e brasileira, pois remetem diretamente a representações da figura de Jesus Cristo, como o redentor.

“As figuras de Deus estão muito ligadas à figura do Filho na tradição cristã. Deus também é visto, na tradição do nosso continente, como anseio, como aquela presença motivadora também em cenas coletivas. Ou seja, a fé do povo reunido, que tem uma espécie de horizonte de esperança muito próxima da figura de Deus Pai”, comentou. Segundo Soethe, Deus muitas vezes aparece positivamente, como objeto de fé e de culto da população empobrecida, mas também como ausência, “como aquele que é ansiado e não é encontrado”, explicou.

Além disso, a literatura latino-americana, embora mergulhada em um ambiente cristão e de fé popular, também problematiza, de uma maneira muito madura, a dimensão do mistério e da teodiceia, comentou Soethe. “Por que tanto sofrimento se há Deus? Por que um povo que tem tanta fé precisa sofrer tanto? Deus é colocado em questão pelos escritores como ausência, como um eventual agente de injustiça, o que teologicamente é muito provocativo e que acaba constituindo uma contribuição importante da literatura latino-americana”, afirmou.

Com relação à literatura e a sociedade contemporâneas, Soethe revela que há uma necessidade de se reativar o fundamento e o substrato da solidariedade, tão marcado e marcante nas obras que revelam o sertão brasileiro. Ou seja, a alegria de viver mesmo na simplicidade da vida e da realidade. Segundo Soethe, esse “padrão ético” mostra-se um desafio e um convite ao mundo desenvolvido, que parece encontrar a felicidade apenas onde há riqueza. Nesse sentido, Soethe ainda defendeu uma possível “reinteriorização” do Brasil, com a valorização das pessoas e da cultura do campo, também muito marcado pela figura de Deus.

E aqui cabe o trecho da obra de Guimarães Rosa, que resume bem a imagem de Deus do autor, que colaborou, segundo Soethe, a partir da literatura, com o imaginário religioso do Brasil e com a própria reflexão social do país, juntamente com grandes autores como Gilberto Freire e Sergio Buarque de Holanda. Assim diz Rosa: “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se resolve. […] Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois no fim dá certo“.

Veja o vídeo.

Fonte: IHU – 26 e 27 de março de 2009.

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