D. Aloísio Lorscheider, lúcido e valente – Luiz Alberto Gómez de Souza – Carta Maior: 24/12/2007
Eu trabalhava com D. Hélder, numa daquelas salas escuras do Palácio São Joaquim, quando ele nos anunciou: “quero apresentá-los o jovem bispo de Santo Ângelo, da zona missioneira do Rio Grande, importante teólogo, que será uma figura central na Igreja do Brasil”. Tínhamos diante de nós um bispo alto, fala com sotaque forte da região alemã e, por que não dizê-lo, um tom de voz meio estranho. Creio que foi no meio do Vaticano II. Logo se faria entender na Conferência dos Bispos, com intervenções lúcidas, a ponto de ser eleito secretário geral da CNBB. Tempos da ditadura e da repressão. Sua fala mansa escondia uma firmeza e uma precisão que deixavam os presidentes militares irritados. Outro gaúcho, este de poucas luzes, que não via além das cavalariças, Médici, o expulsou irritado de sua sala. D. Aloísio passou depois a presidente da CNBB, em dobradinha com seu primo, Ivo Lorscheiter, como novo secretário geral. Sobrenomes quase iguais, um com d, outro com t, eram da mesma família. Nunca foi tão apropriada essa combinação de parentesco, ideias e complementariedade. Ivo era mais explosivo, Aloísio falava manso. Entendiam-se sem precisar falar um com o outro. Dois valentes em tempos de chumbo.
Ivo recebeu o patriarca de Veneza, Albino Luciano, em sua casa em Santa Maria e quando morreu Paulo VI, este votou várias vezes, no conclave, no primo dele, Aloísio. Estava no ar seu nome para papa. Alegavam alguns, que pensavam em italianos, que tinha problemas de coração, passara por um enfarto. Queriam afastar a ele e ao Cardeal Arns , dois franciscanos, como possíveis e perigosos papas. Foi eleito o patriarca, que viveu 33 dias em Roma. Nova eleição e voltou o nome de Aloísio. Novamente levantaram o pretexto de saúde, agora agravado pela morte fulminante de João Paulo I. Preferiram um polonês jovem que era esquiador e que instalou-se no papado por mais de um quarto de século. Mas a verdade é que partiu antes de D. Aloísio e seu pontificado foi, como disse alguém, a volta à grande disciplina.
Os dois se encontraram na reunião dos bispos em Puebla, janeiro de 1979. O novo papa chegou falando duramente em seu discurso. Lembro como vários de nós, que estávamos ali, do lado de fora, assessorando oficiosamente bispos amigos, ficamos desalentados e pessimistas. Foi o grande teólogo Gustavo Gutiérrez quem deu ânimo. O texto do papa tinha três partes, duas negativas e a terceira abrindo caminhos. Nosso peruano, com a resistência índia diante de tantos anos de dominação, deu a chave: ler as duas primeiras partes à luz da terceira! Mas o grande momento estava por vir, no dia seguinte. D. Aloísio, nesse momento, era presidente do Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM). Fez um discurso curto e claro, abrindo os trabalhos. Era hora, disse ele, de pensar com liberdade e ousadia os graves problemas de nossa região. Liberou a assembleia e entrou uma luz que abriu portas e janelas.
Alguns bispos mais conservadores, depois do discurso do papa, chegaram a dizer que agora bastava tomar seu texto e publicá-lo como documento da assembleia. O plenário não aceitou e Puebla, confirmando a reunião anterior de Medellín, denunciou o pecado social do continente, fez a opção pelos pobres. e anunciou as comunidades eclesiais de base como instrumentos de evangelização e de transformação. Graças em boa parte ao clima que D. Aloísio criou e a um grande bispo que iria ser seu sucessor na CNBB anos mais tarde, Luciano Mendes de Almeida, na comissão coordenadora dos debates.
Pela política vaticana, nunca foi nomeado para Rio ou São Paulo, mas ficou em Fortaleza, que pela primeira e talvez única vez teve um cardeal. Depois, o mandaram para Aparecida, diocese mais honorífica que importante. Seu primo também nunca chegou a arcebispo de Porto Alegre, preterido por bispos anodinos e morreu bispo em Santa Maria. As cúrias temem figuras fortes. D. Hélder , como mais tarde D. Luciano, não veio ao Rio, nem foi cardeal, ainda que, ao que parece, João XXIII o chamou uma vez de “il mio cardinaletto.”
Nos últimos anos, D. Aloísio partiu para o convento franciscano de Porto Alegre, onde morreu. Mereceria uma biografia, como algumas que foram surgindo, do Cardeal Arns, Hélder Câmara, Waldyr Calheiros e vários outros. Através delas podemos reconstituir uma época gloriosa da Igreja Católica brasileira. Não sou pessimista, achando que as grandes figuras ficaram no passado. Alguns se referem às nomeações de bispos conservadores. O que esquecem é que vários bispos, como D. Hélder ou D. Romero, vieram de posições tradicionais e o trabalho pastoral e o povo de Deus os converteram. Tenho feito reparos a uma posição política de D. Cappio, misturando Fé e posições de cidadania, valentes sem dúvida, ao mesmo tempo que insisto em seu carisma, junto com valentes bispos hoje aposentados e outros como Erwin Keutler, Demétrio Valentini ou Moacyr Grechi, que aí estão para sinalizar posições significativas.
Mas o importante não são apenas bispos, o que seria uma visão de cima para baixo, mas a ação eclesial de pastorais, CEBs e movimentos, renovando e abrindo caminhos. Esse trabalho nas bases tem aberto os olhos de pastores e clero. D. Aloísio foi um teólogo que entendeu a caminhada do povo de Deus e ficará como um marco numa Igreja que terá que se renovar e superar simplismos e medos de certos temas (sacerdócio de mulheres e casados, sexualidade, reprodução, ecumenismo), mantendo a opção pelo pobre e excluído, para saber enfrentar os desafios deste século XXI. Isso sem misturar planos, mas aceitando que vivemos numa sociedade secular laica, onde a Igreja tem de renunciar a ressaibos de velhas cristandades e, humildemente, dar testemunho aos lado de tantos “homens e mulheres de boa vontade”, para usar a expressão de João XXIII, que também anunciou primaveras pela frente.