Paulo de Tarso: um mestre que faz pensar?

A redescoberta de Paulo pela pós-modernidade. Entrevista especial com Alain Gignac

Alain Gignac é enfático ao dizer que a redescoberta de Paulo de Tarso pela pós-modernidade se dá em dois sentidos. “Paulo alimenta a (pós)modernidade, e esta permite redescobrir Paulo”. Um mestre que faz os filósofos ocidentais pensarem, mesmo os ateus. “Para todos esses filósofos, a leitura das cartas foi determinante como catalisador de seu próprio pensamento – que não se situava necessariamente na linha de Paulo e, mesmo seguidamente se opunha a ele”. E Paulo nos confronta na época de individualismo e consumismo exacerbados em que vivemos, provoca Gignac: “Na história da literatura, trata-se do primeiro escritor a se expressar em ‘eu’ com tal força. Mas o ‘eu’ de Paulo é livre e inscrito em uma comunidade, não é individualista e isolado, nem escravo e alienado”.

Enquanto forem ligadas, suas cartas continuarão nos forçando a refletir. Por isso, “não há momento propício para ler Paulo, mas ao contrário, a leitura de Paulo pode criar um momento propício, o momento capaz de criar o novo”. Analisando as críticas de Nietzsche a Paulo, Gignac aponta que o filósofo alemão “dissocia Jesus e Paulo para opô-los e para atacar o apóstolo se servindo de um Jesus que lhe convém”. E completa: “O cristianismo não está fundado em Jesus, mas no Cristo – ou seja, uma interpretação pascal da vida e da morte de Jesus”. A respeito da morte na cruz, o teólogo destaca que Paulo sabe que esta é uma “morte vergonhosa, mas ele está longe de dizer que se trata de uma morte gloriosa. Paulo não exclui o sofrimento nem o escândalo da morte. Sua retórica não visa à sublimação, mas marca fortemente o paradoxo”.

Gignac é professor assistente na Faculdade de Teologia e Ciências da Religião da Universidade de Montreal, do Canadá, desde 1999, onde leciona Novo Testamento. Especializado no corpus paulino, ele interessa-se pelos métodos de análise sincrônica (retórica, estrutural, narratológica e intertextual) e os seus impactos hermenêuticos. A sua investigação Ler a Carta aos Romanos hoje, subvencionada pelo governo canadense, propõe-se reler os romanos com estes métodos, mas também sobre o horizonte do questionamento moderno/pós-moderno: como o escrito paulino propõe uma identidade e um agir no seu leitor? De sua produção acadêmica, citamos Juifs et chrétiens à l’école de Paul de Tarse. Enjeux identitaires et éthiques d’une lecture de Rm 9-11 (coll Sciences bibliques 9, Montréal, Médiaspaul, 1999, 342 p.). A entrevista foi concedida por e-mail, com exclusividade à IHU On-Line. Os subtítulos são nossos.

 

A entrevista

IHU On-Line – Como a leitura das Cartas aos Romanos propõe uma identidade e um agir em seus leitores?

Alain Gignac – Para além dos efeitos retóricos, as cartas de Paulo se apresentam como um discurso que constrói a realidade. Constantemente, Paulo trabalha dois eixos que devem se coordenar: identidade e agir, indicativo e imperativo, visão do mundo e valores que se ligam uns aos outros: “Eis o que sois – o que somos! Agis em conseqüência”. Este jogo de linguagem pode ser analisado sobre dois planos: a enunciação e os enunciados.

Sobre o plano da enunciação, o leitor é convidado a tomar partido, em um jogo de pronomes particularmente perigoso. Há um “eu” (1a pessoa) que se dirige a um “tu” ou a um “vós” (2a pessoa, singular ou plural) em relação a um terceiro ao mesmo tempo ausente e muito presente: Cristo (que ocupa o lugar da 3a pessoa). Para complicar as coisas, “eu” se faz algumas vezes solidário de “vós” e passa assim ao “nós”. Ainda que se saiba, historicamente, que “vós” corresponde aos destinatários de Paulo (as comunidades que ele fundou), não impede que o leitor que abre o texto hoje seja influenciado por este dispositivo enunciativo. Ainda que ele possa resistir, ele é interpelado a se sentir concernido por este “vós”, ainda mais que o “eu” que toma a palavra o faz com grande intensidade. Ao longo das cartas, o “eu” paulino busca expressar a força, a profundidade do pertencimento de “vós” ao Cristo: “Vós estais em Cristo, viveis em Cristo, o Cristo está em vós”. Isto revela a intensidade. Em outras palavras, o leitor é conduzido pela enunciação do texto a identificar-se com este tipo de retrato-falado de “vós” que se constrói pouco a pouco ao longo da leitura. Ora, se o “eu” que se exprime nas cartas indica a “vós o que eles são, este “eu” não se constrange de lhes formular uma série de imperativos, de recomendações, de sugestões para balizar seu agir.

Novidade da experiência cristã

No plano dos enunciados, Paulo procura falar da novidade da experiência cristã. Como falar da inédita novidade da ressurreição com velhas palavras, gastas? Paulo não tem vocabulário adequado para descrever o que deve descrever. A partir dos materiais extraídos da cultura do século I, das escrituras judaicas e das tradições orais das primeiras comunidades cristãs ele vai criar uma nova linguagem. Isto feito, ele vai ainda contribuir para a construção de uma nova identidade para seus interlocutores. Por assim dizer, Paulo retrabalha o material, o desconstrói e compõe assim uma nova mensagem.

Romanos 3,21-26 é um bom exemplo do procedimento. Esta passagem fala da justificação pela fé. Paulo encadeia quatro metáforas saídas de quatro registros diferentes: 1) Registro jurídico: a justiça de Deus se manifesta sem a lei, fora da lei. Esta primeira metáfora é também um oxymore, pois uma justiça é inconcebível sem uma lei. A justiça de Deus é estranha, ela se situa para além de nossas concepções humanas da justiça. Ainda mais que, para ouvidos gregos, “ser justificado” tem conotações de condenação (equivalente à expressão francesa “passar em justiça”), enquanto que em Romanos 3, 21-26, isto se torna sinônimo de salvação; 2) Registro litúrgico: esta manifestação da justiça é análoga (ao mesmo tempo semelhante e diferente) ao ritual do Yom Kippour descrito em Levítico 16. A morte de Jesus funciona como um rito anual de renovação da aliança inscrito no Antigo Testamento, enquanto o Grande padre irrigava o arco da aliança de sangue; 3) Registro socioeconômico: a justiça de Deus revelada pela fidelidade de Jesus até a sua morte lembra a alforria do escravo pelo seu dono. Paulo utiliza um exemplo comum da vida cotidiana na Antiguidade para descrever a ação de Deus em relação a “vós”. Metaforicamente, a identidade cristã é descrita como uma libertação da escravatura; 4) Registro da contabilidade: a justiça de Deus perdoa os erros como um banqueiro perdoaria repentinamente a dívida de alguém que se tornou superendividado.

Esta sucessão de metáforas tem um efeito estranho, ainda que sejam tiradas da linguagem de pessoas comuns. As quatro imagens se encadeiam rapidamente e se entrechocam. Elas dizem todas a mesma coisa e, ao mesmo tempo, não são perfeitamente compatíveis entre elas. Provocam um curto-circuito que convida a refletir, a se questionar e a redefinir, diante da nossa concepção de Deus. Para construir uma identidade nova (ou renovada), é preciso antes desconstruir a identidade primeira.

IHU On-Line – Qual é o principal desafio em ler Paulo de Tarso?

Alain Gignac – O principal desafio é ler Paulo tomando um distanciamento em relação às grandes leituras do passado, como a leitura luterana e a sua justificação pela fé – sem, todavia jogar esta herança na lixeira. Podemos ler o texto de Paulo sem um parâmetro preconcebido que aplica ao pé da letra uma dogmática ou uma ideologia predefinida? Podemos fazer de Paulo não um mestre de pensamentos prontos, mas um mestre que faz pensar? De toda forma, Paulo não tem um bom vocabulário, como eu disse acima. Ele é o primeiro cristão a colocar palavras sobre a sua fé, e precisa tudo reinventar. Além do mais, procura responder aos problemas concretos que vivem as comunidades. Não se trata de um teórico ou alguém que vive na abstração. Paulo de Tarso responde a perguntas difíceis – mas não tem as respostas. Tenta encontrá-las, mas chega somente a vestígios parciais. Seu pensamento se constrói e se elabora diante de nós. Não é fácil entendê-lo. A “imperfeição” pode provocar certas frustrações, mas pode tornar-se uma maravilhosa escola. Como podemos fazer o mesmo trabalho criativo, para reinventar o vocabulário cristão possível de expressar hoje a identidade cristã? E como articular esta identidade com um agir de transformação?

Confesso aqui, tomando consciência de meus propósitos, que há talvez uma perspectiva (pós)moderna na minha resposta: minha preocupação em entender o questionamento de Paulo, aceitando antecipadamente que tudo não será coerente, que não poderei encontrar um centro em sua teologia, que não terei a resposta perfeita para as minhas questões sobre o humano e sobre Deus lendo Paulo…

Para ilustrar o que eu exprimo aqui, pode-se novamente retornar aos Romanos 3, 21-26 – um texto- chave de Paulo e da história da interpretação. As quatro metáforas utilizadas por Paulo, das quais somente uma é verdadeiramente tirada de sua formação teológica farisaica (referência ao Yom Kippur), foram soldadas juntas, chocadas violentamente, homogeneizadas. E elas deram origem a uma linguagem teológica: justificação, sacrifício expiatório, redenção, perdão dos pecados, palavras que transportam agora com elas sua bagagem de conceitualidade. Como ler imagens de Paulo, não mais como uma linguagem técnica teológica, que acreditamos captar de imediato, mas em sua vivacidade original? Como redescobrir o choque que sua amálgama constitui? Como perceber com acuidade que o texto procura primeiro dizer… que ele não sabe como dizê-lo? Eis todo um desafio.

IHU On-Line – Podemos falar em uma redescoberta de Paulo de Tarso pela pós-modernidade?

Alain Gignac – Esta descoberta se faz em dois sentidos. Paulo alimenta a (pós)modernidade, e esta permite redescobrir Paulo. Um livro recentemente publicado no quadro dos trabalhos do Romans Through History and Cultures Seminar(1) é esclarecedor a este respeito. De um lado, pensadores, no movimento direto ou não da (pós)modernidade, lêem as cartas de Paulo – os nomes mais marcantes são Jacob Taubes, Slavoj Žižek, Giorgio Agamben, Alain Badiou. O mínimo que se pode dizer é que estes autores muito perspicazes e muito penetrantes – que têm a sorte de não terem feito estudos em teologia (!) – nos fazem redescobrir Paulo! De um lado, utilizam-se muito do pensamento de um Jean-François Lyotard (2) ou de um Jacques Derrida, (3) ou ainda da filosofia do processo (process philosophy) para reler-se de outra forma as cartas de Paulo.

Por que se fala de redescoberta? Talvez por que há um eclipse (passageira) após a Segunda Guerra mundial? Na época em que o marxismo e depois o estruturalismo ocupavam toda a cena? Todavia, os “novos” leitores de Paulo não são tão inovadores, uma vez que eles se inscrevem em uma longa tradição a exemplo de John Locke, (4) Friedrich Nietzsche, Soren Kierkegaard, (5) Max Weber (6) ou Martin Heidegger.(7) Os filósofos ocidentais, mesmo ateus, leram Paulo em seu tempo. Para todos esses filósofos, a leitura das cartas foi determinante como catalisador de seu próprio pensamento – que não se situava necessariamente na linha de Paulo e, mesmo seguidamente se opunha a ele. Isso prova que Paulo é um mestre… que faz pensar!

IHU On-Line – Em entrevista anterior à nossa revista, o senhor equipara Paulo a Agostinho, (8) Kant (9) e Hegel (10) como um dos fundadores do Ocidente. Quais são suas maiores contribuições a nós, homens e mulheres que vivem a pós-modernidade e suas contradições?

Alain Gignac – Começando a refletir sobre a sua questão, percebo que seria necessário um livro para respondê-la. Eu levantaria brevemente quatro pontos: ética, antropologia teologal, universalismo, ecologia.

Primeiramente, em uma época de individualismo e de consumismo exacerbados, Paulo nos confronta. Na história da literatura, trata-se do primeiro escritor a se expressar em “eu” com tal força. Mas o “eu” de Paulo é livre e inscrito em uma comunidade, não é individualista e isolado, nem escravo e alienado. Paulo é radical e exigente: a liberdade é preciosa e não poderia ser vendida. Além disso, todas as exortações paulinas convergem a isso: tudo o que se faz deve edificar, construir o indivíduo e a comunidade – indissociáveis. Creio então que a ética de Paulo seria uma herança a ser adotada – apesar de sua má reputação, Paulo não é um moralista, mas um liberal.

Em segundo lugar, creio também que sua concepção segundo a qual somos filho e filha de Deus, amados pelo criador do universo e co-herdeiros do Cristo – e então que podemos fazer esta experiência da filiação, que é a experiência do sopro de vida (espírito santo) em nós –, esta concepção é simplesmente revolucionária. Esta experiência de participar da própria vida de Deus funda também a fraternidade humana. Poder-se-ia repensar os direitos do homem (tão seguidamente desrespeitados) à luz de Paulo?

Em terceiro lugar, creio que a palavra de Paulo ainda não está ultrapassada: “Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3, 28).

Em quarto lugar, nesta época de desequilíbrio ecológico e de aquecimento climático, é preciso reler a passagem, em Romanos 8, em que Paulo afirma a interdependência entre a humanidade e o cosmos, dos quais ele compara os sofrimentos a um trabalho de gestação.

IHU On-Line – Por que considera Paulo o maior pensador messiânico de todos os tempos?

Alain Gignac – Não sou o autor desta ideia: trata-se mais precisamente do tema de Agamben, que tem uma visão bastante especial, pós-comunista, do messianismo, na linha de Walter Benjamin. (11) Agamben “descristologisa” o messianismo de Paulo, o esvazia do alcance experiencial (crer no Cristo aderir ao Messias, lhe dar a sua fé), para manter somente a estrutura. Para Agamben, o messianismo é uma postura e uma atitude política. É claro, minha leitura “messiânica” de Paulo é a de um teólogo, e não a de um filósofo. Para mim, Paulo é o primeiro que articulou uma cristologia – um discurso sobre Jesus Messias. Para o Apóstolo, a morte/ressurreição do Cristo constitui o pivô da história do mundo, do momento chave em que tudo se transforma em que se manifesta a justiça de Deus, no qual a idade de uma nova criação advém e substitui a idade antiga. Se tivéssemos somente os evangelhos, nossa reflexão sobre o Cristo seria amputada. Paulo é o primeiro pensador messiânico – foi nisso que ele contribui para fundar a Igreja.

IHU On-Line – Poderia explicar por que a nossa época seria o momento propício para compreender Paulo, e por que ele seria um dos textos maiores para compreender nossa época ?

Alain Gignac – Trata-se novamente de uma intuição (ou mesmo de uma obsessão) de Agamben: alguns momentos da história permitem melhor captar e atualizar as potencialidades de um texto. Nossa época seria a primeira a poder realmente captar a complexidade decisiva do pensamento paulino. Ora, isto é ou pretensioso ou milenarista. Acredito mais que o sentido de um texto, ou seja, sua orientação, está sujeito ao longo das idades e em função das épocas, a interpretações múltiplas, ou mesmo infinitas. Estas interpretações se acumulam e valorizam sem cessar as potencialidades de um texto do qual não se tinha tomado consciência até então. Cada geração pode então reler Paulo com proveito – e de fato, releu-se Paulo há 20 séculos. Por que não a nossa geração? Mas não temos o monopólio da interpretação correta de Paulo!

As cartas de Paulo constituem um grande texto? Neste aspecto, desconfio de mim mesmo, pois um crente acha o texto bíblico… inspirador. As cartas de Paulo possuem um poder intrínseco, ou se vêem investidas pelo leitor deste poder? Tudo é a ambivalência da noção de “clássico”: isto supõe uma seleção que, ao mesmo tempo, se impõe a nós e continua apesar de tudo arbitrária. Um clássico (o que se lê em classe… como leitura escolar obrigatória) será uma fonte, se o abrirmos. Um livro que não se lê, tenha ele tido o maior poder de subversão do mundo, continuará morto, à espera de ser atualizado.

Cartas que nos forçam a refletir

As cartas de Paulo, enquanto forem lidas (pois podem cessar de serem lidas: o que é um clássico pode cair em abandono), saberão nos sacudir, nos confrontar, nos forçar a refletir. A história da interpretação antes de nós mostra isso amplamente. Não há momento propício para ler Paulo, mas, ao contrário, a leitura de Paulo pode criar um momento propício, o momento capaz de criar o novo. Por quê?

Essencialmente por três razões – provavelmente interligadas. Primeiramente, a temporalidade paulina é construída sobre o modo do kairós que surge e vem interromper o chronos (cronologia): Bultmann (12) o salientou bem (e, paradoxalmente, cada um a sua maneira, Badiou e Agamben). O “agora” e o “doravante” são muito fortes em Paulo e colocam constantemente o leitor diante da urgência de uma decisão. (Mais uma vez, pode-se reler Romanos 3, 21-26, que começa por um sonoro “mas agora”.) Em segundo lugar, há um poder, uma veemência em Paulo – mas sou talvez influenciado pelo meu status de crente, para quem se trata de um texto canônico de referência. A poesia, a retórica, a implicação impetuosa de uma personalidade excepcional: parece-me que o texto paulino possui uma grande eficácia performativa. Em terceiro lugar, as cartas paulinas – e é provavelmente a razão pela qual os cristãos as conservaram – mantêm a marca da experiência da ressurreição.

IHU On-Line – Qual é seu parecer sobre a acusação de Nietzsche a Paulo de que ele deturpou o ensinamento de Cristo?

Alain Gignac – Não sou um especialista em Nietzsche, mas, à maneira do filósofo alemão, permitam-me jogar com as palavras. De sua parte, não se trata de uma maledicência (fundamentada), mas de uma calúnia (inventada). Nietzsche dissocia Jesus e Paulo para opô-los e para atacar o apóstolo se servindo de um Jesus que lhe convém. Nietzsche fabrica uma imagem de Jesus para, em seguida, provar sua tese segundo a qual Paulo inventou uma forma religiosa aberrante, o cristianismo, que toma o exato contrapé do ensinamento do fundador, do qual Paulo se proclama, no máximo da desonestidade, o mensageiro. Sobre isso, duas coisas. De um lado, para o apóstolo, Jesus não é uma mensagem, um ensinamento, um conjunto de valores mais ou menos humanistas, mas uma experiência (isto, Badiou entendeu melhor do que Nietzsche). Nós nos lembraríamos da personalidade e da sabedoria de Jesus, se os primeiros cristãos não tivessem feito a experiência de um encontro libertador do Vivo? Por outro lado, Nietzsche não soube ver que as cartas de Paulo são o eco do ensinamento de Jesus de Nazaré – mesmo se este é citado somente em caso raro (e, nestes casos raros, jamais de maneira muito clara, inclusive). O amor fraterno, a doçura, o ideal de perfeição evangélica que impulsiona o humano para o alto sem esmagá-lo sob uma moral do dever – tudo isto é muito presente em suas cartas.

IHU On-Line – Nessa perspectiva, qual sua posição sobre a pretensa teologia do ressentimento que Paulo teria fundado?

Alain Gignac – Para responder corretamente sua questão, ser-me-ia necessário reler Nietzsche. Pelo que sei, esta imagem forte do ressentimento classifica o cristianismo como uma religião de ódio. Desconhecendo o ensinamento de Jesus, os cristãos teriam desejado vingar não somente a sua morte, mas também a sua própria exclusão (diante dos Judeus, do Império etc.) Eles não teriam compreendido as motivações que animavam Jesus na aceitação de seu destino. As conseqüências deste ressentimento teriam sido a exaltação da pequenez e a fuga do mundo.

Parece-me que Nietzsche erra totalmente o seu alvo. Não reconheço Paulo na caricatura que ele faz. Além disso, ele ataca Paulo ou o cristianismo de seu tempo? Na minha leitura, Paulo não é nem raivoso nem animado pela vingança. Como Jesus, ele está ao lado dos excluídos e dos fracos (o que não agrada Nietzsche). Paulo não foge para um outro mundo: ao contrário, este mundo de Deus já é vivido. A ressurreição não é para amanhã, ele é hoje no centro de nossa existência.

Entretanto, o filósofo alemão apontou um ponto extremamente importante: “São Paulo desloca simplesmente o centro da gravidade de toda a existência, por de trás desta existência – na ‘mentira’ de Jesus ‘ressuscitado’” (O anticristo, § 42). A ressurreição está bem no centro da cristologia de Paulo – mas não se trata de uma fuga da vida presente, mas de sua transfiguração do interior! Se ele contesta tão fortemente Paulo, é porque o leu atentamente. E quem sabe por que vê nele um rival? Em Paulo, tudo passa pelo prisma da morte/ ressurreição – a cruz, por assim dizer. Então, tudo está “desfigurado”. Mais uma vez, jogando com as palavras, Paulo não tem necessidade de desfigurar o ensinamento de Jesus. O Cristo que ele propõe está desfigurado, uma vez que ele passou pela cruz – como ele lembra rudemente em Gálatas (3,1).

IHU On-Line – Essas críticas poderiam ser compreendidas como uma forma de apreendermos o cristianismo em sua versão mais primordial, sem a interferência paulina?

Alain Gignac – Sim, há uma interferência “paulina” entre nós e Jesus de Nazaré, e mesmo entre nós e a experiência pascal fundadora, mas ela é inevitável. Nós conhecemos Jesus somente através do testemunho situado e orientado dos primeiros cristãos – como Paulo. Neste sentido, creio que não há forma mais primordial do cristianismo que aquela que nos transmite, em sua diversidade plural, o Novo Testamento. A busca histórica pode tentar reconstruir, fora dos textos, o Jesus histórico ou a vivência dos primeiros cristãos em Jerusalém ou na Galiléia, mas isso continua sendo uma construção hipotética… e muito (demais) seguidamente sujeita ao “imaginário” do historiador (ou do filósofo). Paulo está também no princípio do cristianismo! Ele se torna cristão no máximo cinco anos após a morte de Jesus. Seria mais justo, ao invés de buscar como uma miragem uma versão “primordial” de um cristianismo puro e não deformado, de valorizar o pluralismo dos cristianismos durante o século I – ou seja, a diversidade das correntes na Igreja primitiva. Pode-se criticar Paulo, mas não se pode acusá-lo de deformar o cristianismo, de desfigurá-lo. A identidade cristã passa pela Páscoa.

Formulado de outra forma: o cristianismo não está fundado em Jesus, mas no Cristo – ou seja, uma interpretação pascal da vida e da morte de Jesus. Podem-se ver outras interpretações da experiência pascal, paralelas a de Paulo, que nos agradam mais, mas não há cristianismo primordial – somente figuras do Cristo concorrentes e finalmente contemporâneas à da desenvolvida por Paulo.

IHU On-Line – Como compreender que a morte na cruz, então a mais ignominiosa que se podia conceber, foi interpretada por Paulo como uma morte gloriosa, sublime, e assim difundida, segundo critica Nietzsche?

Alain Gignac – Paulo não fala da cruz gloriosa. Ao contrário, ele insiste sobre o escândalo da imagem desfigurada do Cristo. A proclamação messiânica de um messias crucificado é uma loucura. Sobre este assunto, é preciso reler os quatro primeiros capítulos da Primeira Carta aos Coríntios (que Nietzsche cita inclusive três vezes em O anticristo, §45: O filósofo, do âmbito da sabedoria humana, é verdadeiramente escandalizado por esta loucura que está no seio da predicação paulina). Paulo é consciente de que se trata de uma morte vergonhosa, mas ele está longe de dizer que se trata de uma morte gloriosa. Paulo não exclui o sofrimento nem o escândalo da morte. Sua retórica não visa à sublimação, mas marca fortemente o paradoxo. A argumentação repousa então sobre uma premissa: todo o mundo está de acordo que a cruz é uma aberração, uma derrota, ou até mesmo o sinal de uma maldição divina (como lembra Paulo em Gálatas 3, 10). Todavia, foi Deus quem ressuscitou este messias, o Cristo (Rm 1, 3-4). Em 1 Co 1-4, Paulo não fala imediatamente de ressurreição. Será preciso esperar o Capítulo quinze para que ele o faça (1 Co 15). Para ele, morte e ressurreição estão ligadas (Rm 6, 1-5): a cruz fica sem sentido sem a ressurreição, mas esta torna-se triunfal e desconecta da realidade se esquecermos a cruz. Os cristãos têm dificuldade de manter o equilíbrio: a cruz pode ser exaltada e tender ao masoquismo (e, este ponto, Nietzsche tem sem dúvida razão, em sua suspeita extrema), e a ressurreição pode tender ao apologético (“olhai como a mensagem do evangelho é forte e sublime…”).

Mais uma vez, Nietzsche é um leitor perspicaz. Ele tem razão em salientar a insistência de Paulo sobre a cruz e ele tem o direito, em nome de sua lógica, de rejeitar a linguagem paulina. Mas, ele está errado em chamar Paulo de desonesto, ou até mesmo de manipulador. Ao contrário, Paulo é honesto e consciente do escândalo de sua pregação. Se o apóstolo não pode fazer de outro modo, é porque seu discurso repousa sobre a experiência da ressurreição: a despeito do triunfo da morte, a vida o levou. Ao próprio lugar onde a força do pecado pareceu levá-lo, a justiça de Deus triunfou (Rm 8, 1-4). Para além das aparências, Paulo não tem escolha, uma vez que se trata de dar conta de sua experiência, de atestar e de testemunhar, e não de provar. Isto também Badiou compreendeu bem, melhor do que Nietzsche. O que distinguirá sempre o filósofo do apóstolo é justamente esta experiência. A ressurreição não é justamente uma dedução, um raciocínio, mas um encontro que se impõe a um sujeito que crê.

Notas

1.- ODELL-SCOTT, DAVID, dir. (2007), Reading Romans with Contemporary Philosophers and Theologians (Romans Through History and Cultures, 7), New York, T.&T. Clark (Romans Through History and Cultures, 7). (Nota do autor).

2.- Jean-François Lyotard (1924-1998): filósofo francês, autor de uma filosofia do desejo e significado representante do pós-modernismo. Escreveu, entre outros, A fenomenologia (Lisboa: Edições 70, 1954), O inumano: considerações sobre o tempo (Lisboa: Estampa, 1990), Heidegger e `os judeus` (Lisboa: Instituto Piaget, 1999) e A condição pós-moderna (8ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2004).

3.- Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, criador do método chamado desconstrução. Seu trabalho é associado, com freqüência, ao pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre as principais influências de Derrida encontram-se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua extensa produção, figuram os livros Gramatologia (São Paulo: Perspectiva, 1973), A farmácia de Platão (São Paulo: Iluminuras, 1994), O animal que logo sou (São Paulo: UNESP, 2002), Papel-máquina (São Paulo: Estação Liberdade, 2004) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007). Dedicamos a Derrida a editoria Memória da IHU On-Line edição 119, de 18-10-2004. (Nota da IHU On-Line).

4.- John Locke (1632-1704): filósofo inglês, predecessor do Iluminismo, que tinha como noção de governo o consentimento dos governados diante da autoridade constituída, e, o respeito ao direito natural do homem, de vida, liberdade e propriedade. Com David Hume e George Berkeley era considerado empirista. (Nota da IHU On-Line).

5.- Soren Kierkegaard (1813-1855): filósofo existencialista dinamarquês. Alguns de seus livros foram publicados sob pseudônimos: Víctor Eremita, Johannes de Silentio, Constantín Constantius, Johannes Climacus, Vigilius Haufniensis, Nicolás Notabene, Hilarius Bogbinder, Frater Taciturnus y J, Anticlimacus. Filosoficamente, faz uma ponte entre a filosofia de Hegel e aquilo que viria a ser o existencialismo. Kierkegaard negou tanto a filosofia hegeliana de seu tempo, bem como aquilo que classificava como as formalidades vazias da igreja dinamarquesa. Boa parte de sua obra dedica-se à discussão de questões religiosas como a naturaza da fé, a instituição da igreja cristã, a ética cristã e a teologia. Autor de O conceito de ironia (1841), Temor e tremor (1843) e O desespero humano (1849). A respeito de Kierkegaard, confira a entrevista “Paulo e Kierkegaard”, realizada com o Prof. Dr. Álvaro Valls, da Unisinos, na edição 175, de 10-04-2006, da IHU On-Line. (Nota da IHU On-Line).

6.- Maximillion Weber (1864-1920): sociólogo alemão, considerado um dos fundadores da Sociologia. Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das suas mais conhecidas e importantes obras. Cem anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua 101ª edição, de 17-05-2004. De Max Weber o IHU publicou os Cadernos IHU em formação nº 3, 2005, chamado Max Weber – o espírito do capitalismo. Em 10-11-2005, o professor Antônio Flávio Pierucci ministrou a conferência de encerramento do I Ciclo de Estudos Repensando os Clássicos da Economia, promovido pelo IHU, intitulada Relações e implicações da ética protestante para o capitalismo. (Nota da IHU On-Line).

7.- Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A problemática heideggeriana é ampliada em Que é metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947), Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, a IHU On-Line publicou na edição 139, de 2-05-2005, o artigo O pensamento jurídico-político de Heidegger e Carl Schmitt. A fascinação por noções fundadoras do nazismo. Sobre Heidegger, confira as edições 185, de 19-06-2006, intitulada O século de Heidegger, e 187, de 3-07-2006, intitulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, disponíveis para download no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu). Confira, ainda, o nº 12 do Cadernos IHU em formação, intitulado Martin Heidegger. A desconstrução da metafísica.

8.- Aurélio Agostinho (354-430): Conhecido como Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho, bispo católico, teólogo e filósofo. É considerado santo pelos católicos e doutor da doutrina da Igreja.

9.- Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussiano, considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna, representante do Iluminismo, indiscutivelmente um dos seus pensadores mais influentes da Filosofia. Kant teve um grande impacto no Romantismo alemão e nas filosofias idealistas do século XIX, tendo esta faceta idealista sido um ponto de partida para Hegel. A IHU On-Line número 93, de 22-03-2004, dedicou sua matéria de capa à vida e à obra do pensador. Também sobre Kant foi publicado este ano o Cadernos IHU em formação número 2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, lógica e ética. Os Cadernos IHU em formação estão disponíveis para download na página www.unisinos.br/ihu do Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Kant estabeleceu uma distinção entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o que existiria em si mesmo. A coisa-em-si (noumenon) não poderia, segundo Kant, ser objeto de conhecimento científico, como até então pretendera a metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pelas formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pelas categorias do entendimento.

10.- Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, tentou desenvolver um sistema filosófico no qual estivessem integradas todas as contribuições de seus principais predecessores. Sua primeira obra, A fenomenologia do espírito, tornou-se a favorita dos hegelianos da Europa continental no séc. XX. Sobre Hegel, confira a edição especial nº 217 de 30-04-2007, intitulada Fenomenologia do espírito, de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de lançamento dessa obra. Sobre Hegel, confira, ainda, a edição 261 da IHU On-Line, de 09-06-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler Hegel. (Nota da IHU On-Line).

11.- Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão crítico das técnicas de reprodução em massa da obra de arte. Foi refugiado judeu alemão e, diante da perspectiva de ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. Um dos principais pensadores da Escola de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line).

12.- Rudolf Karl Bultmann (1884-1976): teólogo luterano alemão nascido em Wiefelstede, Oldenburg, que propôs uma interpretação do Novo Testamento da Bíblia apoiada em conceitos de uma filosofia existencialista. Iniciou como professor sobre sua especialidade, o Novo Testamento (1916), em Breslau, Giessen e Marburg. Nessa cidade tomou contato com Martin Heidegger e a filosofia existencialista, que influenciou seu pensamento posterior. Morreu em Marburg, então Alemanha Ocidental. Seu primeiro livro foi Jesus (1926) e e sua mais famosa obra foi Das Evangelium des Johannes (1941). Na edição 114, de 06-09-2004, a revista IHU On-Line na publicou um debate sobre a obra Teologia do Novo Testamento, com a participação de Nélio Schneider e Johan Konings. (Nota da IHU On-Line).

 

Fonte: IHU – 20 dezembro 2008

Mesters assessora Curso de Verão em Goiânia

Nos 20 anos do Curso de Verão em Goiânia, Mesters é o assessor

O Curso de Verão de Teologia e Educação Popular de Goiânia completa 20 anos e terá como seu assessor principal o frei Carlos Mesters. O curso se realiza de 5 a 10 de janeiro de 2009, na IFITEG 7ª. Criado em 1990, o Curso de Verão tem como meta a formação popular na esfera bíblica, teológica, pastoral e de compromisso ecumênico transformador em relação às Igrejas e à sociedade. Naquele ano, foi assumido pela Arquidiocese de Goiânia, como desdobramento do Curso de Verão do CESEP, São Paulo, que há dois anos vinha acontecendo no Auditório do Tuca-PUC e tinha como objetivo desafogar a grande demanda de São Paulo, acolhendo os interessados da região Norte e Centro-Oeste. No curso de 2009, frei Carlos Mesters, um dos mais conhecidos biblistas do Brasil, vai ajudar a refletir sobre Paulo e as comunidades, tema que se relaciona ao ano Paulino da Igreja Católica Romana, instituído para comemorar os 2000 anos do nascimento do apóstolo Paulo…

Fonte: CEBI – 16 de dezembro de 2008

Quem escreveu os quatro evangelhos canônicos?

Recomendo este artigo como uma boa e rápida introdução para quem nunca ouviu dizer que até hoje não sabemos quem escreveu os quatro evangelhos canônicos.

 

Evangelhos são obra de autores desconhecidos, dizem pesquisadores

Atribuição a Mateus, Marcos, Lucas e João provavelmente aconteceu de forma tardia. Com exceção do texto joanino, relatos parecem ter se baseado fortemente em Marcos.

Os Evangelhos do Novo Testamento, quatro relatos sobre a vida de Jesus aceitos por todas as igrejas cristãs, tradicionalmente são atribuídos a dois dos Doze Apóstolos (Mateus e João, filho de Zebedeu), a um companheiro do apóstolo Pedro (Marcos) e a um colaborador de São Paulo (Lucas). Para os atuais estudiosos da Bíblia, no entanto, o mais provável é que nenhuma dessas autorias tradicionais esteja totalmente correta. Embora muitos dos fatos contados pelos evangelistas possam realmente remontar à vida de Jesus, inconsistências e contradições deixam claro que nenhum de seus discípulos originais sentou-se pessoalmente para escrever uma biografia de Cristo.

“O que está claro é que os títulos que temos são um fenômeno editorial, que veio mais tarde”, resume Luiz Felipe Ribeiro, professor de pós-graduação em história do cristianismo antigo da Universidade de Brasília (UnB), que está concluindo seu doutorado na Universidade de Toronto (Canadá). “Os títulos demoraram para aparecer no corpo do texto. Os primeiros papiros com a fórmula atual para os títulos — ‘Evangelho segundo Marcos’ ou ‘Evangelho segundo João’, por exemplo — são de meados do século 3 [mais de 150 anos depois da data em que os textos teriam sido escritos].”

De acordo com Ribeiro, os estudos sobre como os livros da época recebiam seus títulos e atribuições de autoria também revelam que essa fórmula (envolvendo uma estrutura gramatical do grego conhecida como acusativo) é curiosamente única dos Evangelhos; nenhum copista anterior teria pensado em falar da “Ilíada segundo Homero”, por exemplo. “É muito improvável que essa mesma maneira de designar os textos surgisse de forma independente em quatro deles ao mesmo tempo. Por isso, tudo indica que se trata de uma mudança na maneira como os Evangelhos passaram a circular naquela época”, diz ele.

Testemunho antigo — ou não?

O fato é que, além dos títulos explícitos em papiros, a primeira referência a quatro Evangelhos escritos pelos autores que conhecemos tradicionalmente — Mateus, Marcos, Lucas e João, nessa ordem — vem do bispo Ireneu de Lyon, escrevendo por volta do 190. No começo do mesmo século, outro bispo, Papias (cuja obra original não sobreviveu, mas acabou sendo citada por escritores cristãos posteriores), menciona apenas Mateus e Marcos.

A poucas décadas de “distância” dos apóstolos originais, Papias até parece dispor de informações mais confiáveis, mas uma série de coisas em suas afirmações não batem. Primeiro, ele parece se referir a Mateus como uma simples coleção de ditos de Jesus (logia, em grego), escritos originalmente em aramaico, a língua do dia-a-dia na Palestina do século 1. No entanto, Mateus é na verdade uma narrativa, e o texto que temos parece ter sido composto diretamente em grego. Já Marcos seria o secretário ou intérprete de Pedro, o qual teria anotado (“de forma desordenada”, diz Papias), as pregações do líder dos apóstolos em Roma.

Além do fato de, na verdade, o Evangelho de Marcos ser uma narrativa altamente estruturada, sem sinal de desordem, ele não parece o tipo de coisa que um ex-colaborador de Pedro escreveria, afirma Ribeiro. “Existe, na verdade, uma hostilidade grande em relação a Pedro no Evangelho de Marcos, e talvez até uma rejeição de todos os Doze, que são retratados como covardes”, diz o pesquisador. Todos os Evangelhos mostram Pedro vacilando e até negando Jesus, mas enquanto Mateus atenua isso com a famosa cena em que Jesus promete a seu apóstolo “as chaves do Reino do Céu”, Marcos não apenas omite qualquer menção a isso como é bem provável que, originalmente, nem mostrasse Jesus aparecendo aos apóstolos depois de ressuscitar.

É que os mais antigos manuscritos do Evangelho de Marcos terminam de forma meio abrupta, no versículo 8 do capítulo 16. O relato se encerra com Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago, e Salomé — três seguidoras de Jesus — indo ao sepulcro de Cristo. Lá, porém, encontram a tumba aberta e um misterioso rapaz de roupas brancas (talvez um anjo) dizendo que Jesus tinha ressuscitado. As mulheres, então, fogem assustadas, “e nada diziam a ninguém, porque temiam”. O mais provável é que, mais tarde, foram adicionados os versículos de 9 a 20, que encerram o Evangelho que temos hoje e contêm as aparições do Jesus ressuscitado a seus seguidores.

Marcos, o primeiro

Na verdade, apesar de a ordem dos Evangelhos nas Bíblias atuais começar com Mateus, Marcos é quase certamente o mais antigo de todos os textos, talvez escrito um pouco antes do ano 70, quando o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos. O consenso entre os estudiosos é que Mateus e Lucas usaram Marcos como a base de seus próprios Evangelhos.

“Ambos se baseiam na estrutura narrativa de Marcos; Mateus e Lucas foram aumentados acrescentando-se a Marcos extratos de uma coletânea de ditos de Jesus que hoje está perdida”, escreve Geza Vermes, professor emérito de estudos judaicos da Universidade de Oxford, em seu livro “Quem é quem na época de Jesus” (Editora Record), recém-lançado no Brasil. “Quando Lucas e Mateus concordam entre si a respeito de algo, também concordam com Marcos; quando são diferentes de Marcos, também são diferentes entre si”, diz Ribeiro.

Além disso, Marcos é o evangelista que mais coloca expressões aramaicas na boca de Jesus ou das pessoas que entram em contato com ele, como o uso de Éfata (“abre-te”) para curar um surdo-mudo e Talitha cum (“menina, levanta-te”) para ressuscitar uma menina. “É o único evangelista que permite ao leitor ouvir um eco eventual das palavras de Jesus em sua própria língua”, diz Vermes.

Judeus ou pagãos?

Por essas e outras, a identificação do autor de Evangelho de Marcos como pagão de nascimento — e mesmo de Lucas ou João, autores de narrativas que parecem muito influenciadas pela cultura grega — não é tão confiável quanto alguns estudiosos costumavam imaginar. “Eu, por exemplo, acho que Marcos poderia muito bem ter uma origem na Galileia”, diz Ribeiro. “De modo geral, essa dicotomia cultural muito forte entre judeus e pagãos de origem grega que a gente costuma imaginar é relativa. O judaísmo estava sob forte influência helenística fazia tempo.”

A influência judaica mais clara é a de Mateus, texto talvez escrito entre os anos 80 e 90 e repleto de referências à Lei de Moisés e às profecias do Antigo Testamento sobre a vinda do Messias. “Mas, mesmo no caso de Lucas, há um lado judaico bastante forte. A narrativa dele começa e termina no Templo de Jerusalém, por exemplo. Jesus nunca pisa fora do território de Israel na narrativa de Lucas. Isso não me parece à toa”, diz Vilson Scholz, professor de teologia exegética da Universidade Luterana do Brasil (RS) e consultor de traduções da Sociedade Bíblica do Brasil.

Scholz diz acreditar que, embora figuras como os apóstolos João e Mateus não tenham escrito pessoalmente os Evangelhos, é possível que as narrativas sejam obra de pessoas de “escolas” ligadas a eles, que teriam transmitido a tradição oral relacionada aos primeiros discípulos em forma escrita. Para Scholz, o Evangelho de Lucas, escrito pelo mesmo autor dos Atos dos Apóstolos (em ambos os casos a obra é dedicada a um patrono conhecido como Teófilo, e há remissões entre um livro e outro), é o que tem associação mais plausível com o autor tradicional.

Explica-se: Lucas teria sido um médico de origem grega e, de fato, sua linguagem é uma das mais polidas e de estilo cuidadoso entre os Evangelhos, diz Scholz. Os Atos dos Apóstolos também usam o pronome “nós” em certas passagens, dando a entender que o narrador estava viajando junto com Paulo. “Eu já acho que Lucas é tão problemático [como autor verdadeiro do Evangelho] quanto os demais”, afirma Ribeiro. Ele lembra que há diferenças consideráveis entre o relacionamento de Paulo com os demais membros da Igreja como é retratado em Atos e a maneira como Paulo fala de Pedro e dos demais apóstolos em suas cartas — nesse caso, Paulo é bem mais agressivo e menos condescendente em suas críticas aos seguidores originais de Jesus.

Testemunhas oculares

Um detalhe que solapa, ao menos à primeira vista, a idéia de que alguns dos autores do Evangelho presenciaram as pregações de Jesus é a falta de uma identificação de quem escreve no próprio texto, ou mesmo de afirmações diretas de que o escritor viu tais e tais fatos acontecerem. “Isso pode ser apenas um detalhe de gênero literário — uma tentativa de demonstrar objetividade, por exemplo”, pondera Scholz.

A única exceção é o Evangelho de João — justamente o “estranho no ninho” entre os quatro textos aceitos no Novo Testamento, por não seguir a mesma linha básica de narrativa dos outros três e apresentar uma visão teológica muito desenvolvida e elevada de Jesus, considerado o Verbo de Deus encarnado. Com base nisso, ele seria o texto mais tardio, escrito por volta do ano 100. “Muita gente vê influência da filosofia grega sobre João, mas a divisão clara do mundo entre luz e trevas, que a gente vê nele, já aparece nos Manuscritos do Mar Morto, a poucos quilômetros de Jerusalém”, diz Scholz. Em um ou dois trechos, o Evangelho de João diz que “a testemunha viu” os fatos narrados acontecerem.

“Eu acho possível que esse Evangelho remonte a uma testemunha ocular, mas o que ela viu foi retrabalhado pela comunidade à qual ela pertencia”, avalia Ribeiro. Seria o misterioso “discípulo amado” de Jesus — mas esse discípulo certamente não é João, o qual é mencionado separadamente no mesmo Evangelho. “Também vemos uma tensão política entre a comunidade desse discípulo amado e o grupo que seguia Pedro, por exemplo”, diz o pesquisador, lembrando que, numa das narrativas sobre o sepulcro vazio de Jesus, Pedro e o tal discípulo correm até a tumba, mas o discípulo amado é o primeiro a chegar. Pedro entra no sepulcro e vê os lençóis que cobriam o corpo de Jesus; o discípulo amado entra depois, “e viu, e creu”, diz o Evangelho. Seria uma forma de mostrar a precedência dele sobre Pedro.

No fundo, o que se sabe de seguro sobre os escritores dessas quatro obras-primas da cristandade primitiva está mesmo embutido no próprio texto — e, como tal, sujeito a interpretações. É muito difícil, por enquanto, colocar uma “cara” nos evangelistas. “Enquanto não houver outras descobertas arqueológicas de peso, ficamos nesse impasse”, diz Scholz.

Fonte: Reinaldo José Lopes – G1: 27/07/2008

 

Quem já conhece o assunto deve ler livros sobre Métodos de Leitura da Bíblia e de Introdução ao Novo Testamento, além de visitar sites e blogs criados e mantidos por especialistas na área.

Paulo e os judeus: seminário em Leuven

Essa notícia vem da Bélgica. Da Faculdade de Teologia da Katholieke Universiteit Leuven. E deve ser colocada no contexto do Ano Paulino.

The conference is organised by the Faculty of Theology, K. U. Leuven, with the support of the Flemish Scientific Research Foundation (FWO Vlaanderen) and the University Research Council (Onderzoeksraad) of the K. U. Leuven

New Perspectives on Paul and the Jews
Interdisciplinary Academic Seminar
September 14-15, 2009

Diz a página do seminário:
The twenty-first century is proving to be a challenging time for Jewish-Christian relations. 2008-2009 is the bi-millennial anniversary of Paul’s birth, a figure not unproblematic for Jewish-Christian dialogue. On different levels initiatives are being taken to promote Paul and his legacy. Our Leuven interdisciplinary research project on the New Perspectives on Paul and the Jews is seeking to address the issue of Paul and his relationship to Judaism in an academic setting. An important feature of our project consists in the fact that the exegetical issues are being discussed in a larger hermeneutical, theological and dialogical framework. The academic seminar will allow for scholars from various disciplines to enter into dialogue with one another and exchange expertise on different aspects of Paul and their relevance for Jewish-Christian Dialogue. The goal of this seminar is to provide the opportunity for high-level academic discussion. The conference is organised around 8 topics…

Leia Mais:
The Paul Page. Dedicated to the New Perspective on Paul

Paulo de Tarso, segundo alguns filósofos atuais

Filósofos em diálogo com Paulo de Tarso

Uma reflexão fecunda sobre a natureza da identidade aberta desde os tempos messiânicos. Há uns dez anos os filósofos Alain Badiou, Giorgio Agamben e Slavoj Zizek fizeram seus questionamentos em confronto com os escritos de Paulo. A reportagem é de Élodie Maurot e publicada pelo jornal La Croix, 28-06-2008.

Paulo não é propriedade exclusiva dos teólogos. Está a demonstrá-lo o renovado interesse de numerosos filósofos pelos seus escritos. Nestes últimos anos, Paulo se tornou um importante interlocutor no debate sobre muitos questionamentos filosóficos: a questão da identidade, a relação com a história, a tensão entre o particular e o universal, o lugar da Lei, o enigma do surgimento do sujeito, o lugar do dom e da gratuidade… E não nos enganemos: são precisamente filósofos, e não teólogos disfarçados que interpelam aqui o apóstolo: Em Saint Paul. La fondation de l’universalisme (1), o filósofo francês Alain Badiou esclarece logo: “Paulo não é para mim um apóstolo ou um santo. Não me interessa a Boa Nova que ele anuncia ou o culto que lhe tem sido dedicado”.

Falta a especificação, pode começar o diálogo, “livremente”, “sem devoção nem repulsão”. E o pensamento de Paulo pode ser reconhecido em sua “contemporaneidade”. Badiou põe em seu confronto os seus questionamentos de hoje. Sua busca de uma “nova figura militante”, que possa superar os ângulos cegos do “universal abstrato do capital”, mas também o beco sem saída das oclusas identidades comunitárias, que são como o seu correlato, e são legitimadas pelo “relativismo cultural e histórico” contemporâneo. O filósofo convoca, então, Paulo para procurar deslindar o seu problema: “Quais são as condições para uma singularidade universal?”.

Ele encontra um eco ao seu questionamento no “gesto inaudito” de Paulo, consistindo em “subtrair a verdade à influência comunitária, quer se trate de um povo, de uma cidade, de um império, de um território ou de uma classe social”. Identifica em Paulo um modo de expressar o universal, em que o universal não é a simples negação da particularidade, mas “o avançar de uma distância com respeito à particularidade sempre subsistente”. Assim, já que toda particularidade é “um conformar-se”, um “conformismo”, trata-se de “sustentar uma não-conformidade com aquilo que sempre nos conforma”, no modo com que Paulo solicitava aos romanos: “Não vos conformeis com o século presente, mas sede transformados pela renovação do vosso pensamento” (Romanos 12, 2).

É também a questão do sujeito que atrai o filósofo italiano Giorgio Agamben em sua leitura da epístola aos Romanos (2), na qual o Apóstolo exorta: “Que aqueles que têm mulher façam como se não tivessem, e aqueles que choram como se não chorassem, e aqueles que se alegram como se não se alegrassem, e aqueles que compram como se não possuíssem, e aqueles que usam do mundo como se não usassem dele plenamente. Porque passa o cenário deste mundo…”.

Estudando a surpreendente estrutura deste texto – centrada na figura “como se não…” -, Agamben abre uma reflexão fecunda sobre a natureza da identidade aberta dos tempos messiânicos. O apelo messiânico, precisa Agamben, não tem nenhum conteúdo específico: não constitui uma identidade. É por isso que ele “pode ser aplicado a qualquer condição; mas, pela mesma razão, ele a revoga e a põe radicalmente em questão no próprio momento em que lhe é aplicado”. A reflexão de Agamben, a partir de Paulo, renova aqui profundamente a questão do sujeito, tornando impossível identificá-lo com suas propriedades e com suas pretensões identitárias.

É, ao invés, a questão da relação com a Lei que interessa ao psicanalista e filósofo esloveno Slavoz Zizek na leitura de são Paulo, que cruza com aquela de Lacan. Em La Marionette et le nain. Le christianisme entre perversion et subversion (3), Slavoj Zizek se interessa pelo paradoxo enunciado por Paulo, segundo o qual “a própria Lei faz nascer o desejo de violar a Lei”. Para Zizek, o gesto de Paulo, e o do cristianismo com ele, é de suspender a “face oculta, obscena, não escrita” da Lei, aquela que, enquanto enuncia a proibição, impele, por assim dizer, à sua transgressão. Com Paulo, o desafio cristão consiste em “desfazer o nó górdio”, “romper o círculo vicioso da Lei e de sua transgressão fundadora” (4).

(1) PUF, 119 p., 2007.
(2) Il tempo que resta. Um commento alla lettera ai Romani. Bollati Bloringhieri, 2000 (Le temps qui reste, Rivages poche, 287 p., 2004, 8,40 Euros).
(3) Seuil, 2006, 238 p.
(4) La fragilità dell’assoluto (ovvero perché vale la pena combattere per le nostre radici cristiane), Transeuropa (Massa), 2007(Fragile absolu. Pourquoi l’héritage chrétien vaut-il d’être défendu?, Flammarion, 2008, 238 p.)

Fonte: IHU – 04/07/2008

 

Des philosophes en dialogue avec une pensée stimulante

Depuis une dizaine d’années, les philosophes Alain Badiou, Giorgio Agamben et Slavoj Zizek ont confronté leurs interrogations aux écrits de Paul.

Paul n’est pas la propriété des seuls théologiens. L’intérêt renouvelé de nombreux philosophes pour ses écrits en témoigne. Ces dernières années, Paul est devenu un interlocuteur de choix pour débattre de nombreuses interrogations philosophiques : la question de l’identité, le rapport à l’histoire, la tension entre le particulier et l’universel, la place de la Loi, l’énigme du surgissement du sujet, la place du don et de la gratuité…

Qu’on ne se méprenne pas : ce sont bien des philosophes, et non des théologiens déguisés, qui interpellent ici l’apôtre. Dans Saint Paul. La fondation de l’universalisme (1), le philosophe français Alain Badiou précise d’emblée : « Paul n’est pas pour moi un apôtre ou un saint. Je n’ai que faire de la Nouvelle qu’il déclare, ou du culte qui lui fut voué. » Précision faite, le dialogue peut se déployer, « librement », « sans dévotion, ni répulsion ». Et la pensée de Paul peut être reconnue dans sa « contemporanéité ». Badiou y confronte ses interrogations présentes : sa recherche d’une « nouvelle figure militante », qui puisse traverser les impasses de l’« universel abstrait du capital », mais aussi le cul-de-sac des identités communautaires, fermées, qui en sont comme le pendant, et sont légitimées par le « relativisme culturel et historique » contemporain.

Le philosophe convoque alors Paul pour tenter de débroussailler sa question : « Quelles sont les conditions d’une singularité universelle ? » Il trouve un écho à son interrogation dans le « geste inouï » de Paul consistant à « soustraire la vérité à l’emprise communautaire, qu’il s’agisse d’un peuple, d’une cité, d’un empire, d’un territoire, ou d’une classe sociale ». Il identifie chez Paul une manière de parler l’universel, où l’universel n’est pas la simple négation de la particularité, mais « le cheminement d’une distance par rapport à la particularité toujours subsistante ». Ainsi, puisque toute particularité est « une conformation », un « conformisme », il s’agit de « soutenir une non-conformité à ce qui toujours nous conforme », à la manière dont Paul demandait aux Romains : « Ne vous conformez pas au présent siècle, mais soyez transformés par le renouvellement de votre pensée » (Romains 12, 2).

C’est aussi la question du sujet qui retient le philosophe italien Giorgio Agamben dans sa lecture de l’Épître aux Romains (2), où l’Apôtre exhorte : « Que ceux qui ont des femmes soient comme n’en ayant pas, et ceux qui pleurent comme non pleurants, et ceux qui ont de la joie comme n’en ayant pas, et ceux qui achètent comme non possédants, et ceux qui usent le monde, comme non abusants. Car elle passe la figure de ce monde… » Étudiant l’étonnante structure de ce texte, – centrée sur la figure « comme…, ne pas… » -, Agamben ouvre une réflexion féconde sur la nature de l’identité ouverte par les temps messianiques.

L’appel messianique, précise Agamben, n’a aucun contenu spécifique : il ne constitue pas une identité. C’est pourquoi il « peut s’appliquer à n’importe quelle condition ; mais, pour la même raison, il la révoque et la met radicalement en question au moment même où il s’y applique ». La réflexion d’Agamben à partir de Paul renouvelle ici profondément la question du sujet, en rendant impossible de l’identifier à ses propriétés et à ses prétentions identitaires.

C’est en revanche la question du rapport à la Loi qui intéresse le psychanalyste et philosophe slovène Slavoj Zizek dans une lecture de saint Paul, qu’il croise à celle de Lacan. Dans La Marionnette et le nain. Le christianisme entre perversion et subversion (3), Slavoj Zizek s’intéresse au paradoxe énoncé par Paul selon lequel « la Loi elle-même fait naître le désir de violer la Loi ». Pour Zizek, le geste de Paul, et celui du christianisme avec lui, est de suspendre la « face cachée, obscène, non écrite » de la Loi, celle qui, en même temps qu’elle énonce l’interdit, pousse pour ainsi dire à sa transgression. Avec Paul, le pari chrétien consiste alors à « trancher le nœud gordien », « rompre ce cercle vicieux de la Loi et de sa transgression fondatrice ». (4).

(1) PUF, 119 p., 2007, 10,50 €.(2) Le temps qui reste, Rivages poche, 287 p., 2004, 8,40 €.(3) Seuil, 2006, 238 p., 22 €.(4) Fragile absolu. Pourquoi l’héritage chrétien vaut-il d’être défendu ?, Flammarion, 2008, 238 p., 20 €.

Fonte: MAUROT Elodie – La Croix: 27/06/2008

Pistas para libertar Paulo

Recomendo a leitura do artigo do biblista José Bortolini, Libertar Paulo. Publicado na revista Vida Pastoral n. 260 – maio/junho de 2008 – toda dedicada ao Ano Paulino, o texto foi reproduzido pela Adital no dia 25 passado. Bortolini é Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma.


Diz Bortolini na Introdução, entre outras coisas:

“Pobre apóstolo Paulo, o que fizeram com você nestes dois mil anos!? Lá no começo, alguns cristãos não admitiam que você usasse o título de apóstolo (1Cor 9,2; 15,9) só porque você não conheceu pessoalmente a Jesus de Nazaré. Ficamos intrigados com muitas coisas a seu respeito (…) Com o passar dos tempos, você foi divorciado das comunidades, e passou a ser visto como um teólogo profissional que pensa e produz teologia a partir de coisas abstratas, sem contato com o chão e a vida do povo. O tempo rolou, e os cristãos brigaram, fizeram guerras e se mataram, em parte por causa da carta aos Romanos… Ultimamente você entrou de cheio na Liturgia da Palavra das Missas, onde se faz leitura contínua de suas cartas. Mas poucos são os que valorizam o que você deixou escrito. Agora foi instituído o Ano Paulino, um ano dedicado a você, dois mil anos de seu nascimento. Será que no fim de tudo você será mais conhecido e amado, como você amou o Senhor Jesus e as comunidades? Tomara que consigamos libertá-lo das algemas de nossos preconceitos, de modo que não tenha de arrastar a capa de chumbo que lhe impuseram nossas leituras descontextualizadas”.


Veja, em seguida, as pistas apontadas por Bortolini para libertar Paulo.



Vou contar ao leitor um segredo: lecionei Literatura Paulina durante os meus primeiros oito anos no CEARP, em Ribeirão Preto, SP. Depois transferi a disciplina para outro colega, e passei a trabalhar somente com Antigo Testamento/Bíblia Hebraica.


Mas me recordo bem: o estudo das cartas de Paulo é apaixonante. É uma espécie de febre que toma conta da gente…

Leia também:
Paulo de Tarso: a sua relevância atual –  IHU On-Line, ed. 286: 22.12.2008

Oxford vai discutir a questao sinotica em 2008

Mark Goodacre, que é da área, recebeu e postou em seu NT Gateway Weblog, a notícia da realização de importante conferência sobre a questão sinótica a ser realizada no Lincoln College da Universidade de Oxford, Reino Unido, de 7 a 10 de abril de 2008.

Veja Oxford Conference in the Synoptic Problem.

A Conferência quer marcar o centenário das conversações sobre a questão sinótica que levaram à publicação da obra Oxford Studies in the Synoptic Problem (ed. William Sanday; Oxford: Clarendon, 1911).

A proposta é traçar um panorama da pesquisa sobre a questão sinótica nos últimos cem anos e indicar os rumos que esta poderá tomar no futuro. Os resultados serão publicados por Peeters, de Leuven, Bélgica.

Veja a lista dos participantes no post de Mark Goodacre, que, por sinal, apresentará um trabalho na conferência, a quem agradeço pela notícia. É um assunto que pode interessar a vários colegas brasileiros que pesquisam e lecionam Novo Testamento.

What is the New Perspective on Paul?

Uma rápida e clara introdução à Nova Perspectiva nos posts de Scot McKnight, publicados em seu blog Jesus Creed de 6 a 10 de agosto de 2007.

:: New Perspective 1 – E. P. Sanders
:: New Perspective 2 – James Dunn
:: New Perspective 3 – N. T. Wright
:: New Perspective 4 – I wish now to state what we have to do when we start talking about the “New Perspective”…
:: New Perspective 5 – The crux of the fierce criticism of the New Perspective on Paul is what I will call an Augustinian anthropology

 

Leia Mais:
:: Further Reading on the New Perspective
:: N. T. Wright Page, unofficial website
:: Simon Gathercole on the New Perspective on Paul, post de Mark Goodacre em NT Gateway Weblog

Sobre a questão sinótica

Estive estudando hoje, com o Primeiro Ano de Teologia do CEARP, a Questão Sinótica – o “Synoptic Problem” do título. E, coincidentemente, Brandon Wason coloca em seu blog Novum Testamentum uma votação sobre a questão sinótica.

Visite, como recomenda Brandon, o Synoptic Problem Website, de Stephen C. Carlson. Neste site há um bom panorama das várias hipóteses da relação entre os evangelhos sinóticos.

Por que estamos estudando este assunto já no primeiro ano? Para exemplificar a aplicação da Crítica Literária – um dos aspectos do método histórico-crítico de leitura da Bíblia – ao Novo Testamento.

Para o Antigo Testamento o exemplo usado foi a formulação da teoria das fontes e/ou tradições do Pentateuco, desde seus inícios, passando pelo consenso wellhauseniano até a sua crise atual. Crise que foi deflagrada, em boa parte, pelo pioneirismo de Thomas L. Thompson, ao estudar os patriarcas, e pelos estudos fundamentais de John Van Seters, H. H. Schmid e Rolf Rendtorff. Veja aqui.

A Folia de Reis

Quando o bom Jesus nasceu
De toda a parte souberam
Aí para adorar o nascimento
Foi que os Reis Magos vieram.

 

Explica Carlos Rodrigues Brandão, em Sacerdotes de Viola, Petrópolis, Vozes, 1981, p. 36;40-41;50-51:

“A Folia de Reis é um espaço camponês simbolicamente estabelecido durante um período de tempo igualmente ritualizado, para efeitos de circulação de dádivas – bens eBRANDÃO, C. R. Sacerdotes de Viola. Petrópolis: Vozes, 1981, 274 p. serviços – entre um grupo precatório e moradores do território por onde ele circula (…)

Por debaixo das palavras universais da linguagem cristã, a Folia canta uma espécie de crônica da vida camponesa. Mais do que isso, a ‘cantoria’ conduz, passo a passo, as ações das pessoas, definindo quem são, o que estão fazendo e o que está acontecendo, por causa do que se faz (…)

Ao constituir o espaço simbólico da jornada dos Reis, a Folia transporta para dentro dele, com nomes e proclamações de bênçãos: as pessoas, os animais, os objetos e as trocas do próprio mundo camponês. Assim, os mesmos homens do trabalho agrário cotidiano aparecem por sete dias revestidos de cumplicidade com os mitos populares de uma história sagrada que todos conhecem por ali (…)

Tudo o que fazem é recontar, nos versos e no que eles comandam, a jornada da busca de um Deus nascido pobre, por Três Reis Magos (muito mais nomeados como ‘santos’ do que como ‘magos’ ou ‘sábios’), entre trocas de ofertas de dons e contradons (…)

Aí então (…) as palavras da cantoria proclamam a própria vida e a morte da gente do lugar”.

Leia o meu artigo sobre A visita dos Magos: Mt 2,1-12. Ouça Hino de Reis. Baixe o livro Sacerdotes de Viola clicando aqui.