Gênesis 12-35 à luz da nova crítica do Pentateuco

Este livro está esgotado. A primeira edição em francês é de 1989. A tradução brasileira da primeira edição foi publicada pela Vozes em 1996. A segunda edição em francês e a brasileira são de 2002.

Como nasceu este livro? Em 1986-1987, as Faculdades de Teologia de Friburgo, Genebra, Lausanne e Neuchâtel, na Suíça, organizaram um ciclo de estudos sobre o Pentateuco, com a participação de pesquisadores de outros países. Dele saiu um panorama sobre o assunto que é, ao mesmo tempo, questionamento e ponto de partida para novos estudos.

Costumo usar trechos dele com meus alunos nas aulas de Pentateuco, no Primeiro Ano de Teologia. Eis um deles.

 

DE PURY, A. A tradição patriarcal em Gênesis 12-35. In DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 206-216.

Na situação atual, criada pela “nova crítica do Pentateuco”, torna-se cada vez mais evidente que o único ponto de ancoragem mais ou menos seguro na cronologia da DE PURY, A. (org.) O Pentateuco em questão: as origens e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002literatura do Antigo Testamento se encontra na historiografia deuteronomista (DtrG), um conjunto literário que abrange todos os livros a começar pelo Deuteronômio até o Segundo Livro dos Reis. (…) A obra historiográfica dtr começa, em Dt 1-4, por um grande discurso de Moisés no qual são recapituladas as etapas da história de Israel desde a saída do Egito até as vésperas da conquista. No quadro do consenso “clássico” sempre se achou que esta recapitulação se referia ao relato dos livros do Gênesis (no que trata da promessa feita aos pais), do Êxodo e dos Números, por conseguinte um relato que se pressupunha existir. Ora, Martin Rose (Deuteronomist und Jahwist. Untersuchungen zu den Berührungspunkten beider Literaturwerke, Zürich, 1981) conseguiu tornar verossímil uma outra hipótese, a saber, que os relatos de Gênesis a Números foram compostos precisamente para dar a esse discurso seu ponto de referência literário: os livros de Gênesis a Números seriam portanto posteriores a DtrG [sublinhado meu]. Este tese teve uma confirmação recentemente num estudo de Thomas Römer (Israel Väter. Untersuchungen zur Väterthematik im Deuteronomium und in der deuteronomistischen Tradition , Freiburg/Göttingen, 1990) que demonstrou que os “pais” aos quais se refere a historiografia dtr e o livro de Jeremias não são os patriarcas do Gênesis, mas as gerações que saíram do Egito [sublinhado meu]. Portanto não temos mais bases que nos permitam afirmar a existência, na época pré-exílica, de um conjunto literário relatando a história desde a criação do mundo até a entrada dos israelitas em Canaã.

Há muito tempo já se vinha notando a grande diferença – de tom, de “clima” religioso, de temática – entre o livro do Gênesis e os livros seguintes (cf. K. GALLING, Die Erwählungstraditionen Israels, Giesse, 1928). Assim, em Êxodo 3,8s, Deus promete a Moisés conduzir os israelitas para uma terra “onde corre leite e mel”, uma terra que ainda parece totalmente desconhecida, quando seria tão fácil referir-se à doação desta terra aos patriarcas. Mas as diferenças entre esses dois conjuntos literários são de fato bem mais profundas: enquanto em Gn 12-35 os heróis são ancestrais e a mediação com os ouvintes do relato passa pelo sangue – basta observar o número de episódios que colocam em jogo relações genealógicas – em Ex 1s os heróis são exclusivamente profetas (Moisés), ou sacerdotes (Aarão), e os israelitas se apresentam sob a forma de uma “massa” anônima. Assim, a diferença está na maneira de apresentar a intervenção divina: no Gênesis, Deus é um “patrão” bem próximo dos clãs que o veneram, ao passo que, a partir do livro do Êxodo ele se torna um chefe guerreiro e legislador. Seu “temperamento” toma uma feição muito mais agressiva. Mais ainda: Gn 12-35 e Ex 1- Dt 34 oferecem duas versões paralelas ou até rivais da entrada dos israelitas em Canaã [sublinhado meu]. Sobretudo a história de José (Gn 37-50) é um conjunto literário que hoje se considera em geral pós-exílico (cf., por exemplo, B. D. REDFORD, A Study of the Biblical Story of Joseph, Leiden, 1970), estabelecendo o vínculo entre esses dois grandes conjuntos.

Se procurarmos os ecos da tradição dos patriarcas na literatura bíblica fora do Pentateuco, o balanço será extremamente insignificante, pelo menos tratando-se da tradição de Abraão. É verdade que a tríade dos patriarcas aparece de vez em quando na literatura deuteronomista (Dt 1,8;6,10;9,5.27;29,12;30,20;34,4;1Rs 18,36; 2Rs 13,23; Jr 33,26); mas existem boas razões para atribuir essas menções aos últimos retoques harmonizantes dos editores bíblicos. As primeiras menções de Abraão se encontram nos textos exílicos de Ez 33,24 e de Is 51,1-2).

DE PURY, A. ; RÖMER, T. (orgs.) Le Pentateuque en question: Les origines et la composition de cinq premiers livres de la Bible à la lumière des recherches récentes. 2. ed. Genève: Labor et Fides, 2002.Esse novo “dado” das teorias sobre o Pentateuco incide decisivamente sobre o nosso enfoque dos relatos de Gn 12-35. Antes de mais nada, a reorganização da articulação entre Tetrateuco e DtrG tem como consequência estabelecer que a história dos três patriarcas é, em sua própria concepção, posterior a DtrG, portanto pós-exílica, e que doravante ela pertence à fase mais tardia da constituição do Pentateuco [sublinhado meu]. Mas isto não significa que no interior de Gn 12-35 tudo seja da mesma proveniência e que alguns de seus componentes não possam remontar a uma época muito mais antiga.

Entretanto, trata-se de distinguir entre os ciclos patriarcais. Quanto aos relatos de Abraão, tradicionalmente considerados como o reflexo da tradição mais arcaica da “era dos patriarcas”, a maioria deles poderia facilmente ser explicada como fragmentos de reflexão teológica que traduzem as preocupações das comunidades judaicas da época pós-exílica.

(…) O ciclo de Isaac, limitado ao capítulo 26, quase não oferece possibilidades de investigação quanto à eventual presença de tradições antigas.

Tratando-se do ciclo de Jacó, felizmente as coisas se apresentam sob um ângulo bem diferente, e isso por três razões:

  • Em muitos textos antigos, o povo de Israel é chamado pelo nome de Jacó (por ex. Mq 3,1; Am 7,2; Os 10,11). Esta identificação seria impossível se Jacó não representasse uma figura de ancestral.
  • Em Oseias 12, o profeta do século VIII faz alusão a toda uma série de episódios da vida de Jacó.
  • No livro do Gênesis, o ciclo de Jacó (Gn 25,19-34; 27-35)) é o único dos três que não se apresenta sob a forma de um conglomerado de episódios mais ou menos heterogêneos, mas reveste a estrutura de uma verdadeira gesta. Praticamente desprovido de todas as remissões a episódios situados a montante ou a jusante de seu contexto literário atual, o ciclo de Jacó não se apoia em nenhuma outra obra literária e assim garante sua existência autônoma. Portanto é possível pelo menos considerar a eventualidade de haver uma origem literária independente da constituição dos grandes conjuntos historiográficos do Antigo Testamento e, talvez, muito anterior a eles.

(…) Está bem claro portanto que existia, em meados do século VI, a tradição de um patriarca Abraão considerado eleito de Deus e ancestral do povo judeu, o primeiro a tomar posse da terra. Esta tradição já devia estar suficientemente gravada na consciência coletiva para ser conhecida tanto dos exilados como dos que haviam permanecido na terra. Quanto a saber que elementos dos relatos de Gn 12-24 já faziam parte desta tradição popular, e sob que forma, isto – como já vimos – é difícil determinar.

A tradição de Jacó encontra seu eco mais antigo no profeta Oseias, como já dissemos. (…) Se a tradição de Jacó reveste, no século VIII, a forma de uma gesta, será possível lançar sobre o ciclo de Jacó de Gn 12-35 um olhar novo? (…) Se podemos admitir – a partir do testemunho de Os 12 e da estrutura interna de Gn 25-35 – a existência de um ciclo de Jacó remontando pelo menos ao século VIII, que hipóteses podemos formular sobre a origem deste ciclo e, eventualmente, sobre seu “núcleo” histórico?

(…) Desde o momento em que abrange o relato do nascimento dos filhos de Jacó (na atual configuração, Gn 29,31-30,24, mas este texto talvez seja tardio), o ciclo de Albert de PuryJacó tem por função explicar as origens do povo de Israel e de sua entrada na terra de Canaã. Este relato das origens se basta a si mesmo e não exige qualquer sequência (nem história de José, nem saída do Egito etc). Oseias 12 nos mostra aliás que o profeta pretende opor à versão “patriarcal” das origens de Israel uma outra versão, “profética”: a da saída do Egito, que é colocada sob a égide de um profeta, e não de um ancestral (Os 12,14). Cabe a Israel escolher suas origens! Não sabemos se, à época de Oseias, os dois relatos de origem já haviam sido ligados, de uma ou de outra maneira, um ao outro. A verdade é que essas duas versões são concorrentes e que originalmente cada qual se bastava a si mesma [sublinhado meu].

* A maior parte das notas de rodapé foram omitidas. São 39 notas.

Albert de Pury, nascido em 1940, foi professor de Antigo Testamento de 1972 a 1984 na Universidade de Neuchâtel e de 1984 a 2005 na Universidade de Genebra, Suíça.