Como 25 de dezembro se tornou Natal

As narrativas sobre Jesus falam de opressão humana e misericórdia divina, de violência humana e amor divino. São narrativas que afirmam que Deus se tornou humano na forma de alguém que é vulnerável, pobre e refugiado, a fim de desvendar a injustiça do poder tirânico (…) Jesus também era um bebê de pele morena cuja família, no Oriente Médio, foi desalojada de sua terra tomada pela violência política.

The Jesus story, in its historical context, is one of human terror and divine mercy, of human abuse and divine love. It is a story that claims God became human in the form of one who is vulnerable, poor and displaced in order to unveil the injustice of tyrannical power (…) He too was a brown-skinned baby whose Middle-Eastern family was displaced due to terror and political turmoil (Robyn J. Whitaker, What history really tells us about the birth of Jesus. The Conversation, December 21, 2017).

Presépio

Recomendo a leitura do artigo de Andrew McGowan, publicado em Bible History Daily em 22/12/2018:

How December 25 Became Christmas – Como foi que 25 de dezembro se tornou Natal

Em 25 de dezembro, os cristãos de todo o mundo se reúnem para celebrar o nascimento de Jesus. Canções alegres, liturgias especiais, presentes elegantemente embrulhados, ceias festivas – tudo isto caracteriza a festa atual. Mas como surgiu a festa de Natal? Como o dia 25 de dezembro passou a ser associado ao aniversário de Jesus?

On December 25, Christians around the world will gather to celebrate Jesus’ birth. Joyful carols, special liturgies, brightly wrapped gifts, festive foods—these all characterize the feast today, at least in the northern hemisphere. But just how did the Christmas festival originate? How did December 25 come to be associated with Jesus’ birthday?

Um trecho:

Os primeiros escritos – Paulo e Marcos – não mencionam o nascimento de Jesus. Os Evangelhos de Mateus e Lucas fornecem relatos bem conhecidos do evento, mas bastante diferentes entre si, embora nenhum deles especifique uma data. No século segundo EC, mais detalhes do nascimento e da infância de Jesus estão relacionados em escritos apócrifos como o Evangelho da Infância de Tomé e o Proto Evangelho de Tiago. Esses textos fornecem tudo, desde os nomes dos avós de Jesus até os detalhes de sua educação, mas não a data de seu nascimento.

Finalmente, em cerca de 200 EC, um teólogo cristão no Egito faz referência à data em que Jesus nasceu. Segundo Clemente de Alexandria, vários dias diferentes haviam sido propostos por diferentes grupos cristãos. Por mais surpreendente que possa parecer, Clemente não menciona o dia 25 de dezembro. Clemente escreve: “Há aqueles que determinaram não apenas o ano do nascimento de nosso Senhor, mas também o dia; e eles dizem que isto aconteceu no 28º ano de Augusto, e no 25º dia do [mês egípcio] Pachon [20 de maio no nosso calendário] … E tratando da Sua Paixão, com grande exatidão, alguns dizem que aconteceu no 16º ano de Tibério, no dia 25 de Phamenoth [21 de março]; e outros no dia 25 de Pharmuthi [21 de abril] e outros dizem que no dia 19 de Pharmuthi [15 de abril] o Salvador padeceu. Além disso, outros dizem que Ele nasceu no dia 24 ou 25 de Pharmuthi [20 ou 21 de abril]” (Stromata 1.21.145).

Claramente, havia uma grande incerteza, mas também um interesse considerável na datação do nascimento de Jesus no final do século segundo. No século quarto, entretanto, encontramos referências a duas datas que foram amplamente reconhecidas – e agora também celebradas – como o aniversário de Jesus: 25 de dezembro no Império Romano do Ocidente e 6 de janeiro no Oriente (especialmente no Egito e na Ásia Menor). A moderna igreja armênia continua celebrando o Natal em 6 de janeiro; para a maioria dos cristãos, no entanto, 25 de dezembro prevaleceria, enquanto 6 de janeiro acabou sendo conhecido como a Festa da Epifania, comemorando a chegada dos magos em Belém. O período entre as duas celebrações se tornou a temporada festiva mais tarde conhecida como os 12 dias de Natal.

A menção mais antiga de 25 de dezembro como o aniversário de Jesus vem de um calendário romano da metade do século IV que lista as datas da morte de vários bispos e mártires cristãos. A primeira data listada, 25 de dezembro, é marcada: natus Christus in Betleem Judeae: “Cristo nasceu em Belém da Judeia”. Por volta de 400 EC, Agostinho de Hipona menciona um grupo cristão dissidente local, os Donatistas, que aparentemente celebravam a festa do Natal em 25 de dezembro, mas se recusavam a celebrar a Epifania em 6 de janeiro, considerando-a uma inovação. Como o grupo Donatista só emergiu durante a perseguição sob Diocleciano em 312 EC e depois permaneceu teimosamente ligado às práticas daquele momento no tempo, eles parecem representar uma antiga tradição cristã norte-africana.

No Oriente, o dia 6 de janeiro não foi associado apenas aos magos, mas à história do Natal como um todo.

Assim, quase 300 anos depois do nascimento de Jesus, finalmente encontramos pessoas observando seu nascimento na metade do inverno [no hemisfério norte]. Mas como eles identificaram as datas de 25 de dezembro e 6 de janeiro?

The earliest writings—Paul and Mark—make no mention of Jesus’ birth. The Gospels of Matthew and Luke provide well-known but quite different accounts of the event—although neither specifies a date. In the second century C.E., further details of Jesus’ birth and childhood are related in apocryphal writings such as the Infancy Gospel of Thomas and the Proto-Gospel of James.b These texts provide everything from the names of Jesus’ grandparents to the details of his education—but not the date of his birth.

Finally, in about 200 C.E., a Christian teacher in Egypt makes reference to the date Jesus was born. According to Clement of Alexandria, several different days had been proposed by various Christian groups. Surprising as it may seem, Clement doesn’t mention December 25 at all. Clement writes: “There are those who have determined not only the year of our Lord’s birth, but also the day; and they say that it took place in the 28th year of Augustus, and in the 25th day of [the Egyptian month] Pachon [May 20 in our calendar] … And treating of His Passion, with very great accuracy, some say that it took place in the 16th year of Tiberius, on the 25th of Phamenoth [March 21]; and others on the 25th of Pharmuthi [April 21] and others say that on the 19th of Pharmuthi [April 15] the Savior suffered. Further, others say that He was born on the 24th or 25th of Pharmuthi [April 20 or 21].”

Clearly there was great uncertainty, but also a considerable amount of interest, in dating Jesus’ birth in the late second century. By the fourth century, however, we find references to two dates that were widely recognized—and now also celebrated—as Jesus’ birthday: December 25 in the western Roman Empire and January 6 in the East (especially in Egypt and Asia Minor). The modern Armenian church continues to celebrate Christmas on January 6; for most Christians, however, December 25 would prevail, while January 6 eventually came to be known as the Feast of the Epiphany, commemorating the arrival of the magi in Bethlehem. The period between became the holiday season later known as the 12 days of Christmas.

The earliest mention of December 25 as Jesus’ birthday comes from a mid-fourth-century Roman almanac that lists the death dates of various Christian bishops and martyrs. The first date listed, December 25, is marked: natus Christus in Betleem Judeae: “Christ was born in Bethlehem of Judea.” In about 400 C.E., Augustine of Hippo mentions a local dissident Christian group, the Donatists, who apparently kept Christmas festivals on December 25, but refused to celebrate the Epiphany on January 6, regarding it as an innovation. Since the Donatist group only emerged during the persecution under Diocletian in 312 C.E. and then remained stubbornly attached to the practices of that moment in time, they seem to represent an older North African Christian tradition.

In the East, January 6 was at first not associated with the magi alone, but with the Christmas story as a whole.

So, almost 300 years after Jesus was born, we finally find people observing his birth in mid-winter. But how had they settled on the dates December 25 and January 6?

Leia o artigo completo.

Um livro:
ROLL, S. K. Toward the Origins of Christmas. Kampen: Kok Pharos, 1995, 296 p. – ISBN 9789039005316

A estrela de Belém

Presépio | Marias Artesãs - Patos de Minas - MG

Há centenas de tentativas, antigas e modernas, para explicar o que é a estrela de Mt 2,1-12 e como pôde uma estrela guiar os magos até Belém por ocasião do nascimento de Jesus.

Descartando, porém, as teorias mais exóticas – capazes até de “desmontar” o Universo para confirmar crenças ingênuas – há, fundamentalmente, apenas dois pressupostos que regulam as várias explicações:

:. Estamos lidando com um fenômeno astronômico natural que teria ocorrido por ocasião do nascimento de Jesus e que é visto aqui como um sinal importante por Mateus.

:. Estamos vendo aqui uma estrela “teológica”, onde Mateus não pensa em nenhum fenômeno natural, mas apenas na sua função, pois o tema do aparecimento de uma estrela que anuncia o nascimento de um personagem importante era bastante difundido na época.

Continue aqui.

Quando os cristãos eram judeus: livro de Paula Fredriksen

FREDRIKSEN, P. When Christians Were Jews: The First Generation. New Haven, CT: Yale University Press, 2018, 272 p. – ISBN 9780300190519.

FREDRIKSEN, P. When Christians Were Jews: The First Generation. New Haven, CT: Yale University Press, 2018, 272 p.

 
How did a group of charismatic, apocalyptic Jewish missionaries, working to prepare their world for the impending realization of God’s promises to Israel, end up inaugurating a movement that would grow into the gentile church? Committed to Jesus’s prophecy—“The Kingdom of God is at hand!”—they were, in their own eyes, history’s last generation. But in history’s eyes, they became the first Christians.

In this electrifying social and intellectual history, Paula Fredriksen answers this question by reconstructing the life of the earliest Jerusalem community. As her account arcs from this group’s hopeful celebration of Passover with Jesus, through their bitter controversies that fragmented the movement’s midcentury missions, to the city’s fiery end in the Roman destruction of Jerusalem, she brings this vibrant apostolic community to life. Fredriksen offers a vivid portrait both of this temple-centered messianic movement and of the bedrock convictions that animated and sustained it.

Paula Fredriksen, Aurelio Professor of Scripture emerita at Boston University, is currently the Distinguished Visiting Professor of Comparative Religion at the Hebrew University of Jerusalem.

Leia a resenha de Larry Hurtado: “When Christians were Jews”: Paula Fredriksen on “The First Generation” – December 4, 2018

Ensaios sobre religião e sociedade no Antigo Oriente Médio

VAN DER TOORN, K. God in Context: Selected Essays on Society and Religion in the Early Middle East. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018, 400 p. – ISBN 9783161564703.

VAN DER TOORN, K. God in Context: Selected Essays on Society and Religion in the Early Middle East. Tübingen: Mohr Siebeck, 2018, 400 p.

 
In this work, Karel van der Toorn explores the social setting, the intellectual milieu, and the historical context of the beliefs and practices reflected in the Hebrew Bible. While fully recognizing the unique character of early Israelite religion, the author challenges the notion of its incomparability. Beliefs are anchored in culture. Rituals have societal significance. God has a history. By shifting the focus to the context, the essays gathered here yield a deeper understanding of Israelite religion and the origins of the Bible.

Karel van der Toorn (1956) is Faculty Professor of Religion and Society in the Faculty of Humanities at the University of Amsterdam.

Guerras Híbridas

KORYBKO, A. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018,  174 p. – ISBN 9788577433284. O livro pode ser encontrado aqui.

KORYBKO, A. Guerras Híbridas: das revoluções coloridas aos golpes. São Paulo: Expressão Popular, 2018, 174 p.

As Guerras Híbridas são conflitos identitários provocados por agentes externos, que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica por meio da transição gradual das revoluções coloridas para a guerra não convencional, a fim de desestabilizar, controlar ou influenciar projetos de infraestrutura multipolares por meio de enfraquecimento do regime, troca do regime ou reorganização do regime.

Em suma, isso significa que países como os EUA se aproveitam de problemas identitários em um Estado-alvo a fim de mobilizar uma, algumas ou todas as questões identitárias mais comuns para provocar grandes movimentos de protesto, que podem então ser cooptados ou dirigidos por eles para atingir seus objetivos políticos. O eventual fracasso desses movimentos pode fazer com que alguns de seus participantes recorram ao terrorismo, à insurgência, à guerrilha e a outras formas de conflito não convencional contra o Estado. Na maioria das vezes, pelo menos no Hemisfério Oriental, esses fenômenos fabricados têm o efeito de dificultar a viabilização de projetos da China de implantação da nova Rota da Seda, coagindo o Estado-alvo a compromissos políticos ou mudanças de governo ou mesmo a uma secessão – que pode eventualmente levar a uma balcanização.

KORYBKO, A. Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015, 157 p. – ASIN: B014GA5SX8.

KORYBKO, A. Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change. Moscow: Peoples’ Friendship University of Russia, 2015, 157 p.

Sputnik International’s political analyst and journalist, Andrew Korybko, just published his first book on “Hybrid Wars: The Indirect Adaptive Approach To Regime Change”. It was reviewed by the Diplomatic Academy of Russia and released with the assistance of the People’s Friendship University of Russia, where Andrew is a member of the expert council for the Institute of Strategic Research and Predictions. His detailed work proves that Color Revolutions are a new form of warfare engineered by the US, with everything from their organizational makeup to geopolitical application being guided by American strategists. But unlike earlier researchers who have touched upon the topic, Andrew takes his work even further and uses the latest examples of the War on Syria and EuroMaidan to argue that the US has deployed a second, more dangerous step to its regime change toolkit.

Hybrid Wars, as he labels them, are when the US meshes its Color Revolution and Unconventional Warfare strategies together to create a unified toolkit for carrying out regime change in targeted states. When a Color Revolution attempt fails, as it miserably did in Syria in 2011, the backup plan is to roll out an Unconventional War that builds directly upon the former’s social infrastructure and organizing methods. In the case of EuroMaidan, Andrew cites Western news sources such as Newsweek magazine, the Guardian, and Reuters in reminding everyone that in the days immediately prior to the coup’s successful completion, Western Ukraine was in full-scale rebellion against the central government and the stage was set for an Unconventional Syrian-esque War in the heart of Eastern Europe. Had it not been for the sudden overthrow of President Yanukovich, the US was prepared to take the country down the path of the Syrian scenario, which would have been its second full-fledged application of Hybrid War.

Andrew’s revolutionary research ultimately shows that it was the US, not Russia, which spearheaded the use of Hybrid Wars, and that given his proven findings, it’s irresponsible to even call Russia’s alleged involvement in the Ukrainian Crisis a ‘hybrid war’. In fact, the US is far ahead of any other country in practicing this new method of warfare, as no other state has attempted a Color Revolution thus far, let alone transitioned it into an Unconventional War when their initial regime change plans failed. While some many think that such occurrences are spontaneous and happenstance, Andrew documents how Hybrid Wars are not only created from the ground-up by the US, but how they’re specifically deployed in areas where they’d be most geostrategically advantageous for the promotion of its unipolar policies.

Thus, not only does Andrew describe the very essence of Hybrid Wars, but the final part of his book forecasts where he believes they may happen next. He introduces the groundbreaking concept of the Color Arc, a contiguous line of states stretching from Hungary to Kyrgyzstan and where the waging of Hybrid Wars would most seriously damage Russia’s national interests. This is the first time that Color Revolutions have ever been analyzed through a geopolitical prism, and it brings forth a completely different way of looking at this weapon’s utilization. This new paradigm is absolutely essential for understanding the US’ new approach to regime change and the form, both physical and geopolitical, it’s expected to take in the forthcoming years.

Andrew Korybko

 

Brasil é alvo de guerra híbrida, diz analista – Por Eleonora de Lucena e Rodolfo de Lucena – Tutameia: 9 de outubro de 2018

“Há uma Guerra Híbrida muito intensa sendo travada no Brasil neste momento e afeta todas os aspectos da vida de cada cidadão. Ao longo dos últimos dois anos, agentes externos vêm tentando muito sutilmente condicionar a população para voltá-la contra o Partido dos Trabalhadores, usando instrumentos como a Operação Lava Jato, apoiada pela NSA [agência norte-americana de inteligência]”, afirma o analista político norte-americano Andre Korybko, autor de Guerras Híbridas – Das Revoluções Coloridas aos Golpes, recém-lançado no Brasil pela Expressão Popular.

Em entrevista por e-mail ao Tutameia, Korybko, que vive em Moscou e se dedica ao estudo das estratégias do Estados Unidos na África e Eurásia, afirmou que os EUA são os principais propulsores desses movimentos, que consistem em desestabilizar governos a partir de grandes manifestações de massa. São “a fagulha que incendeia uma situação de conflito interno”, como diz a apresentação do livro. Podem se transformar em golpe ou mesmo guerras não convencionais –daí a expressão guerra híbrida.

Conselheiro do Institute for Strategic Studies and Predictions e jornalista na “Sputinik News”, ele também comentou a ascensão da candidatura de Jair Bolsonaro. Diz que os mentores externos da guerra híbrida no Brasil vinham há muito tempo moldando as condições sócio-políticas do país para facilitar o surgimento de um azarão que pudesse chegar ao poder e destruir tudo o que fora construído nos governos do Partido dos Trabalhadores.

A entrevista.

O que são guerras híbridas?

Desde o lançamento de meu livro, em 2015, ampliei minha definição para incluir o seguinte:

“As Guerras Híbridas são conflitos identitários provocados por agentes externos, que exploram diferenças históricas, étnicas, religiosas, socioeconômicas e geográficas em países de importância geopolítica por meio da transição gradual das revoluções coloridas para a guerra não convencional, a fim de desestabilizar, controlar ou influenciar projetos de infraestrutura multipolares por meio de enfraquecimento do regime, troca do regime ou reorganização do regime.”

Em suma, isso significa que países como os EUA se aproveitam de problemas identitários em um Estado-alvo a fim de mobilizar uma, algumas ou todas as questões identitárias mais comuns para provocar grandes movimentos de protesto, que podem então ser cooptados ou dirigidos por eles para atingir seus objetivos políticos. O eventual fracasso desses movimentos pode fazer com que alguns de seus participantes recorram ao terrorismo, à insurgência, à guerrilha e a outras formas de conflito não convencional contra o Estado. Na maioria das vezes, pelo menos no Hemisfério Oriental, esses fenômenos fabricados têm o efeito de dificultar a viabilização de projetos da China de implantação da nova Rota da Seda, coagindo o Estado-alvo a compromissos políticos ou mudanças de governo ou mesmo a uma secessão –que pode eventualmente levar a uma balcanização.

Seu livro descreve as Guerras Híbridas como “caos administrado”. Como isso é construído?

O estudo detalhado da sociedade de um estado-alvo e das tendências gerais da natureza humana (auxiliado por pesquisas antropológicas, sociológicas, psicológicas e outras) permite construir um quadro de como é o funcionamento “natural” daquela sociedade. Armados com esse conhecimento, os praticantes da Guerra Híbrida podem prever com precisão quais “botões apertar” por meio de provocações para obter respostas esperadas de seus alvos, tudo com a intenção de perturbar o status quo por processos locais de desestabilização manipulados por forças externas. Podem ser conflitos étnicos, movimentos de protesto (“Revoluções Coloridas”) ou a exacerbação de rivalidades regionais. O ponto principal é produzir o maior efeito com o mínimo de esforço e, então, explorar a evolução dos acontecimentos e a incerteza crescente a fim de realizar os planos políticos.

O livro descreve os EUA como propulsores desses movimentos. Por quê?

Por causa de sua hegemonia mundial –ainda que cadente–, os EUA têm interesses globais, e suas décadas de experiência operando em todos os continentes lhe deram uma compreensão profunda da situação doméstica de praticamente todos os países. Não só é, portanto, muito mais fácil para os EUA iniciar Guerras Híbridas como eu as descrevo, mas também –e mais importante—eles têm a motivação para fazê-lo. Que é o que falta a outras grandes potências em relação a ações em países fora de suas áreas de influência regionais.

O Brasil se tornou alvo da Guerra Híbrida após a descoberta do petróleo do pré-sal?

Na minha opinião, o Brasil se tornou um alvo desde a eleição de Lula e seu movimento em direção à multipolaridade, mas a subsequente descoberta das reservas de petróleo do pré-sal definitivamente acrescentou um novo ímpeto à Guerra Híbrida dos EUA no Brasil, embora apenas porque esses recursos seriam vendidos para a China. Se Lula tivesse fechado um acordo com os EUA para fornecer acesso irrestrito ao pré-sal e também permitisse que Washington aproveitasse essa vantagem para controlar o acesso da China ao mesmo, então os EUA poderiam não ter motivação para empreender uma Guerra Híbrida no Brasil, ou poderia ser atenuada ou adiada. Porém, por causa da posição independente de Lula sobre os depósitos do pré-sal e muitas outras questões, ele e sua sucessora foram vistos como alvos “legítimos” pelos EUA porque Washington temia que eles acelerassem seu declínio hegemônico no hemisfério se não fossem detidos o mais rapidamente possível.

O fato de o Brasil ter participado ativamente dos BRICS junto com a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul também é uma das razões pelas quais ele foi alvo da Guerra Híbrida?

Sim, mas principalmente por causa do sentido simbólico dessa iniciativa, porque acredito que o movimento BRICS, apesar de ser uma plataforma muito promissora, não foi capaz de atingir seu pleno potencial por causa da rivalidade interna, manipulada pelos EUA, entre a China e a Índia. Isso prejudicou sua eficácia geral, mesmo antes da primeira fase da Guerra Híbrida no Brasil ter sido bem-sucedida em derrubar a presidenta Dilma. Sua destituição do cargo e o “golpe constitucional” contra o presidente sul-africano Zuma se combinaram para reduzir o BRICS ao tripartido original do RIC, que está profundamente dividido entre a China e a Índia (apesar das afirmações oficiais em contrário), com a Rússia assumindo papel de mediadora entre os dois. Para todos os efeitos, o BRICS não existe mais, exceto como um grupo que se reúne anualmente para conversar e, para muitos, uma lembrança de sonhos desfeitos.

Leia a entrevista completa.

 

Recomendo também:

SOUZA, J. A guerra contra o Brasil. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2020, 208 p. – ISBN 9788556080585. O livro pode ser encontrado aqui.

Diz Jessé Souza na Introdução:

Nenhuma relação econômica de dominação se constitui sem a elaboração de uma trama simbólica de ideias e valores que a legitimam e justificam. Nosso objetivo aqui é reconstruir a origem dessas ideias e valores na relação entre Brasil e Estados Unidos e analisar como foram utilizados para interromper, mais uma vez, o processo democrático de soberania brasileira nos anos recentes.

Embora o vínculo nacional seja uma dimensão importante, não se trata aqui de oposição entre nações, mas sim da condução pela elite americana de um processo imperialista de dominação mundial, inclusive sobre o seu próprio povo. Nesse sentido, tudo que aconteceu no planeta desde o começo do século XX teve a influência decisiva americana – seja para o bem, seja para o mal. Isso é verdade em todas as dimensões da vida: econômica, política, social e cultural. Este livro reconstrói as precondições históricas que possibilitaram esse desenvolvimento e investiga as causas profundas desse fato.

Como são sempre as ideias (e os valores morais a elas ligados) que interpretam, arregimentam e direcionam os interesses e as paixões individuais e coletivas, será nelas, em primeiro lugar, que concentraremos nosso interesse.

As “ideias americanas”, que servirão como justificação do império informal americano, irão se mostrar como “superação” de todo racismo e preconceito, quando, na realidade, constroem um racismo ainda mais sofisticado. Uma adaptação quase perfeita para um tipo de imperialismo baseado na influência econômica e cultural indireta, que substitui com vantagens a dominação militar direta, custosa e violenta.

A elite americana irá testar no próprio país, contra suas próprias classes populares e trabalhadoras, todas as ideias e estratégias de domínio cultural e político que utiliza para garantir a longevidade de seu domínio econômico. Nesse sentido, conhecer a história da produção do consentimento social nos Estados Unidos é compreender também as várias etapas do processo global de dominação. Isso é especialmente verdade para o caso brasileiro: um país cuja “identidade nacional” foi construída em referência direta aos vizinhos norte- -americanos e cuja dinâmica econômica, política e social interna irá se construir sob a influência americana.

Este livro completa e se une ao esforço que empreendi, em livros anteriores, para compreender de modo alternativo e crítico tanto a história quanto a dinâmica da sociedade brasileira. Ele representa, por assim dizer, a consideração de sua dinâmica externa mais importante da nossa sociedade, que se soma aos estudos tanto teóricos quanto empíricos da dinâmica interna – reconstruída a partir das classes sociais e de suas relações à sombra da influência continuada da escravidão como o dado principal.

O sucesso de A elite do atraso se deu, em grande medida, por ser uma leitura totalizante da história e da sociedade brasileiras que considera a escravidão sua influência principal até os dias atuais. O que muda nessa interpretação é que a escravidão, que não existia em Portugal, ganha o status de fator principal que determina todos os outros. Em vez de perceber a formação brasileira como uma herança cultural portuguesa que se alonga em personalismo, patrimonialismo, cordialidade, “jeitinho brasileiro” e outros tantos, como imagina o pensamento hegemônico até hoje, a institucionalização do escravismo passa a ser percebida como a origem fundamental de toda a vida material e simbólica brasileira. Precisamente por nunca ter sido criticada adequadamente, essa herança continua a existir sob formas e máscaras modernas. Duas décadas de estudos empíricos com todas as classes sociais me permitiram perceber as manifestações atuais desse fenômeno na sociedade brasileira.

O que é decisivo em uma explicação é, afinal, a hierarquia entre as ideias. Ninguém nunca negou a existência da escravidão. Mas esse dado jamais foi posto como a explicação fundamental de toda a vida econômica, política e social brasileira em todas as suas manifestações principais. O que é fundamental aqui, vale lembrar, não é a mera reconstrução histórica do escravismo, por mais importante que esta seja para o trabalho sociológico. O mais significativo é perceber como tanto a relação entre as classes sociais quanto a justificação simbólica da dominação social como um todo implicam uma continuidade da escravidão, mesmo com o advento do trabalho livre e do sufrágio universal. Rapidamente apropriado por escolas de samba, artistas, políticos importantes e por boa parte da sociedade brasileira mais crítica, hoje esse ponto de vista já não é mais individual. Tornou-se coletivo. E é bom que seja dessa forma. Só assim ele será capaz de produzir frutos sociais duradouros.

Neste livro, essa ideia é radicalizada. O estudo empírico da classe média que realizei em A classe média no espelho e a reflexão sobre a assombrosa ascensão política do bolsonarismo me fizeram compreender melhor o notável papel do racismo “racial” como o interdito, o assunto proibido, e a verdade reprimida mais importante da sociedade brasileira. Tendo estudado empiricamente todas as classes sociais no Brasil nos últimos vinte anos, percebi com clareza como esse racismo “racial” recobre perfeitamente as relações de classe entre nós.

Como falar de racismo foi interditado – em parte pelo sucesso da celebração do “brasileiro mestiço” por Gilberto Freyre na cultura e por Getúlio Vargas na política –, a questão racial foi substituída pelo falso moralismo do suposto combate à corrupção no Brasil. O que fez brasileiros privilegiados da classe média branca saírem às ruas aos milhões contra Lula e Dilma, sabemos hoje, não teve jamais qualquer coisa a ver com “corrupção”. Se assim fosse, muito mais gente branca e bem-vestida teria saído às ruas para protestar contra Aécio e Temer, apontados em evidências explícitas de corrupção e alusão a assassinatos. Como não se pode falar de racismo, seu perfeito substituto é o falso moralismo canalha do combate seletivo à suposta corrupção, voltado apenas contra quem ousa incluir negros e pobres na sociedade brasileira. É, portanto, o ódio à classe dos excluídos e marginalizados, quase todos negros e mestiços, a pedra de toque que explica a vida política arcaica e odiosa do Brasil.

Isso torna ainda mais próxima nossa relação orgânica com os Estados Unidos – um país cuja vida social e política é igualmente determinada pelo racismo “racial”, como veremos a seguir. Como as relações de dominação entre as classes sociais são baseadas na reprodução de privilégios de nascimento e permanecem literalmente invisíveis para a grande maioria das pessoas, é, em grande medida, a linguagem do racismo “racial” que possibilita sua compreensão e lhe confere concretude. A principal diferença é que nos Estados Unidos o racismo usa seu próprio nome, enquanto no Brasil ele se manifesta, quase sempre, por “interposta pessoa”, no falso moralismo do combate seletivo à corrupção que cimenta a solidariedade que existe entre as classes do privilégio no país.

No bolsonarismo, são as ideias e as práticas da extrema direita americana abertamente racista que se tornam operantes no Brasil. Nesse contexto, o racismo brasileiro passa por uma transformação. Em vez de consolidar a união das classes altas contra os pobres, como no passado, ele serve agora de combustível para a “guerra entre os pobres” que o bolsonarismo institui. Como representante político máximo das milícias organizadas, um tipo de organização criminosa que vive da exploração do medo dos mais pobres, essa guerra é, para Bolsonaro, politicamente funcional. Mas foi a extrema direita americana que lhe forneceu as ideias, as práticas, as estratégias – e, com toda a probabilidade, também o dinheiro – para o assalto ao poder de Estado no Brasil.

Este livro analisa desde as precondições históricas e simbólicas mais amplas e gerais até o momento presente, quando se insinua o instante mais perigoso da história brasileira. Hoje o poderio americano se une ao crime organizado para destruir a sociedade e o Estado brasileiros de modo consciente e voluntário, como parte de um projeto de poder mundial planejado nos ínfimos detalhes. Boa parte do que será dito aqui, sobretudo na parte final, que trata da influência da extrema direita americana na vitória eleitoral de Bolsonaro, poderá parecer a alguns “teoria da conspiração”. A mesma crítica me foi dirigida quando da publicação de A elite do atraso. A Vaza Jato de Glenn Greenwald, no entanto, comprovou a trama que havíamos reconstruído no livro.

Sem dúvida existem conspirações falsas, que podem ser criticadas com bons argumentos. Mas é óbvio que os interesses econômicos e políticos fundamentais se unem, ou seja, “conspiram” para se reproduzir ao longo do tempo. O que não existe é o acaso, que nega o fundamento mais primordial do entendimento humano, que é a relação de causalidade, ou seja, a realidade insofismável de que os fatos dispersos que observamos são encadeados a outros que permitem explicá-los e compreendê-los. Abdicar de perceber esse encadeamento factual é abdicar de compreender o mundo e, portanto, aceitar ser feito de tolo pelos que mandam nele.

Esta é uma leitura para quem acredita que os fatos do mundo não são obra do acaso, como quer nos fazer crer uma imprensa que isola os fatos e fragmenta a realidade para torná-la incompreensível. Afinal, quem tem interesse em que o mundo seja percebido como um acaso, como algo fortuito e sem direção, é precisamente quem o controla com mão de ferro. Este mundo tem donos que efetivamente conspiram, todos os dias, para reproduzir seus poderes e privilégios e explorar os que são feitos de tolos. Geralmente, os “tolos” são os que acreditam no acaso e na coincidência. O que comprova a causalidade entre os fatos sociais são as consequências práticas observáveis das ações de indivíduos e coletividades. Esse é o nosso material de estudo neste livro.

Ouse saber

Como disse Kant (1724-1804), quando questionado sobre o significado da Aufklärung [pdf, em português, aqui]:

Sapere aude [Ouse saber]! Tenha a coragem de te servir de teu próprio entendimento. Eis a divisa do Iluminismo.

No original alemão [aqui e aqui]: Sapere aude! Habe Mut, dich deines eigenen Verstandes zu bedienen! ist also der Wahlspruch der Aufklärung.

Immanuel Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?

Leia sobre isso aqui.

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Nenhum conhecimento é supérfluo