Para uma agenda teológica 2011-2013 do FMTL

Agenda planetária para a teologia para os próximos anos

A Comissão Teológica da Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo – ASETT/EATWOT irá participar da Assembleia do Fórum Mundial de Teologia e Libertação – FMTL, entre os dias 9 a 10 de fevereiro, em Dakar, no Senegal.

Sua participação visará elaborar uma agenda para a teologia em nível global pelos próximos dois anos. Publicamos aqui o documento da Comissão Teológica da EATWOT como uma contribuição para um ponto de partida para a discussão. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Para uma agenda teológica 2011-2013 do Fórum Mundial de Teologia e Libertação

Seminário Teológico do FMTL 2001

Coconstruindo uma Agenda Planetária para a Teologia para os próximos (dois?) anos

1. Introdução

Esta é uma atividade do FMTL:
(Tentando demarcar o “Seminário de Elaboração Teológica” nos objetivos do FMTL)

– O objetivo deste seminário do FMTL, realizando no contexto do Fórum Social Mundial – FSM, âmbito privilegiado único para a teologia, é elaborar uma “agenda” para a teologia em seu nível planetário. Não estamos defendendo nossas próprias prioridades locais ou regionais para colocá-las nessa agenda global da teologia. Trazendo nossas visões locais sobre o global, queremos programar-sugerir uma agenda teológica global. Damos por suposto que as agendas locais e regionais permanecem.

– Devemos esclarecer se essa agenda teológica do FMTL deve ser pensada em função das comunidades de fé e de pertença religiosa (cristãs e não cristãs), ou em função de uma teologia com responsabilidade macroecumênica, inter-religiosa, suprarregional… planetária e “axial”… Ou combinando as duas responsabilidades… Em todo caso, como o FMTL, nosso trabalho teológico quer ser multirreligioso por princípio, embora, de fato, ainda nos falte muito para a realização dessa dimensão (um desafio a ser estudado em Dakar).

– Estamos pensando não em uma “agenda teológica do FMTL” única e vinculante, mas sim em um conjunto amplo de prioridades temáticas e de propostas operativas (consultas teológicas, colaborações interinstitucionais, publicações coletivas…), assumidas como patrocinadas pelo FMTL, como a sua contribuição para fazer avançar nossas teologias no nível planetário nos próximos (dois?) anos, no que consideraríamos as fronteiras teológicas mais urgentes. Não pretendemos que todos trabalhemos em todos os temas.

– Não temos nem buscamos uma linguagem comum, uma única categorização universal, impossível epistemologicamente. Buscamos uma plataforma ampla, na qual, com linguagens e jogos de categorias diferentes, possamos nos entender, dialogar e, incorporando as diferenças, colaborar em algumas prioridades assumidas como comuns.

Esquema sobre o qual localizamos essas ideias:

O FMTL não fala para nem em nome de todas as teologias, mas sim a partir de e para as “teologias libertadoras contextuais que trabalham por `outro mundo possível`”. Queremos tomar essa constatação precisamente como o esquema de pensamento sobre o qual ordenaremos nossa proposta:

– Teologias LIBERTADORAS: impulsionadas pelo “princípio-libertação”
que concebem a realidade como história
como processo utópico-libertador
a partir da opção pelos pobres (que inclui muitas diferentes “pobrezas”).

– Teologias CONTEXTUAIS:
que, encarnadas em seus contextos locais, partem da realidade
e que voltam a ela com um compromisso militante
de práxis de transformação histórica, tanto local como global.

– Teologias DO OUTRO MUNDO POSSÍVEL, que nós chamaremos de AXIAIS, isto é, aquelas…
que reconhecem seu centro de gravidade mais do lado do futuro do que do passado,
que assumem já conscientemente que estamos em um tempo axial de rupturas e de novas dimensões,
e que tentam construir realmente a outra teologia possível, em meio aos tsunamis culturais e paradigmáticos que viemos experimentando.

Vamos estruturar nossa proposta a partir desse mesmo esquema tripartido, sobre essas três dimensões de nossa teologia, por motivos de simplicidade e clareza, e só como um modesto ponto de partida para o debate coletivo.

1. Prioridades para uma agenda de trabalho das Teologias da Libertação para os próximos (dois?) anos, esquematizada em três dimensões (libertação, contextualidade e axialidade)

• Na dimensão libertadora

Cremos que, apesar da juventude da nossa teologia libertadora, sua consistência, seu sentido, suas propostas fundamentais alcançaram maturidade há várias décadas e, apesar dos maus tempos que correm, se mantêm firmes e não estão em perigo. O fundamento da teologia libertadora, o “princípio-libertação”, goza de boa saúde e não é motivo de preocupação em si mesmo neste momento. Seria, no entanto, necessário confirmar nossos fundamentos clássicos com as novas propostas acadêmicas em matéria de filosofia política e sociologia, que propõem, há já muito tempo, uma reconsideração da política precisamente em torno à “ideia de Justiça” (Rawls, Sen)? Não deveríamos estar presentes intensivamente nesse debate? Deveríamos, assim mesmo, incorporar esses atuais avanços em uma versão renovada da próprio fundamentação de nossas Teologias da Libertação, para que possam dialogar com essa corrente tão importante e atual?

Em nível da prática diária, o que mais urge a nossa atenção de acompanhamento é a crise econômica mundial. Devemos denunciar com mais energia profética e mais penetração teórica econômica a “pressão” que a dominação econômica, nas mãos das grandes multinacionais e do sistema econômico global, dos eufemisticamente chamados “mercados”, está fazendo sobre os pobres e as classes médias, em meio a uma hegemonia cultural que conseguiu impor com os meios de comunicação a seu serviço, apresentando-se como um sacrifício inevitável e benéfico para a humanidade.

Como Teologias da Libertação, temos a obrigação de desafiar essa hegemonia cultural neoliberal que submete os pobres e de acompanhar mais de perto e mais eficazmente as iniciativas e movimentos populares e inclusive governamentais que resistem atualmente (na América Latina, concretamente, vivemos isso na ALBA e no movimento bolivariano). Talvez necessitamos revisitar teologicamente o tema das fronteiras e vínculos entre fé e política, e da nossa relação com as mediações civis e políticas para “o outro mundo possível” – e para o Reino – que já se dão autonomamente na sociedade, diante das quais não podemos ficar passivamente à margem.

Em um campo mais teórico, necessitam atenção urgente o encontro, o cruzamento, a reelaboração da dimensão libertadora da teologia, do “princípio-libertação”, nos novos paradigmas da atual “época axial” que atravessamos, para ir preparando a teologia libertadora própria da nova época, a teologia de uma libertação holística que seja realmente axial ou pós-axial. Essa releitura, que já está iniciada, deveria, sim, ser incorporada à nossa agenda operativa para esses próximos anos. Não podemos viver da renda de uma teologia libertadora cujos fundamentos teóricos foram estabelecidos em um tempo que já não é atual e que demanda essas novas abordagens e cruzamentos.

• Na dimensão contextual

A dimensão contextual da nossa teologia a reveste de rostos e urgências plurais, conforme a irredutível variedade dos diferentes lugares geográficos, sociais e humanos nos quais nos movemos. Nesse nível, é cada teologia que sente melhor as urgências próprias de seu contexto e, portanto, sua agenda operativa local ou regional.

Diante de uma agenda global, o FSM é um lugar ideal para perceber as urgências maiores do nosso contexto em nível planetário. Nesse seminário, podemos discerni-las e escolher consensualmente as que nos pareçam prioritárias entre as quais percebemos no FSM. Nós só sugeriríamos, só como um ponto de partida para o debate, se forem aceitas, estas prioridades:

as vítimas da crise econômica mundial,
as vítimas (humanas ou não) do adveniente desastre climático (a Terra, a água, a comunidade da vida, a humanidade, o patrimônio cultural e espiritual acumulado…),
as vítimas dos conflitos interculturais e inter-religiosos do choque de civilizações…
as vítimas das guerras e das armas.

• Na dimensão axial (teologias “do outro mundo possível”)

Depois de quase 50 anos de teologias libertadoras e 10 anos do Fórum Social Mundial, cremos que há suficiente clareza para dar um impulso notável a essa terceira dimensão, sobre cujo eixo o horizonte vem se curvando há tempos. O “outro mundo possível” não é só o que, com o nosso esforço, queremos construir. É também uma transformação cultural radical que estamos experimentando, como resultado de um concurso de forças que não conhecemos nem poderíamos controlar, um verdadeiro tsunami cultural.

Estamos – como vêm anunciando os melhores observadores – em um “tempo axial”, em uma transformação que contorna a realidade sobre um eixo cuja exploração pode nos ajudar a nos ajustar ao seu movimento na nova dimensão. Só entrando decididamente nessa consciência de axialidade, poderemos ajudar a construir o outro mundo possível e sua teologia correspondente, a “outra teologia possível”. Como teólogos/as, homens e mulheres especialmente voltados para a amplitude maior do horizonte do futuro, necessitamos optar mais decididamente por esse tempo novo que já vivemos e, como FMTL, tomar consciência de seu caráter verdadeiramente “axial” e dar prioridade nessa segunda década de FMTL-FSM a acompanhar e ajudar nessa transformação axial, com todas as transformações e rupturas que sejam necessárias, que propomos agrupar aqui em quatro núcleos paradigmáticos:

– O paradigma de gênero

Acompanha as teologias libertadoras desde o princípio, fazendo-se presente nos movimentos e teologias feministas (e também wumanista, mujerista, a teologia das mulheres africanas, das asiáticas e outras), com um conjunto de ferramentas peculiares (como a categoria de análise “gênero”, que se converteu em um instrumento de referência obrigatório para toda teologia) e um leque de desenvolvimentos temáticos que foram aprofundando e enriquecendo notavelmente a sua proposta sobre a corporalidade, a sexualidade, as orientações sexuais, o racismo, o etnorracismo, a violência de gênero, a marginalização da mulher, a feminilização da pobreza, o cruzamento ecofeminismo etc. Pode-se dizer que, há várias décadas, trata-se de um dos filões mais eficientes e ativos dentre o conjunto dos movimentos das teologias da libertação. Não se trata de um campo temático sectorial (teologias “de genitivo”), mas sim uma perspectiva de teologia fundamental, que implica em uma transformação transversal de todo o campo teológico e uma afetação global à vida: da prática mais cotidiana até a própria imagem de Deus e outros símbolos religiosos, tudo é transformado por essa nova perspectiva superadora do patriarcalismo, do kyrialismo, do racionalismo desengajado do oikos multirrelacional e holístico do qual, equivocadamente, nos separamos em algum momento da nossa história ancestral.

Embora essa perspectiva e a Causa que a move não sejam “assunto de mulheres”, mas sim uma realidade profundamente humana e humanizadora, e embora não é preciso ser mulher para sentir a necessidade urgente de assumir decididamente essa Causa, cremos que são principalmente os agrupamentos específicos nessa linha teológica, presentes neste Fórum, que com melhor conhecimento de causa poderão nos propor as prioridades (tanto em conteúdos temáticos como em enfoques hermenêuticos) que deveríamos assumir para a agenda teológica global que pretendemos elaborar neste FMTL.

E isso não só porque elas são especialistas em teologia feminista, mas também porque são as mulheres que mais sofrem na própria carne o sexismo e porque, como teologias da libertação, não só queremos falar em favor dos pobres, mas também acolher em nossa teologia as vozes das pessoas às quais a opressão silencia.

– O paradigma pluralista

O inclusivismo atualmente hegemônico nas Igrejas e nas teologias não é mais do que uma forma de exclusivismo atemperado. Necessitamos terminar de cruzar a ponte e passar para o novo território emergente, o “pluralismo de princípio”. Nossas religiões foram elaboradas em um tempo em que era possível o exclusivismo, a absoluticidade e a unicidade de cada religião.

Esse tempo acabou, embora as religiões se empenhem em prolongá-lo, com a cumplicidade das teologias que ainda não despertaram. O passo que foi dado do exclusivismo ao inclusivismo não resolve os problemas, só os posterga. É hora de reconstruir toda a nossa teologia sobre a evidência do “pluralismo de princípio”, o fim do mito da superioridade religiosa de princípio e o deslocamento do horizonte para uma “religação profunda”, que nos situa para além dos exclusivismos e inclusivismos históricos.

Porém, a maior parte das nossas teologias são confessionais, inclusivistas e não poucas vezes criptoexclusivistas; não estão preparadas para dialogar e colaborar/intercambiar com as outras religiões em pé de igualdade; não exploram a possibilidade de fazer teologia a partir de uma responsabilização planetária inter-religiosa, única forma de possibilitar a convivência fraterna das religiões e uma aliança de todas elas em favor da Paz e do Bem Comum da Humanidade e do Planeta.

Só uma teologia assim, axialmente “pluralista”, que abandone definitivamente os exclusivismos, as superioridades, as autoatribuições de unicidade e absoluticidade, e a consequente visão proselitista do mundo… poderá ser teologia “axial”, do novo tempo, uma teologia que assuma lucidamente os eixos em torno dos quais o mundo atual já está girando e se abrindo a outro tipo de consciência. Reconverter toda a teologia tradicional a partir da nova perspectiva pluralista poderia ser uma tarefa prioritária na qual muitos de nós poderíamos nos propor a convergir nestes (dois?) próximos anos.

E embora se saia da nossa área estritamente teológica, deveríamos nos perguntar se o FMTL poderia estudar a possibilidade de propiciar um Fórum Macroecumênico das religiões e tradições espirituais, para unir no dar resposta à urgência climática e econômica atual.

– O paradigma ecológico

Uma boa parte das nossas teologias continuam se movimentando no imaginário elaborado pelos relatos míticos religiosos da “história da salvação (humana)”, revelada nos últimos quatro milênios, ignorando o que hoje sabemos sobre os 13,7 bilhões de anos de história cósmica deste universo. Boa parte das nossas teologias ainda continuam sendo dualistas, imaginando que estão diante de um segundo piso superior, sobrenatural, divino, eterno… para o qual é preciso viver, frente a este piso inferior em que estamos, natural, maligno e tentador, efêmero, simples despensa material de recursos utilizáveis.

Certas teologias continuam falando – às vezes um pouco pudorosamente – de uma salvação pós-mortal celestial do ser humano, como se esse fosse o objetivo único da vida humana. Segue sendo uma teologia antropocêntrica, que nos confina em nosso software particular, desengajando-nos e alienando-nos com relação à Terra e o cosmos.

Nossa teologia não deixará de legitimar a destruição da natureza enquanto não mudar sua visão. Não deixaremos de destruir a natureza enquanto não adquirirmos a convicção religiosa de que somos parte dela.

A maior parte das nossas religiões e teologias ainda mantem o divino e o sagrado confinados na chamada “transcendência”, concebendo a Deus como “theos”, como um “Senhor” aí fora, aí em cima, deixando este mundo privado de divindade, e até de sacralidade, e sedento de reencantamento.

O planeta se confronta com a sexta extinção massiva da vida. Agora, não por um asteroide, mas sim pelo próprio ser humano. Com o seu sistema de vida, ele se converteu de fato em uma força geológica destruidora da biodiversidade em um ritmo mil vezes maior do que antes da aparição do ser humano. Com a contaminação atmosférica, estamos provocando um aquecimento planetário – já quase com segurança – maior do que os 3ºC considerados o limite cuja transgressão desencadeará um caos irreversível que extinguirá massivamente a vida e a própria humanidade. E nossas religiões e teologias, que não denunciaram essa orientação suicida durante os séculos passados, ainda hoje se mostram reticentes, lentas para assumir essa urgência de vida ou morte, que já cobra anualmente centenas de milhares de vítimas, que dentro de 20 anos se calcula que chegarão a um milhão.

Grande parte da teologia ainda pensa que o ecológico é importante, mas que só seria um capítulo adicional a ser encaixado no velho esquema de pensamento, o mesmo que nos levou ao ecocídio atual. Falta-nos desenvolver essa teologia com bases novas que já iniciamos; uma teologia oikocentrada, que rompa com a velha distinção entre o natural e o “sobrenatural”, e que descarte a ideia estritamente transcendente da divindade que dessacraliza e despoja a natureza da dimensão divina; uma teologia que dialogue com a “ecologia profunda” e deixe de entender antropocêntricamente a realidade como “história de salvação da humanidade” e se oriente para um oikocentrismo… Isto é, uma teologia axialmente nova, concebida a partir desses novos eixos.

Deveríamos concordar em introduzir em nossa agenda teológica imediata essa prioridade urgentíssima de desenvolver essa teologia já iniciada. As teologias indígenas e feministas têm muito a dizer e a contribuir nesse campo.

– O paradigma pós-religional

Já se tornou lugar comum, inclusive na sociedade civil, a crise da religião que já alcança meio planeta, enquanto na outra metade uma reviviscência religiosa explode em novas Igrejas, religiões, espiritualidades sincréticas e uma avalanche neopentecostal… De qual dessas duas metades da humanidade será o futuro?

Os dados tão contraditórios que observamos possibilitam os diagnósticos mais díspares. Mas, levantando o olhar para ver o trecho mais amplo possível do rio da história, parece que, apesar de todos os meandros e redemoinhos, o rio como conjunto encaminha as suas águas para uma única direção global… As populações que saem da pobreza e têm acesso à educação e à cultura urbana moderna logo se ressentem em sua religiosidade tradicional.

Contando como nunca com o apoio de um amplo espectro de ciências da religião, se submetem a novo escrutínio natureza e a origem da religião e seus mecanismos de funcionamento; ela já não é considerada gratuitamente como o conhecimento privilegiado e o instrumento de espiritualidade preferencial o único como sempre se considerou; distingue-se cada vez com mais frequência entre religião e espiritualidade, e se estende por todo o lugar a tese de que as “religiões” – não a religiosidade, não a “religação” – são também construção humana, datada no tempo da revolução agrária, de matriz rural e com possível data de caducidade, ligada ao desaparecimento dessa mesma época agrária, desaparecimento que muitos analistas acreditam estar ocorrendo em nossa atualidade. A espiritualidade, a religiosidade, a “religação” é essencial ao ser humano; as religiões, as formas concretas que essa religação assumiu na época agrária, não o são, podem se transformar radicalmente ou até desaparecer.

Essa visão já está presente em muitos ambientes culturais e nas prospecções antropológicas civis de nossas sociedades. Não está no campo de visão das instituições religiosas, nem das massas populares com menor acesso à educação. Trata-se de um dos desafios maiores, nos quais se põe em jogo quase tudo pelo todo das religiões. Impõe-se a urgência de reavaliar a religião (uma nova reflexão teológica sobre a religião, uma nova “teologia da religião”), de estudar a fundo a possibilidade de sua anunciada superação (rumo a um ser humano arreligioso ou suprarreligional?) e de dar efetivamente “prioridade à religião sobre a religião”, pondo a teologia efetivamente a serviço da religação, não das religiões, como objetivo último.

Toda essa problemática (que chamaremos de “pós-religional”, para não dizer pós-religiosa, já que as pessoas não perdem sua dimensão religiosa profunda quando abandonam os modos das religiões) inclui, entre seus múltiplos conteúdos, a reavaliação do teísmo. Tido por indubitável e imprescindível em boa parte das tradições, hoje ele diminui a sua qualificação epistemológica, não sem que intervenha nisso a convivência agora muito próximo entre religiões teístas e não teístas. O eclipse de Deus e a crise da religião adquiriram já dimensões epocais na Europa e no Primeiro Mundo em geral, mas, nos outros continentes, muitos setores também começam a senti-las, mesmo em meio da efervescência neopentecostal. Não deveríamos nos propor já essa necessidade dessa nova reflexão sobre a própria religião, a urgência de uma releitura e reconversão do religioso ao “pós-religional” (a espiritualidade além das religiões)?

Nesse desafio, a experiência europeia nos parece ser um verdadeiro “lugar teológico”. Sua exposição neste mesmo seminário sobre a “crise da religião” e a “crise de Deus” expressa melhor e confirma essa problemática. Sem dúvida, os teólogos/as europeus/ias têm muito a contribuir com todos nós nesse aspecto.

– O paradigma epistemológico

O ser humano está mudando nessa dimensão tão sutil e difícil de perceber: muda a sua forma de conhecer, seus pressupostos acríticos, postulados e axiomas milenares nos quais se fundamentava sem saber, os modos de inferência até agora utilizados e as forças e dimensões neles implicadas. Uma revolução epistemológica que afeta todo o conhecimento e, mediante ele, todo o resto.

Durante muito tempo, estivemos instalados em um cômodo “realismo ingênuo”, que postulava a adaequatio rei et intellectus, uma correspondência direta entre o que pensamos ou expressamos e a realidade. Interpretamos de forma literal as crenças que os mitos religiosos veiculam, como se estes fossem descritivos da realidade, porque teriam sido revelados de fora por uma autoridade absoluta… Mantivemos laços muito estreitos com a metafísica, o racionalismo e o substancialismo, à margem do evolutivo, do caótico e do processual.

O novo paradigma epistemológico considera que o nosso conhecimento não descreve a realidade, mas sim simplesmente a modela, e que o conhecimento religioso também é construção humana, elaborado com base em metáforas aproximativas, que com o tempo se tornam obsoletas e até prejudiciais… Assistimos há muito tempo a dissolução da metafísica, o que significa uma crise radical de fundamentos, sobretudo para a teologia cristã tradicional.

Como outrora e em outro sentido Kant pediu, o novo paradigma nos pede para “despertar do sonho dogmático religioso” que até agora sonhávamos. Estamos passando do paradigma metafísico e dogmático para o paradigma epistemológico e hermenêutico. O mundo religioso tradicional de crenças religiosas veiculadas por mitos tidos como literalmente certos desaparece. A epistemologia realista, ingênua, acrítica, mítica, vai se tornando impossível na nova sociedade de conhecimento para a qual avançamos.

Em não poucos lugares do planeta, está sendo experimentada uma ruptura na transmissão das religiões: novas religiões sentem-se incapazes de aceitar o legado de seus mais velhos. A religião já não vai poder consistir em “crer”, em “submeter-se” à revelação vinda de fora, nem em aceitar verdades ou doutrinas… Talvez vamos rumo a uma religião sem verdades, sem doutrinas, reduzida à sua essência: a “religação”, a espiritualidade… Tudo o que foi milenarmente elaborado e expressado mediante aquela epistemologia ancestral precisa ser reformulado.

O pluralismo cultural e religioso crescente de nossas sociedades acrescenta uma nova dimensão à nova perspectiva epistemológica: a interculturalidade. Tornamo-nos conscientes da limitação de toda tradição cultural, assim como da necessidade de compensar sua atávica tendência centrípeta exclusivista. Acabou-se o mundo da uniculturalidade, imposta ou hegemônica. Devemos passar definitivamente para a interculturalidade ou para a multiculturalidade… Há como encontrar um campo (categorias, linguagem, epistemologia…) comum em que possamos nos encontrar para dialogar, para teologizar e para a práxis histórica de libertação?

As novas ciências, principalmente a quântica, a cosmológica e as ciências da mente, continuam difundindo-se irrefreavelmente na opinião pública e nos meios de comunicação, inclusive em setores que pareceria que as preocupações das pessoas são mais primárias e elementares… Muitas das perguntas religiosa clássicas agora parecem ter a ver mais com essas novas ciências do que com a religião. Muitas pessoas, diariamente, optam por confiar o sentido de sua vida mais à nova ciência do que à religião. Faz-se necessária uma reformulação da teologia em diálogo com a ciência. É um tema candente e uma prioridade inadiável.

Uma revolução epistemológica se assoma, urgindo-nos, pois, a uma reavaliação das seguranças de objetividade que acreditávamos ter em religião e a uma reinterpretação da religião mais claramente como religação, liberta de verdades, doutrinas, dogmas, morais, cânones, institucionalizações… Uma mudança verdadeiramente axial. Não é um bom momento para nos propormos a enfrentá-la em nível global?

Sem dúvida, há muitos outros enfoques possíveis, muitas outras categorizações e também muitas outras visões locais sobre as prioridades globais, razão pela qual esta proposta poderá ser complementada e corrigida. Da EATWOT/ASETT, com toda modéstia, oferecemos essa nossa visão, para o debate no FMTL, tal como nos foi solicitado.

2. Elaboração de propostas operativas para a nossa “agenda teológica 2011-2013”.

Sugerimos dois passos talvez simultâneos:

A. Escolher neste seminário as prioridades temáticas que irão constitui nossa agenda teológica em nível de FMTL – que não é o único nível de nossas agendas teológicas. Fazer isso mediante debate em grupos tanto linguísticos quanto geográficos ou regionais, ou segundo algum outro critério oportuno. Fazer uma eleição realista: não um elenco de todas as prioridades que nos preocupam e que não deveriam faltar em uma “Summa” da teologia da libertação, mas sim uma seleção realista, limitada a um número manejável de projetos temáticos que possam ser realizados adequadamente nos (dois?) próximos anos (até um próximo FMTL?) nesse âmbito ou nível planetário que, pela primeira vez, queremos organizar a partir de um FMTL.

B. Decidir uma metodologia para a realização dessa “agenda teológica”. Adiantamos essa proposta de metodologia, como um simples ponto de partida para o debate:

– Neste Seminário do FMTL, talvez só poderemos debater e escolher algumas poucas prioridades e orientações metodológicas com as quais trabalharemos nessa primeira experiência de uma “agenda teológica do FMTL”.

– O Secretário Permanente do FMTL, talvez ajudado por alguns representantes escolhidos, poderia ficar alguns dias mais em Dakar para dar forma adequada a essa proposta de agenda, que poderia incluir e detalhar:

as prioridades escolhidas como linhas de ação;
as linhas de investigação que poderiam ser postas em marcha;
as Consultas temáticas que poderiam ser realizadas em nível local, regional e/ou internacional;
as publicações (livros, revistas monográficas, congressos ou eventos) oportunos…

O FMTL tornaria pública imediatamente a agenda em sua versão final.

– Poderíamos dar um prazo de um mês – ou talvez mais – para que instituições teológicas acadêmicas possam estudar a proposta e considerar seu envolvimento ativo, assumindo algumas iniciativas da agenda, comprometendo-se a realizá-las ou liderá-las em algum de seus níveis (local, regional, internacional/mundial). O Secretariado acolheria as eventuais iniciativas e faria o serviço de dar orientações úteis para sua melhor coordenação. Poderia ser, por exemplo, para cada projeto temático, desta maneira:

– Estabelecer um “período de exploração e provocação”, convidando entidades acadêmicas e organizações-associações teológicas maiores a publicar tomadas de posição ou alguma “declaração de princípios básicos” com relação ao tema.

– Realizar em uma segunda etapa algumas “Consultas teológicas”, seja a cargo das instituições que que tenham se oferecido a assumir a ideia ou a cargo do próprio FMTL (principalmente alguma de nível internacional ou mundial ou alguma que não tenha sido assumida por entidades particulares), sobre cada temática, oportunamente publicada.

– Propiciar, em seguida, um tempo para a participação mais ampla possível nessa investigação e reflexão, mediante a produção de livros coletivos e/ou números monográficos de revistas internacionais (livros e revistas que obrigatoriamente deveriam ter uma versão em formato digital ao alcance gratuito de todos – teólogos, inclusive estudantes, público em geral –, acolhendo em suas páginas a participação seccionada por concurso a participação mais ampla possível.

– O Secretariado poderia assumir a animação e a coordenação da realização dessas tarefas, tentando fazer com que elas cheguem a um desenvolvimento aceitável antes do próximo FMTL.

Necessitamos que algumas instituições maiores, associações continentais ou mundiais, Universidades, meios de comunicação teológica (revistas) e Agências financiadoras… apoiem concretamente a realização do programa da agenda teológica para os próximos (dois?) anos. E todos/as ficaríamos convidados a fazer com que nosso trabalho teológico convirja nessa agenda global, sem descuidar de nossas agendas teológicas de nível local ou regional, às quais aqui não nos referimos, mas que continuam sob a nossa consideração local e regional.

A EATWOT, desde já, se adianta a pôr ao serviço da comunidade teológica internacional e oferece seus vários projetos e plataformas para ajudar a desenvolver essa metodologia.

José María Vigil
Comissão Teológica Internacional da EATWOT/ASETT

Fonte: IHU On-Line: 09/01/2011