Ravasi fala sobre o relato do Gênesis e a evolução

Uma entrevista que vale a pena ler. Feita por Alexandre Gonçalves. Publicada em O Estado de S. Paulo de 16/03/2009.

É bom lembrar: muito antes de ocupar cargo no Vaticano, Gianfranco Ravasi, o entrevistado, já era conhecido biblista.

Reproduzida por Notícias – IHU On-Line em 17/03/2009, com o título ‘Se a fé não é pensada, não é nada”. O que a Igreja pensa da evolução?

“Não cabe à Igreja dizer se a evolução é uma tese, uma hipótese ou qualquer outra coisa”, afirmou o arcebispo italiano Gianfranco Ravasi ao Estado. Ele foi o principal responsável pelo congresso sobre darwinismo patrocinado pelo Vaticano no início do mês. Presidente do Conselho Pontifício para a Cultura – órgão da Santa Sé que promove o diálogo da Igreja católica com o mundo contemporâneo -, Ravasi comentou também o ensino do evolucionismo nas escolas, a interpretação dos textos bíblicos sobre a criação e o fenômeno contemporâneo do ateísmo.

 

Por que a Igreja realizou um congresso sobre evolucionismo?

As relações entre ciência e fé foram turbulentas. É justo reconhecer que houve momentos negativos. Refiro-me sobretudo ao caso Galileu. No ano 2000, João Paulo II quis pedir perdão e enterrar este passado. Agora, procuramos nos orientar para o futuro. O tema este ano é a evolução. Vale a pena lembrar que a Igreja católica nunca condenou Darwin ou seus escritos. Em 1950, Pio XII considerava compatíveis evolução biológica e doutrina católica. Em 1996, João Paulo II disse que a teoria da evolução é praticamente um consenso entre os cientistas, o que convida a um diálogo com a teologia, que naturalmente se move em um plano diferente. Por isso, patrocinamos este congresso internacional que contou com a presença de cientistas de renome que conversaram com filósofos e teólogos. Cada um segundo sua própria perspectiva.

Bento XVI fez alguma indicação concreta?

O papa deixou muito livre o debate. Participaram do congresso pesquisadores que não creem ou professam outros credos, como budistas, por exemplo. Estiveram presentes várias expressões culturais e cada uma delas pode falar. Mesmo na filosofia e na teologia estavam representadas diversas abordagens. Bento XVI quis reafirmar, como em outras ocasiões, a importância do diálogo entre razão e fé. Inspira-se em Agostinho de Hipona que dizia: “Se a fé não é pensada, não é nada.” Bento XVI não deu nenhuma indicação precisa porque prejudicaria o diálogo.

O que a Igreja pensa da evolução?

A Igreja católica não deve pensar nada, porque é uma questão especificamente científica. João Paulo II disse que “novos conhecimentos levam a considerar que a teoria da evolução é mais do que uma hipótese”. Foi simplesmente uma constatação, pois o papa desejava abrir o diálogo teológico. No entanto, cabe ao cientista argumentar sobre o status do darwinismo. Se a evolução é a posição dominante entre os pesquisadores, faz sentido começar a reflexão teológica sobre ela. Mas não cabe à Igreja dizer se a evolução é uma tese, uma hipótese ou qualquer outra coisa.

Como compreender a narrativa bíblica da criação?

A religião judaico-cristã não é uma religião do livro. A Palavra de Deus precede e ultrapassa a Bíblia. Por isso, na sua forma escrita final, necessita interpretação. Tradicionalmente, há dois caminhos para compreender a Escritura. O primeiro tenta distinguir os “sentidos espirituais” do texto sagrado – a mensagem divina expressa nas palavras humanas. O segundo é a análise histórico-crítica que investiga as palavras humanas – pronunciadas em idiomas concretos e ligadas a uma cultura particular, a coordenadas históricas precisas e a determinados gêneros literários. Os dois métodos precisam dialogar. É um relacionamento análogo ao que deve existir entre ciência e teologia.

Mas como interpretar os primeiros capítulos do Gênesis?

No Gênesis, fala-se da origem histórica da humanidade para revelar seu sentido profundo, que é meta-histórico. Fala-se do primeiro homem, não porque desejamos descrever o que aconteceu durante a evolução – não se pensava nisso quando a Bíblia foi escrita: as espécies são fixas na sua narrativa -, mas para compreender a humanidade. É uma realidade histórica que somos filhos de Adão – ou seja, todos descendemos da mesma linhagem humana -, mas a mensagem principal é meta-histórica. O relato do Gênesis procura identificar as três relações fundamentais: com o Criador, com a criação e com o próximo. A Bíblia coloca naquele personagem primordial o rosto de todos os homens. O nome Adão, em hebraico, confirma esta intenção: ha’-adam. Ha é o artigo definido “o”. ‘adam significa “aquele que tem a cor ocre da argila”. É o Homem com “H” maiúsculo. Não é um nome próprio, mas uma representação. Trata-se de uma análise sapiencial, o que não significa uma análise teórica ou vaga. Procuro quem sou eu refletindo sobre minha origem. Mas a pergunta “quem sou eu” tem um caráter metafísico e meta-histórico. Não é uma indagação científica sobre a origem biológica do homem.

É possível harmonizar o relato bíblico com a teoria da evolução?

A evolução, quando lida do ponto de vista teológico, é a obra criadora de Deus que não compreende só um instante no qual tudo se constitui, mas um verdadeiro itinerário, assim como a história da salvação descrita na Bíblia é um percurso com diversas etapas. Dentro deste itinerário evolutivo, no surgimento do homem, há um selo singular de Deus, que costumamos chamar alma. A Bíblia só usa este termo em épocas mais tardias. De qualquer forma, é uma palavra para designar a especifidade da criatura humana. O genoma do homem é 97% semelhante ao do chimpanzé. Uma diferença genética de apenas 3% torna-se imensa quando consideramos a capacidade simbólica, estética e racional do ser humano. A teologia não pretende saber quando esta diferença surgiu dentro da trama evolutiva. Mas, quando o homem se constitui de forma vital, existe naquele momento a alma humana, com seu mistério, sua transcendência e sua capacidade de amar até a doação de si que vai muito além do instinto natural – às vezes, até a morte. Aqui começa aquela dimensão que é propriamente humana e se constitui objeto de estudo da filosofia e da teologia.

Na sua opinião, como deve ser ensinada a origem do homem nos colégios?

É uma questão complexa. A ciência não deve considerar a teologia ou a filosofia como discursos de um passado arqueológico, mas como reflexões necessárias que – de modo semelhante à arte – revelam dimensões secretas da pessoa. Por outro lado, a teologia não deve impor seus próprios esquemas como já aconteceu no passado. Movendo-se em planos diferentes, precisam dialogar. Nas escolas, uma não deve invadir o espaço da outra, mas mostrar que são abordagens diferentes para os mistérios do homem e da natureza. Seria conveniente que os dois professores manifestassem mutuamente seus pontos de vista e, depois, apresentassem as diferentes perspectivas aos alunos. Nos temas mais prementes, como a origem do homem ou a bioética, poderiam estar juntos para fomentar o confronto de idéias. Esta interdisciplinaridade é a linha adotada em muitas universidades. De alguma forma, fizemos isso no congresso sobre Darwin.

A Bíblia diz: “Os céus narram a glória de Deus e o firmamento anuncia a obra das suas mãos” (Sl 18, 2). Para muitas pessoas, os céus e o firmamento não dizem nada sobre Deus.

Descobrir no interior do cosmos, não a casualidade e o caos, mas uma mensagem, é um caminho espiritual. O famoso teólogo Daniélou chamava este itinerário de “revelação cósmica”. Todos os homens deveriam se esforçar para compreender o pergaminho que se estende do céu até a terra – a palavra secreta da própria criação. Tiro esta imagem da tradição sinagogal. Muitos homens veem o cosmos e permanecem insensíveis porque perderam a capacidade de se admirar. Contemplam o mundo com um olhar técnico, frio. Talvez por isso, violentemos a terra e escondamos os céus atrás da poluição. Precisamos fomentar a disposição que animava Pascal. Ele olhava os espaços infinitos, considerava a fragilidade humana e ficava perplexo diante de um contraste tão grande. O escritor inglês Chesterton dizia que o mundo não perecerá por falta de maravilhas – são muitas – mas por falta de admiração. A verdadeira ciência é diferente da técnica. A técnica mede. A ciência tenta compreender o conjunto dos fenômenos. O físico Max Planck escreveu: “Ciência e religião não estão em conflito, mas se completam na mente do homem que pensa de forma integral”. A verdadeira ciência ajuda-nos a compreender que estamos imersos em um mistério. A priori, não vou qualificá-lo como divino, mas seguramente transcende a razão humana e a própria humanidade. Recordo a belíssima imagem de Newton que se via como uma criança que brinca na praia e descobre conchas, seixos, pedras… contudo, diante dela, abre-se o imenso oceano da realidade.

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