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15. Observações finais
Por último, quero lembrar que uma das maiores dificuldades da leitura socioantropológica vem de seu interior mesmo, das opções de seus teóricos. A partir da II Guerra Mundial aconteceu a burocratização do trabalho do sociólogo e o comprometimento cada vez maior de seus teóricos com a defesa da sociedade capitalista contra a expansão do socialismo. Passou-se a confundir a sociologia crítica, não conservadora e não funcionalista, com um comunismo a ser combatido a todo o custo. Na sociedade norte-americana, a sociologia, vinculada ao meio universitário, caracterizou-se por um acentuado reformismo, investigando temas relacionados com a desorganização social, com as questões urbanas, com a integração das minorias etc, mas perdeu de vista a totalidade social.
A avalanche empirista que tomou conta das ciências sociais nos Estados Unidos chegou também aos países periféricos, como o Brasil, representando uma profunda ruptura com as tendências de clássicos como Weber e Marx. O fenômeno da pós-modernidade, com a suposta falência das grandes teorias explicativas da história, agravou mais ainda o fenômeno.
Não é difícil perceber também como o funcionalismo é a referência mais comum dos estudos bíblicos analisados nestas páginas. A postura conservadora, inerente ao funcionalismo, preocupado com a ordem social é que, apesar das características de cada um, talvez tenha unido pensadores tais como Durkheim, Malinowski, Radcliffe-Brown, Talcott Parsons e tantos outros.
No Brasil a coisa se agrava mais ainda, pois numa sociedade em transição do rural para o urbano como a nossa persiste em muitos meios uma ordem patrimonial que sufoca o pensamento racional livre, considerado incompatível com seus interesses. A justificação moral existente emanava, ainda há pouco, do poder dos costumes, e a “explicação racional do comportamento humano e da origem ou do funcionamento das instituições, como a sociológica, encontrava natural resistência”, já dizia Florestan Fernandes[61].
Mas, como nos lembrava Carlos B. Martins na década de 80, “ao lado de uma sociologia que estendeu suas mãos ao poder, não se pode deixar de mencionar as importantes contribuições proporcionadas por uma sociologia orientada por uma perspectiva crítica [como a da Escola de Frankfurt e a de seus seguidores]. Em boa medida, esta sociologia tem permitido a compreensão da sociedade capitalista atual, das suas políticas de dominação e dos processos históricos que buscam alterar a sua ordem existente”[62]. Cabe aos especialistas investigar as atuais condições do pensamento socioantropológico e aos biblistas retomar este veio crítico dos grandes clássicos que nunca secou de verdade. Recomendo, neste sentido, especialmente as obras de Robert Kurz[63].
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>> Bibliografia atualizada em 02.06.2022
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Última atualização: 02.06.2022 – 11h03