O relato de uma prática: roteiro para uma leitura de Marcos
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Convido o leitor para uma visita ao evangelho de Marcos. E recomendo um roteiro para uma leitura contínua do texto. Mas, que critérios seguir?
Com frequência, a leitura que se faz do evangelho procura a Palavra de Deus dirigida ao eu que leio, em cada passagem. E, sem mais, de tal passagem, tira-se uma mensagem, dita espiritual, que é imediatamente aplicada ao nosso tempo, para dar resposta aos nossos problemas.1
Tal leitura deve ser questionada, pois o texto funciona como um mecanismo que só adquire sentido quando olhado no seu conjunto. E também porque a sociedade em que o evangelho foi escrito era muito diferente da nossa sociedade atual. Eram outras suas coordenadas econômicas, políticas, sociais e ideológicas. Ora, o texto do evangelho não escapa destas instâncias concretas onde foi produzido. Pelo contrário, ele se posiciona em relação a tais situações.2
Portanto, é preciso identificar o posicionamento do texto acerca de seu tempo, o tempo da comunidade, em Roma ou, mais provavelmente, em Antioquia, ou mesmo na Galileia, por volta dos anos 70, como também as atitudes assumidas por Jesus e seus seguidores, na Palestina, por volta do ano 30. Com isto, o leitor fica mais preparado para compreender e atualizar a mensagem evangélica.
Assim, proponho seguirmos os passos de Jesus e dos personagens que se movimentam ao seu redor, segundo o relato de Marcos. Descobriremos que a Boa-Nova foi anunciada em um contexto de intenso conflito e expectativa, e que o evangelho foi escrito para preservar uma memória proibida que alimentava a luta dos oprimidos.3
O relato de uma prática
Olhando o evangelho de Marcos, uma coisa logo chama a atenção do leitor. Ainda no seu início, em Mc 1,21-22, diz o texto que Jesus ensinava4 na sinagoga de Cafarnaum. Os seus ouvintes ficaram assombrados com o seu ensinamento. E logo no v. 23 o texto passa a contar uma ação de Jesus.
E o que ele ensinava? O texto não diz. Mas o interessante é que casos como este vão se repetir ao longo do evangelho, ou pelo menos, de parte dele, como, por exemplo, em Mc 2,13; 4,1-2; 6,2.6.34. Só a partir de 8,31 é que se indica mais clara e sistematicamente o conteúdo deste ensinamento, como em Mc 8,31; 9,31; 12,35 etc.
O que significa isto? É que Marcos, ao contrário de Mateus e Lucas, preocupa-se muito mais com a prática de Jesus do que com o seu discurso. A narração de Marcos não é, na verdade, uma coleção de palavras ou de discursos de Jesus, mas a exposição de suas práticas e estratégias. Para Marcos, o ensinamento de Jesus é a sua própria prática. Jesus ensina fazendo.5
Os atores do texto
Então, a partir desta constatação, é bom a gente começar a se preocupar com as atitudes do protagonista do texto, Jesus, e também com as atitudes dos outros personagens que se movimentam ao seu redor ao longo desses 16 capítulos.
Quem são estes personagens? O protagonista, sem sombra de dúvida, é Jesus. Ao redor dele movem-se os seus seguidores: os discípulos/os Doze, que representam o Israel institucional, e aqueles que estavam o redor dele, que não pertencem ao Israel institucional.6
Por sinal, o Jesus de Marcos está sempre acompanhado por seus seguidores, exceto em duas ocasiões: quando eles partem em missão e quando Jesus é condenado e morto.
Outro grupo que se destaca é a multidão que procura Jesus, porque o admira e precisa de seus milagres. Finalmente, do outro lado da trincheira, estão os representantes do poder judaico: fariseus, escribas, herodianos, anciãos, sumos sacerdotes, saduceus. E romanos. São os seus adversários, gente que o procura para vigiar, investigar, prender e matar.
Um esquema para Marcos
E, de repente, aparece o problema da divisão ou esquema adequado a uma leitura do evangelho de Marcos.
Cada autor apresenta um sistema diferente. Alguns dividem o evangelho segundo um esquema histórico-geográfico, outros preferem uma divisão por temas, outros ainda evocam elementos literários para justificar esta ou aquela estrutura do texto. Muitos usam sistemas mistos.7
Há, entretanto, grande consenso entre os especialistas quanto a ser Mc 8,27-30 o núcleo decisivo do evangelho, dividindo-o em duas etapas.
O esquema deste roteiro pode ser representado por uma escada de dois lanços, cada um respondendo a uma questão fundamental, degrau por degrau:
1. Quem é Jesus?
2. Que tipo de Messias Ele é?
O patamar entre os dois lanços é ocupado pela confissão de Pedro: “Tu és o Cristo (= o Messias)” [segue-se um desenho da “escada”].
1. A proposta do autor
Mc 1,1 é a proposta do autor, uma espécie de título do livro. É uma confissão de fé, uma “tese” que o redator se propõe demonstrar ao longo dos 16 capítulos da obra.
Jesus é confessado como o Messias, em grego, o Cristo, e como o Filho de Deus. Messias é o título que expressa, no evangelho de Marcos, o posicionamento do grupo judeu seguidor de Jesus, confessado por Pedro em Mc 8,29. Filho de Deus, por outro lado, pertence à afirmação dos seguidores não-judeus, como o centurião romano de Mc 15,39. Já o título Filho do Homem, preferido por Jesus, que indica o Homem integral, completo, inclui os dois primeiros.8
2. O anúncio da libertação
Mc 1,2-15, o prólogo do evangelho. Vale a pena anotar alguns elementos que ele contém.
Em primeiro lugar, observa-se um circuito da voz: do profeta, de João, do céu, de Jesus. A voz do céu interrompe de vez a de João, que se eclipsa, e autoriza a de Jesus. A voz é dirigida a Jesus como uma eleição, capacitando-o para uma atividade específica, o anúncio do Reino de Deus. Sua pregação é sintetizada nos v. 14-15.
De modo variado e intenso se anuncia, através de símbolos (a caracterização de João, a pomba, a abertura dos céus), de atitudes (de João, de Jesus, de Deus) e de palavras (do profeta, de João, do céu, de Jesus), a chegada da era messiânica, o tempo da libertação tão desejada.
Além disso, há, neste início de evangelho, um caminho percorrido por Jesus da Galileia para a Judeia e, de volta, para a Galileia. Este percurso é programático, ou seja, é o programa geográfico de todo o evangelho. Antecipa, programando, o itinerário seguido por Jesus ao longo do evangelho: atuação na Galileia – na Judeia – volta à Galileia, ressuscitado.9
Por último, vê-se que a abertura dos céus, símbolo do restabelecimento do diálogo interrompido entre Iahweh e Israel, e a descida do Espírito, simbolizando o povo de Israel na sua caracterização como pomba10, indicam a inauguração de um tempo novo, que será o tempo da atuação de Jesus.
3. Amostras da prática de Jesus
Mc 1,16-45 descreve um dia de Jesus na Galileia, em arranjo claramente artificial de Marcos. E, neste primeiro dia do texto, já são definidas várias posições.
Jesus situa-se em um grupo, para começar a ação específica de sua missão. Este primeiro grupo é constituído pelos seus discípulos Simão, André; Tiago e João, filhos de Zebedeu. Todos pescadores, galileus, trabalhadores que viviam bem longe das determinações de poder de Jerusalém, centro da ordem judaica. Esta ação de Jesus localiza-se em Cafarnaum e arredores, atingindo, pouco a pouco, toda a Galileia.
A ação de Jesus é de três tipos:
1. ensinamento novo, com autoridade
2. expulsão dos espíritos impuros
3. curas
Esta atividade de Jesus provoca algumas questões em seus ouvintes, como: quem é Jesus? Com que autoridade ele age?
Na primeira ação típica de Jesus como mestre (rabbí), ensinar, o que impressiona os seus ouvintes é a autoridade (eksousía) do seu seu ensinamento. Em flagrante contraste com o ensinamento das autoridades legítimas da sinagoga, os escribas (Mc 1,21-22). Isto já aponta para o descrédito da doutrina oficial, sem autoridade porque não possui o Espírito de Deus, como Jesus.
A categoria Espírito Santo opõe-se à de espírito impuro/imundo, significando duas forças, uma vinda de Deus, a outra contrária a Deus.
Observa-se que em Mc 1,16-45 o conteúdo do ensinamento de Jesus não é especificado, mas toda a ênfase é colocada nas ações de Jesus em favor do homem.11
A ação de Jesus suscita uma reação da multidão (procurar Jesus), à qual ele opõe outra (evitar a multidão), ficando fora das cidades.
4. A incompreensão dos adversários
Mc 2,1-3,6 vai apesentar cinco controvérsias de Jesus com os escribas e os fariseus. A ação de Jesus provoca duas leituras da realidade: a dos seus adversários (guardiães da ideologia judaica, que se orientam segundo a Lei e os esquemas sociais correntes) e do próprio Jesus (que está baseada num esquema novo: a chegada do Reino de Deus, perspectiva na qual ele se situa).
A ação de Jesus em defesa da vida é sistematicamente apresentada como subversiva dos esquemas judaicos, pois sempre coloca o homem acima da Lei e, frequentemente, contra a Lei. A preocupação de Jesus é com a vida do homem e com as necessidades reais das pessoas, contrariando, por isso, as ambições de poder e riqueza dos “donos” do povo.
Deve-se considerar que a narrativa dos conflitos de Jesus com a ideologia judaica, especialmente com o legalismo farisaico extremado, recobre também os conflitos da comunidade romana de Marcos entre os cristãos de origem gentia e os cristãos de origem judaica com tendências legalistas.
Estes conflitos de Jesus mostram que as práticas judaicas, roupa velha, não suportam o remendo novo, a prática da comunidade cristã. Ou que o vinho novo, a atualização do Reino em Jesus, não pode ser guardado no invólucro dos rituais farisaicos, que não o suportam.
Os adversários de Jesus, representados pelos escribas, fariseus e herodianos, provocam a estratégia da tentação (= provocação), que culmina na decisão de eliminá-lo (Mc 3,6).
5. A incompreensão da família e dos conterrâneos
Mc 3,7-6,6a apresenta uma reviravolta do texto: em 3,7 começa uma distinção entre a multidão e os seguidores de Jesus. É uma separação progressiva que vai culminar em 8,29, com a confissão de Pedro, reconhecendo Jesus como o Messias. O barco, usado a partir deste momento, será um elemento fundamental para definir o círculo Jesus mais seguidores, que se distancia, geográfica e estrategicamente, da multidão.12
É oportuno notar que Jesus sempre muda sua prática quando percebe que suas ações não estão produzindo o efeito desejado. A sua prática é processual e situada.
Por outro lado, os escribas vieram de Jerusalém para investigar. A fama de Jesus alcançara o centro do poder judaico. A leitura que fazem da questão já suscitada no começo da atuação de Jesus (- Com que autoridade ele age?) coloca-o em situação perigosa perante a Lei judaica: ele tem autoridade de Belzebu. Por isso pode expulsar os demônios, como o poder de seu chefe. Jesus, porém, os chama e usa novo mecanismo de leitura, a parábola, revertendo a lógica da acusação (3,22-30).
Entretanto, os parentes de Jesus fazem uma leitura da sua atuação no mesmo nível dos escribas, o que o leva a rejeitar a sua família.
Enlouquecer e estar possuído pelo demônio tinham o mesmo valor para os judeus: ambos colocavam Jesus no âmbito da maldição, excluindo-o da sociedade e dos favores divinos. Finalmente, também os conterrâneos de Jesus acabarão por rejeitá-lo, segundo Mc 6,1-6a.
6. A incompreensão dos discípulos
Mc 6,6b-8,26 apresenta uma série de ações de Jesus voltadas para o questionamento dos discípulos e de sua persistente cegueira. O “ver” lento e custoso do cego de Betsaida em Mc 8,22-26 simboliza a dificuldade dos discípulos em perceberem quem é Jesus.
Se o leitor observar bem, verá que dos 19 milagres contados por Marcos, nada menos do que 17 se encontram antes da confissão de Pedro, em Mc 8,29. Ora, verificam os especialistas que o milagre é apenas um sinal. E que exige fé para ser aceito como sinal. Não é, neste sentido, o fato em si que está em primeiro plano, mas o seu significado. Os milagres devem ser lidos, nos evangelhos, como sinais da era messiânica.
Deste modo, os milagres em Marcos servem para provocar a questão básica: – Quem é Jesus? E esta leva à confissão de Pedro: “Tu és o Messias”. Depois disso, eles não são mais necessários.
É assim que o milagre da multiplicação dos pães em Mc 6,30-44, por exemplo, deve ser lido: a intervenção de Jesus como pastor transforma a fome/escassez em saciedade/abundância. Com isso, Jesus quer fazer os discípulos compreenderem que ele é o Messias.13
Pois a esperança messiânica dizia que o Messias seria o libertador da opressão, da miséria, da fome, da doença, da desgraça, da pobreza, da morte. Além disso, o judaísmo o descrevia como um novo Moisés, aquele que repetiria o milagre do maná, que transformaria, no deserto, a fome em saciedade. Pode-se ver que tal leitura da multiplicação dos pães é confirmada pelo episódio de Mc 8,14-21.
Há, nesta fase do texto, um incursão de Jesus em território gentio, fora de Israel – historicamente com pouquíssima probabilidade14 – que aponta para um grave problema enfrentado pelas comunidades primitivas na época de Marcos: só para os judeus ou também para os gentios?
A abertura para os gentios, prática eclesial que se expandia, é justificada pela atuação de Jesus na região de Tiro. E reforçada pela denúncia das tradições dos fariseus em Mc 7,1-23. Fariseus que “se preocupam se são ou não cumpridas as condições rituais da pureza para comer, e não se existem condições materiais” para o povo se alimentar.15
7. Quem é Jesus? A definição dos discípulos
Mc 8,27-30 é o núcleo decisivo do evangelho de Marcos. O barco é substituído pelo caminho. Os grupos que ficavam ao redor dele passam a segui-lo.
Jesus, finalmente, faz aos discípulos, diretamente, a pergunta: “Quem dizem os homens ser eu?” E estabelece claramente a distinção entre a multidão e os discípulos: “Vós, porém, que dizeis ser eu?”
A resposta dos discípulos, representados por Pedro, é fundamental: “Tu es o Cristo”.
Depois da proposta do evangelho, me Mc 1,1, que não é, estritamente falando, texto, é a primeira vez que a palavra Cristo aparece no evangelho de Marcos.
8. A subida a Jerusalém: a opção de Jesus
Mc 8,31-10,52 começa com um texto programático (8,31-9,1), competente introdução à nova fase que agora se inicia.
Mc 8,31-32a mostra a nova estratégia de Jesus: subir a Jerusalém para um confronto direto com o centro do poder judaico, representado aqui pelos sumos sacerdotes, anciãos e escribas (Templo, Sinédrio e Sinagoga).
Mc 8,32b-33 estabelece a dissidência de Jesus (e, provavelmente, da comunidade de Marcos) em relação aos grupos que lutavam pela libertação do domínio romano.
A repreensão a Pedro indica a diferença entre a concepção messiânica de Jesus (e/ou da comunidade) e a concepção judaica predominante. Aliás, daqui para frente Jesus estará sempre preocupado em fazer seus discípulos entenderem esta diferença e suas implicações. Como se verá, inutilmente.
Jesus rejeita a ideia de um Messias nacionalista que salvaria Israel miraculosamente e estabeleceria a hegemonia definitiva deste povo sobre as outras nações.
A tal visão, que é também a dos discípulos, Jesus contrapõe a de que a libertação virá através do Homem (= Filho do Homem), superará – e até se fará contra – o sectarismo judaico, será lentamente construída pelo esforço da comunidade que continuar sua causa ao longo da história e enfrentará muitos conflitos, lutas, sofrimentos, resumidos tragicamente na figura da cruz.16
É ainda nesta mesma direção que o leitor deverá procurar o sentido das estranhas ordens de silêncio que acompanham a prática messiânica de Jesus e a menção de seus títulos pelas pessoas, no evangelho de Marcos (cf. 1,25.34.44; 3,12; 5,43; 7,36 etc).
É como constata um autor: “Por um lado, parece que os diferentes relatos de Marcos têm como objetivo manifestar quem é Jesus, revelar seu poder. Mas, por outro lado, parece também que essa revelação tenha que ficar ‘secreta’. Por isso, M. Dibelius disse que Marcos é o evangelho das ‘epifanias secretas’”.17
Este tema é conhecido entre os especialistas com o segredo messiânico. Divergem, entretanto, se foi uma estratégia histórica de Jesus frente às tendências messiânicas de sua época ou se é uma correção teológica que Marcos faz das concepções messiânicas triunfalistas de sua comunidade.18
Ainda neste bloco, poderá o leitor observar que há três anúncios da paixão, seguidos, cada um, por um episódio de incompreensão dos discípulos sobre quem é Jesus e suas opções, terminando com uma instrução de Jesus. Assim:
10 anúncio: 8,31 – incompreensão dos discípulos: 8,32 – instrução: 8,34-35
20 anúncio: 9,31 – incompreensão dos discípulos: 9,32-34 – instrução: 9,35
30 anúncio: 10,32-34 – incompreensão dos discípulos: 10,35-40 – instrução: 10,42-45
Esta organização do texto chama a atenção para as oposições criança/adulto; último/primeiro, servir/dominar, rico/pobre, perder a vida/ganhar a vida, que definem a prática messiânica e eclesial como inversão dos esquemas domantes nas sociedades divididas.
Estas oposições, pistas para a prática cristã, clareiam mais ainda a figura de Jesus em Marcos que é a de um homem do povo, sem privilégios ou riqueza, preocupado não com sua própria segurança e nem mesmo com sua “santidade” (ao contrário do rico de Mc 10,17-22 que só pensa em si mesmo, inclusive quando procura o bem…), mas com as necessidades reais dos homens, como a saúde, o alimento, a libertação. Um Jesus que em seu enfrentamento com os donos do poder, da riqueza ou as certezas ideológicas não é protegido pelos falsos poderes de um super-homem, mas vive a angústia, o medo, a dúvida e a vontade de desistir e se acomodar a uma vida mais fácil.
9. O confronto com o poder judaico
Mc 11,1-13,37 situa o confronto de Jesus com o centro do poder judaico, em Jerusalém. Jesus desafia seus adversários em pleno Templo, embora se retire para os arredores de Jerusalém à noite, consciente do perigo que corre.19
O texto traz três ações proféticas de Jesus que simbolizam a rejeição das estruturas judaicas:
1. a entrada em Jerusalém em um jumentinho recusa as expectativas guerreiras e reformistas e reafirma a perspectiva messiânica pacífica de Jesus
2. a maldição da figueira estéril, símbolo do Templo, acusa a sua falência, sua incapacidade de gerar vida, apesar da bela aparência
3. a expulsão dos vendedores do Templo denuncia a perversão de sua função original de acesso a Deus, agora transformado em lugar de discriminação do pobre e espaço de reprodução da exploração
Jesus se define em relação às autoridades judaicas e ao poder romano também através de controvérsias com seus adversários, no Templo. Responsabiliza-os pelo assassinato dos profetas, desautoriza as pretensões romanas sobre Israel (o caso do imposto a César), questiona a doutrina tradicionalista dos saduceus e reafirma a centralidade da lei do amor a Deus e ao próximo.
Denuncia, além disso, a prática dos escribas, sua doutrina messiânica e a valorização da riqueza como acesso a Deus. Por fim, prega a destruição do Templo e orienta seus discípulos quanto ao futuro: discernimento nos conflitos, vigilância histórica e esperança de libertação (13,1-37).
10. Jesus frente à morte: derrota ou vitória?
Mc 14,1-16,8 narra os últimos acontecimentos vividos por Jesus em Jerusalém: é o momento de sua prisão, morte e ressurreição.
Dá-se, em Jerusalém, o confronto final de Jesus com os seus adversários. Estes não aparecem como indivíduos, não são chamados por seus nomes, mas são vistos como classe, defensores da ordem judaica. Diante deles Jesus reafirma a sua messianidade. Todo o processo, entretanto, é descrito como uma farsa, e Pilatos condena Jesus como pretenso agitador político, “rei dos judeus”.
Contra Jesus unem-se o poder judaico, os interesses romanos, o nacionalismo da multidão, a incompreensão, a traição e o abandono dos discípulos.20 Jesus está rigorosamente só e morre gritando, na tortura da cruz: “Deus meu, Deus meu, por que me abandonaste?” (15,34).
O evangelho de Marcos termina em 16,8 com a fuga e o silêncio das mulheres que encontram vazio o túmulo de Jesus. Não se sabe, segundo seu texto, das aparições de Jesus ressuscitado. Alguns cristãos, mais tarde, não entendendo estar completo o texto, acrescentam-lhe os vv. 9-20, com material retirado de Mt e Lc.21
Jesus, entretanto, deve ser reencontrado na Galileia (14,28; 16,7). Em Jerusalém, na instituição judaica, Ele não pode ser visto. Só a Galileia, território aberto à gentilidade, e o lugar do seguimento de Jesus.
Os especialistas descordam quanto ao sentido do silêncio das mulheres, no “último” versículo do evangelho.22 Talvez signifique a falência da Igreja de Jerusalém e do grupo legalista que recusou a ruptura com a instituição judaica. Mas, neste final, Marcos certamente dá um último recado à sua comunidade e aos cristãos de todos os tempos: apesar de tudo, a causa de Jesus continua.
Bibliografia
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MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982.
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PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980.
PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte seconda. Brescia: Paideia, 1982.
TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979.
> Este artigo foi publicado em Estudos Bíblicos, Petrópolis, n. 22, p.11-21, 1989
1. Um dos resultados mais desastrosos da leitura idealista da Escritura é a fuga da realidade e a consequente construção mítica de um mundo totalmente dualista onde se opõem espírito e matéria, alma e corpo, religioso e secular, sagrado e profano, história da salvação e história humana etc. O espiritualismo é fruto deste processo: ao considerar o espírito superior à matéria, ele ignora os vínculos materiais através dos quais os homens se relacionam concretamente e conduz ao isolamento individualista e à negação da história. Entretanto, distingo aqui entre espiritual e espiritualismo. Para o sentido positivo da chamada leitura espiritual da Escritura, cf. VÉLEZ, N. A leitura bíblica nas Comunidades Eclesiais de Base. Em Ribla n. 1, Petrópolis/São Paulo/São Leopoldo 1988, Vozes/Metodista/Sinodal, p. 36-37.
2. Geralmente atribui-se a autoria do evangelho em questão a João Marcos, judeu de Jerusalém, companheiro de Paulo e Barnabé e também de Pedro, em Roma. Mas o texto mesmo não menciona o nome de seu autor: é a tradição que atribui este evangelho a Marcos (cf., por exemplo, o testemunho de Papias, do século II) O que é certo, entretanto é só isso: o autor foi um cristão da segunda geração. Quanto ao local e data de composição alguns estudiosos de Marcos defendiam, apoiados em certos indícios do próprio texto, que o evangelho foi escrito, talvez em Roma, para uma comunidade cristã predominantemente gentia, por volta dos anos 70. Mas Antioquia, na Síria, ou mesmo a Galileia, são locais hoje considerados mais prováveis. Cf. LOHSE, E. Introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, s/d (original alemão, 1972), p. 141-145; KÜMMEL, W. G. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 112-117.
3. “Não é por acaso que a destruição de recordações é uma medida típica da dominação totalitária. A escravização do homem começa com o fato de se lhe tirarem as recordações. Toda a colonização tem aí o seu princípio. E toda insurreição contra a opressão nutre-se da força subversiva do sofrimento recordado. A memória do sofrimento opõe-se, sempre de novo, aos cínicos modernos do poder político” (METZ, J. B. A fé em história e sociedade. São Paulo: Paulinas, 1981, p. 128).
4. O verbo didáskein = ensinar, é usado por Mc 17 vezes; dessas, 15 descrevem a atividade de Jesus. O ensinamento de Jesus acontece só em ambiente judaico, pois implica uma doutrina exposta a partir da Lei (Torá), enquanto a proclamação da Boa-Nova (kêrússein = proclamar, 14 vezes em Mc), nunca se situa na Judeia e em Jerusalém, mas na Galileia e entre os gentios. A proclamação é para os judeus (fora de Jerusalém) e para os gentios, o ensinamento é só para os judeus. Cf. MATEOS, J. Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos. Madrid: Cristiandad, 1982, p. 24-25.
5. Cf. BELO, F. Lecture matérialiste de l’Évangile de Marc. 2. ed. Paris: Seuil, 1975, p. 326-356; CHARPENTIER, E. Dos evangelhos ao Evangelho. São Paulo: Paulinas, 1977, p. 163; CLÉVENOT, M. Enfoques materialistas da Bíblia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 81-82.
6. J. MATEOS, em interessante estudo de 304 páginas, Los “Doce” y otros seguidores de Jesús en el Evangelio de Marcos, distingue os dois grupos de seguidores mencionados e esclarece: ao ser chamado de Doze, o grupo simboliza o Israel escatológico-messiânico, a totalidade do povo, enquanto o conceito de discípulos expressa sua decisão de segui-lo. Sobre a relação entre os Doze/discípulos e os outros seguidores que estavam com Jesus, o autor demonstra que não há diferença de posição entre eles. Ambos estão próximos a Jesus, recebem a mesma missão, os mesmo avisos, as mesmas propostas. Cf. as conclusões das p. 247-258. Cf. também as opiniões dos autores que distinguem entre os Doze e os discípulos nas p. 9-20 [do artigo].
7. Cf., por exemplo, DE LA CALLE, F. A teologia de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 32-38, que utiliza elementos literários e geográficos, em composição bastante harmoniosa. Ou DELORME, J., Leitura do evangelho segundo Marcos. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 35, que oferece três organizações possíveis para o texto: segundo a geografia, segundo o desenvolvimento do drama, segundo as relações entre as pessoas.
8. Cf. MATEOS, J. o. c., p. 198.
9. É bom que se note: esta geografia de Marcos é artificial, não é real. É um enquadramento teológico que serve ao redator para definir a atuação de Jesus em relação às tendências de sua época. Compara-se, por exemplo, o itinerário seguido por Jesus em Marcos e em João.
10. O Espírito se manifesta para atestar a presença do Espírito de Deus em Jesus, não numa forma interior, particular, mas para o serviço do povo, como indicaria o símbolo pomba. No AT, pomba não simboliza o Espírito, mas sim o amor, a beleza, a fidelidade. Na tradição judaica da época de Jesus a pomba é também um símbolo do povo de Israel.
11. “Ou seja, a Boa-Nova do reino de Deus traz consigo a restauração do homem”, MATEOS, j. o. c., p. 41.
12. Há duas multidões em Marcos: uma é a multidão de seus seguidores, os que estavam ao redor dele, sua nova família (3,32); outra é a multidão constituída pelos “de fora”, que não têm vínculo algum com Jesus nem o seguem, só o procurando por causa de sua fama (3,20). Cf. MATEOS, J. o. c., p. 119.
13. O relato esclarece ainda que o povo estava completamente abandonado pelas autoridades judaicas, como um rebanho sem pastor. Apesar disso, os discípulos permanecem dentro dos esquemas socioeconômicos vigentes: falam em comprar o alimento, enquanto Jesus fala em repartir o pouco que têm. Os discípulos não compreenderam a prática de Jesus e “não apresentam uma verdadeira solução para os problemas da vida do povo”, diz BRAVO GALLARDO, C. Jesús, hombre en conflito. El relato de Marcos en América Latina. Santander: Sal Terrae, 1986, p. 156.
14. Cf. DE LA CALLE, F. o. c., p. 82; PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte prima. Brescia: Paideia, 1980, p. 606.
15. BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 155-156.
16. Cf. DELORME, J. o. c., p. 90-95; BRAVO GALLARDO, C. o. c., 285-290; BELO, F. o. c., p. 216; MATEOS, J. o. c., p. 226, nota 388 distingue: “Por outro lado, existe em Mc uma oposição entre ‘o Messias Filho de Davi’, título nacionalista que Jesus não aceita (12,35-37; cf. 10,47-48), e ‘o Messias Filho de Deus’ (1,1), que Jesus aceita no interrogatório diante do sumo sacerdote (14,61s). ‘Filho de Deus’, usado por judeus e pagãos (3,11; 5,7;14,61; 15,39) , exclui o nacionalismo do ‘Messias’, segundo a concepção comum”.
17. ALEGRE, X. Marcos ou a correção de uma ideologia triunfalista. Chave de leitura de um Evangelho beligerante e comprometido. Belo Horizonte: CEBI, 1988, p. 29.
18. Cf, sobre o tema, BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 287-288, nota 39; ALEGRE, X., o. c., p. 28-30.
19. Cf., para este bloco, BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 193-194. Resume este autor, nas p. 210-211: “Jesus completa a denúncia e desautorização do Centro (judaico), que é o que veio fazer em Jerusalém, corrigindo quatro pontos: a concepção messiânico-davídica, a prática dos escribas, a valorização da riqueza como acesso a Deus, a centralidade do Templo para a vida do povo”. Em seguida, “frente ao Templo e fora dele definitivamente, fala do final do Templo e do final da história”.
20. Pedro, representante dos Doze, israelita, por não ter negado a si mesmo, nega a Jesus. Simão Cirineu, símbolo do grupo não-israelita, cumpre a condição do seguimento: carrega a sua cruz (8,34). O Cirineu é pai de Alexandre (nome grego) e Rufo (nome latino): deste modo mostra Marcos de onde procedem as comunidades cristãs. Cf esta leitura em MATEOS, J. o. c., p. 188.
21. Cf. Bíblia de Jerusalém, Mc 16,9-20, nota f; TAYLOR, V. Evangelio según San Marcos. Madrid: Cristiandad, 1979, p. 736-745; PESCH, R. Il Vangelo di Marco. Parte seconda. Brescia: Paideia, 1982, p. 757-798. Os vv. 9-20, entretanto, são considerados canônicos pela Igreja.
22. Cf. MATEOS, J. o. c., p. 189-194; ALEGRE, X. o. c., p. 38-40. BRAVO GALLARDO, C. o. c., p. 241, conclui que, ao indicar a Galileia e o silêncio das mulheres, Marcos “remete ao lugar e ao modo como se pode ter acesso a Jesus. Por isso escreveu todo o relato, e por isso o deixou inconcluso: para mostrar a prática a prosseguir, a quem se há de seguir e qual é o caminho para a Galileia”.
Última atualização: 13.08.2020 – 19h12