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8.3. As causas da helenização
Com muita frequência, têm-se colocado as razões religiosa e cultural como motivo para a helenização da Judeia e consequente resistência macabeia. Claro que, na típica visão teocrática do judaísmo de então, as motivações religiosas é que oferecerão os conceitos para a leitura dos fatos.
C. Saulnier, por exemplo, mostra que há duas interpretações divergentes para as medidas antijudaicas de Antíoco IV Epífanes[40].
Uma é a que expus acima: a helenização forçada é consequência da pressão exagerada da aristocracia judaica, que teria, inclusive, sugerido a Antíoco IV as medidas a serem tomadas. É a que considero mais provável.
Mas há a versão judaica, muito bem expressa em 1Mc 1,41-42, que diz:
“O rei prescreveu, em seguida, a todo o seu reino, que todos formassem um só povo, renunciando cada qual a seus costumes particulares. E todas as nações conformaram-se ao decreto do rei”.
Com sua linguagem guerreira carregada de simbolismos, o livro de Daniel descreve a maldade de Antíoco IV no seu ataque às práticas judaicas:
“Tropas enviadas por ele virão profanar o Santuário-cidadela e abolirão o sacrifício perpétuo, ali introduzindo a abominação da desolação. Os que transgridem a Aliança, ele os perverterá com suas lisonjas; mas o povo dos que conhecem a seu Deus agirá com firmeza (…) O rei agirá a seu bel-prazer, exaltando-se e engrandecendo-se acima de todos os deuses. Ele proferirá coisas inauditas contra o deus dos deuses e no entanto prosperará, até que a cólera chegue a seu cúmulo – porque o que está decretado se cumprirá. Sem consideração para com os deuses de seus pais, sem consideração para com o favorito das mulheres ou para com qualquer outro deus, é a si mesmo que ele exaltará acima de tudo” (Dn 11,31-32.36-37).
Como esta é uma linguagem apocalíptica, alguns elementos precisam ser explicados: “Engrandecendo-se acima de todos os deuses” é uma referência à efígie de Antíoco IV cunhada nas suas moedas, mais para o fim de seu governo, com os traços de Zeus Olímpico. Os reis Selêucidas antecessores de Antíoco IV cultuavam Apolo, mas ele cultua especialmente a Zeus Olímpico, daí o texto dizer que ele age “sem consideração para com os deuses de seus pais”. Quando o texto diz que ele não “tem consideração para com o favorito das mulheres”, está falando do deus Adônis-Tamuz. Tamuz é uma divindade assírio-babilônica de origem popular, conhecido também sob o nome semítico de Adônis na mitologia mediterrânea. Tamuz é estreitamente vinculado à divindade feminina da fertilidade, a Inanna suméria e a Ishtar acádica. Ele é amante de Ishtar.
Este texto de Daniel é bem representativo da visão judaica do rei ímpio perseguidor do povo justo. De qualquer maneira, Antíoco IV não é bem visto pelos escritores da época, porque também Políbio traça dele um perfil pouco lisonjeiro.
Diz Políbio que Antíoco IV aprecia sair da corte e se misturar com as pessoas do povo, discutindo longamente com ourives ou outros peritos nos seus ateliês. Ou que ele se infiltra nas festas do povo sem ser convidado ou vai ao mercado (ágora, local onde se reúne também a assembleia do povo) e se mete nas mais acirradas disputas, além de protagonizar outras atitudes populistas41.
Apesar de tudo isso, é preciso ir além na interpretação dos fatos. Além das razões estratégicas e políticas dos Selêucidas para incentivar a helenização dos judeus, razões já apresentadas, há motivos econômicos para o conflito que o processo desencadeia[42].
É que o sistema político grego tradicional, como adotado pelos Selêucidas, não dispõe de um mecanismo fiscal para o recolhimento do tributo. Ou seja: não há uma burocracia profissional que administra as finanças do Estado. Em Atenas, por exemplo, o cidadão se dedica à administração da cidade sem receber recompensa alguma, a não ser a satisfação do dever cumprido e o sentimento de contribuir para o bem comum[43] . Assim, nos reinos helenísticos a função de recolher o tributo é arrendada à aristocracia dos povos dominados, proporcionando-lhe lucros financeiros e influência política junto ao governo estrangeiro, como vimos no caso dos Tobíadas.
Por outro lado, deve-se levar em conta que a noção grega de Estado é concretizada no Oriente:
. ou na pólis, uma associação de cidadãos livres e autônomos baseada na vizinhança
. ou no éthnos, uma relação de parentesco baseada na solidariedade dos laços de sangue.
A. M. Rodrigues explica que “três grandes princípios presidem à formação da pólis: eleuteria (independência), autonomia (poder próprio) e autarquia (autogestão). A cidade era tudo para o cidadão grego. O verbo politeyestaí, que significava ‘tomar parte nos negócios públicos’, também significava simplesmente ‘viver'”[44].
Ora, Judá é e permanece um éthnos também na administração selêucida. Mas o próprio Antíoco III, o Grande, com seu decreto de 197 a.C., reforça os privilégios da aristocracia, criando as condições para a sua emancipação da hierocracia e para o predomínio da pólis sobre o éthnos.
“A autonomia étnica, que foi concedida oficialmente à Judeia, trouxe em si elementos que ofereciam à aristocracia das cidades novas possibilidades”[45].
A lei, baseada na vontade do rei Selêucida – que reivindica tal direito como “direito de lança” por ser o conquistador – e não nas tradições dos antepassados codificadas na Torá, cria condições para que a aristocracia judaica substitua as leis étnicas por leis políticas.
O texto de 1Mc 10,29-31, que trata de uma isenção de impostos concedida aos judeus mais tarde, em 152 a.C., por Demétrio I, dá-nos uma ideia dos tributos recolhidos pelos Selêucidas na Judeia.
“Desde agora desobrigo-vos, e declaro isentos todos os judeus, dos tributos (phóroi), do imposto sobre o sal e do ouro das coroas. Igualmente renuncio à terça parte da semeadura e à metade dos frutos das árvores, que me caberiam de direito: de hoje em diante deixo de arrecadá-los à terra de Judá e aos três distritos que lhe foram anexos, bem como à Samaria e à Galileia. Isto a partir do dia de hoje e para todo o tempo. Jerusalém seja considerada santa e isenta, assim como seu território, sem dízimos e sem tributos”.
Os três primeiros impostos citados, já os conhecemos do decreto de Antíoco III: trata-se do phóros, do imposto sobre o sal e do imposto coronário.
Agora, o que aqui nos interessa é perceber como se faz o recolhimento do tributo na Judeia. A aristocracia – por exemplo, os Tobíadas e seus associados – recolhe dos camponeses 1/3 do produto das colheitas e metade da produção das frutas. Vende, certamente com ganhos, estes produtos e paga aos seus senhores Selêucidas determinada quantia em prata. Talvez cerca de 300 talentos anuais segundo 1Mc 11,28.
Flávio Josefo também testemunha que os impostos são cobrados pela aristocracia, quando comenta o decreto de Antíoco III. Diz Josefo:
“Os nobres arrendaram nas suas próprias cidades paternas o direito de cobrar o tributo, e, depois que eles recolheram a quantia fixada, a pagaram aos reis”[46].
Daí ser significativo que a primeira notícia a respeito do nascente conflito com o helenismo, como vimos acima, aponte uma razão econômica. Vamos lembrar o que diz 2Mc 3,4:
“Ora, certo Simão, da estirpe de Belga, investido no cargo de superintendente do Templo, entrou em desacordo com o sumo sacerdote a respeito da administração dos mercados da cidade”.
Assim, a aristocracia começa a pressionar sempre mais na direção da helenização total, como modo de quebrar as barreiras da tradição de solidariedade baseada na aliança. Seu enriquecimento fácil, baseado na tributação e na manutenção de seus privilégios, choca-se com as normas da Lei. A solução será pedir a Antíoco IV Epífanes a eliminação da Lei. Some-se a isso a precariedade financeira dos Selêucidas e o mecanismo começa a ficar claro.
Segundo as leis israelitas, a terra é dom de Iahweh ao povo. Israel tem a posse da terra, mas não é seu proprietário. O livro do Deuteronômio, escrito a partir do século VIII a.C., repete isto sempre (Dt 12,1.9.10.20.29; 13,13;16,5.18.20 etc). Dt 12,1, por exemplo, diz:
“São estes os estatutos e as normas que cuidareis de pôr em prática na terra cuja posse Iahweh, Deus de teus pais te dará, durante todos os dias em que viverdes sobre a terra”.
A terra em Israel é classificada como nahala (= herança, posse), como em Dt 12,9.10; 19,10;20,16 e tantos outros lugares.
Pode-se até negociar a terra, mas somente dentro de determinadas normas. O direito que regulamenta a venda da terra é o chamado ge’ulla (= resgate da terra). Quem tem o direito de compra é apenas o parente do lado masculino da família.
A venda da terra pode proteger o proprietário empobrecido de pagar tributos e impostos a estrangeiros, como pode protegê-lo também de ser vendido como escravo permanente a estrangeiros.
O resgate da terra é baseado no conceito de hesed (= fidelidade), uma solidariedade que sustenta a relação comunitária no nível do clã.
H. G. Kippenberg assim resume a relação de parentesco em Israel:
. a estrutura de parentesco determina a reprodução das famílias e as relações sociais dentro da família
. a estrutura de parentesco une as famílias em uma hierarquia baseada nas prerrogativas dos irmãos mais velhos sobre os mais novos, mas cria laços de solidariedade entre eles
. a terra pode ser negociada entre parentes, mas não com estranhos ao círculo de parentesco. Entretanto, este princípio leva ao acúmulo de terras pelas famílias mais ricas[47].
Compare-se esta concepção israelita da posse da terra com a concepção grega, onde a terra pode ser dada a quem o rei determinar, porque ela lhe pertence por direito de conquista. O conflito jurídico é evidente.
Ora, como no interior do clã a estratificação social avança bastante nos períodos persa e grego, a aristocracia judaica que aí surge tende a excluir os mais pobres. Por outro lado, a manutenção das regras do parentesco exigida pela Lei e confirmada por Antíoco III prejudica os interesses da aristocracia.
Uma confirmação do avanço da estratificação social pode ser encontrada na regra do ano jubilar estabelecida por Lv 25,23-28.
Segundo esta lei, provavelmente do século VI a.C., se o israelita deve vender seu terreno, então o parente agnático (termo do direito romano que indica o parente por parte de pai) mais próximo deve comprá-lo. Se isto não for possível, no 49º ou no 50º ano o antigo dono deve receber de volta sua propriedade vendida.
Lv 25,47-55 estabelece também que se um israelita for vendido a estrangeiros como escravo, deve ser resgatado pelo parente mais próximo. Caso contrário, deve ser libertado no ano jubilar (49º ou 50º ano).
Parece claro que a regra do ano jubilar está em contradição com a norma do resgate imediato da terra e do escravo e a lei do ano sabático (Dt 15,1-18; Ex 21,1-11). É porque estas regras não funcionam mais, devido à estratificação social, que se tem de exigir a regra dos 49/50 anos[48].
Voltemos ao confronto entre a aristocracia filo-helenista e os judeus fieis à Lei. Como veremos daqui a pouco, os sacerdotes Macabeus, líderes da resistência judaica, e seus partidários assideus, defendem a manutenção dos laços de parentesco, da solidariedade étnica contra a instalação do regime da pólis em Jerusalém.
Enquanto os partidários da helenização seguem as ordens do rei (1Mc 2,19-20;6,21-27), os revolucionários Macabeus fazem valer os antigos mandamentos (1Mc 2,29-38: o sábado; 2,42-48: a circuncisão; 4,36-51: a purificação do Templo).
Que os motivos desta luta são também econômicos, gerados pelo arrendamento estatal dos impostos à aristocracia, não resta dúvida, se observarmos que, em 142 a.C., quando o rei selêucida Demétrio II concede aos judeus a isenção dos tributos, isto é festejado como libertação da escravidão e começo de uma nova era.
1Mc 13,36-42 assim descreve o fato:
“‘O rei Demétrio a Simão, sumo sacerdote e amigo dos reis, aos anciãos e à nação dos judeus, saudações! Recebemos a coroa de ouro e a palma que nos enviastes, e estamos prontos a celebrar convosco uma paz duradoura e a escrever aos nossos administradores que vos considerem totalmente isentos. Tudo o que temos determinado a vosso respeito permanece firme e também são vossas as fortalezas que edificastes. Quanto às faltas por ignorância e os delitos cometidos até o dia de hoje, bem como a coroa que nos deveis, nós vo-los perdoamos. E se alguma outra coisa era arrecadada em Jerusalém, não o seja doravante. Se houver entre vós alguns homens que sejam aptos a ser recrutados para a nossa guarda de corpo, que eles se inscrevam. E reine a paz entre nós’. No ano cento e setenta, foi retirado de Israel o jugo das nações. E o povo começou a escrever, nos documentos e nos contratos: ‘No primeiro ano de Simão, sumo sacerdote insigne, estratego e chefe dos judeus'”.
É que, com o desaparecimento do arrendamento, a aristocracia não é mais identificada com o Estado, dando aos camponeses maior folga em relação aos senhores da terra. A desigualdade permanece a mesma, mas os camponeses conseguem controle sobre o excedente[49].
A lógica grega deste arrendamento é a de reduzir o direito de cidadania a pequena faixa aristocrática, mantendo os produtores como simples moradores, objeto de conquista, sem direito a cidadania.
E esta lógica está funcionando, até que, em Jerusalém, uma camada aristocrática força a helenização e entra em choque com o direito sagrado tradicional do povo judeu. Aí vem o conflito com os Macabeus, que não tem objetivos religiosos: o que se quer é uma reforma da constituição da Judeia. Mas será a simbologia religiosa que exprimirá os interesses igualitários de sacerdotes e camponeses[50].
Bibliografia
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>> Bibliografia atualizada em 17.11.2021
[40]. Cf. SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 118-121. Para as tendências da historiografia, ao longo dos séculos, sobre a questão, cf. BICKERMAN, E. The God of the Maccabees, p. 24-31.
[41]. Cf. POLÍBIO, História XXVI,1. Cf. este texto em SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 377-378. Cf. também, sobre Antíoco IV, WILL, E. Histoire politique du monde hellénistique II, p. 306-308.
[42]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 73-87.
[43]. Cf., sobre isto, GLOTZ, G. A cidade grega, p. 99-214; AUSTIN, M. ; VIDAL-NAQUET, P. Economia e sociedade na Grécia antiga, p. 113-129.
[44]. RODRIGUES, A. M. As utopias gregas. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 76. Cf. também MOSSÉ, C. As instituições gregas. Lisboa: Edições 70, 1985; GLOTZ, G. A cidade grega. São Paulo: Difel, 1980.
[45]. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 80.
[46]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 155.
[47]. Cf. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 39.
[48]. Cf. Idem, ibidem, p. 61-63.
[49]. Cf. Idem, ibidem, p. 86.
[50]. Cf. Idem, ibidem, p. 86-87.
Última atualização: 17.11.2021 – 09h31