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7.5. O governo dos Ptolomeus
P. Lévêque[27] explica que sob os Ptolomeus a terra é do rei, mas não totalmente. Parte dela vai para a coletividade: são as terras das cidades (póleis) e dos templos. Enquanto outra parte fica com particulares: são as terras dos veteranos, a cleruquia, e as terras doadas pelo rei aos altos funcionários do governo de Alexandria, as chamadas dôreaí (= doações).
O nome “cleruquia” vem da forma como a terra é entregue aos veteranos: por cléros, isto é, por “sorteio”. É importante lembrar que, no Egito, o soldado que recebe um pedaço de terra deve ficar em disponibilidade, pois pode ser convocado pelo rei. Em geral, eles arrendam a sua terra, o seu cléros a um camponês egípcio, que assim sustenta o soldado com uma parte de seu trabalho. O tamanho de uma cleruquia pode variar de cerca de 6 a 25 hectares, chegando em alguns casos a 1.000 hectares de terra. Depende da patente do militar que a recebe[28].
Quanto às dôreaí, é bem conhecido, através dos arquivos de Zenão, o caso da dôréa de Apolônio, o poderoso ministro das finanças de Ptolomeu II Filadelfo.
Situada na margem da depressão do Fayum, um dos 5 oásis do Egito, onde as inundações do Nilo não chegam, a dôréa tem 2.700 hectares alimentados por um sistema de irrigação. É ligada ao Nilo através de um canal que alimenta um lago de 150 km2. As terras de Apolônio ficam na sua margem nordeste.
Na dôréa são plantados trigo, sorgo, cevada, sésamo, rícino, papoula, linho, açafrão… “Apolônio cria uma vasta vinha (existe um recibo de 65.000 estacas e um tratado de viticultura copiado pelo intendente Zenão), planta árvores frutíferas e coníferas ‘porque são úteis para o rei’, cria enormes rebanhos [os documentos registram rebanhos de ovelhas de 6.381 cabeças], estabelece fábricas (tecelagens; manufatura de tapetes de Mileto, com face dupla ou bordados a púrpura; curtumes; olarias). Para os transportes possui caravanas de burros e uma verdadeira flotilha. Uma parte da dôréa está dividida em quintas, arrendadas a gregos ou a egípcios, outra é cultivada diretamente graças a operários agrícolas que trabalham sob a direção de um capataz, outra ainda é concedida a clerucos”, explica P. Lévêque[29].
Além destes empreendimentos agrícolas, há também a propriedade privada. Neste caso, ou o rei vende terras ou concede arrendamentos enfitêuticos[30].
Como é que os gregos exploram a terra?
Esta pergunta é importante, porque o essencial da riqueza dos Ptolomeus, no Egito, vem da terra. Além do que, é preciso alimentar os gregos, que não produzem, porque são administradores, soldados ou comerciantes.
Por outro lado, o Egito vivera até então fora da economia monetária, que é introduzida pelos Ptolomeus, pois os reis precisam de dinheiro para pagar à burocracia. O Egito vivera voltado para si mesmo; agora exporta e importa, especialmente para sustentar os gregos.
Para conseguir acumular riquezas é necessário que as exportações sejam superiores às importações. Estas exportações são basicamente de produtos agrícolas, vendidos de modo direto por Alexandria, como o papiro e o linho. De qualquer forma, o produto vem do solo e vem do Egito, não de Alexandria.
Daí que se trata “de uma necessidade para o soberano o organizar a produção agrícola; fazer produzir ao máximo a terra do Egito é o único meio de que dispõe para enriquecer, isto é, para poder regular as importações e pagar os soldos e o tratamento àqueles que o servem”[31].
Os reis lágidas vão pois se basear no milenar sistema faraônico de exploração da terra, introduzindo, ainda, alguns aperfeiçoamentos.
Comparando os Lágidas com os Selêucidas, vemos que estes governam um reino composto de múltiplos Estados – na Síria, Mesopotâmia, Pérsia etc – e, por isso, são obrigados a manter uma administração descentralizada; os Ptolomeus, ao contrário, restauram o conhecido sistema centralizador dos grandes faraós, sistema que tinha sido desmantelado sob os últimos reis persas.
Tal obra se deve principalmente aos dois primeiros Ptolomeus, o Soter e o Filadelfo. Ao sistema faraônico, somam, porém as teorias gregas sobre o Estado. De tal modo que o historiador Hecateu de Abdera, partidário de Ptolomeu I Soter, pode sustentar que o governo egípcio está realizando o ideal filosófico do Estado[32].
Mas, afinal, qual é o sistema administrativo adotado pelos Ptolomeus?
O ponto de partida é o seguinte: como o rei é o conquistador, pelo “direito de lança” toda a terra do país é propriedade pessoal do rei, é sua oikos, sua “casa”.
Ao lado do rei há um administrador ou tesoureiro, que é o dioikêtês (= dioiceta): depois do rei ele é o homem mais importante do governo, pois é ele que se encarrega de todo o setor econômico e administrativo do Estado. Um pouco acima já falei de Apolônio, que é o dioiceta de Ptolomeu II Filadelfo durante muitos anos.
O Egito é dividido em trinta distritos ou nomos. À frente de cada distrito Ptolomeu I Soter coloca um stratêgós (= estratego, general), um militar que representa diretamente o poder real e é o encarregado de manter a ordem. Ao lado do estratego há um oikonómos (= ecônomo, administrador) que é o encarregado das finanças e do comércio de cada distrito. O ecônomo responde por seus atos ao dioiceta e não ao estratego, o que produz um certo equilíbrio de poderes civis e militares nos distritos.
Os distritos podem ser subdivididos, e cada subdivisão é dirigida por um nomarca, funcionário civil de médio escalão que supervisiona a produção agrícola. Cada nomarca é assessorado por um escrivão real, responsável pela escrita pública do nomo, o basilicogrammateus.
A unidade menor é a aldeia (kômê), onde vivem os nativos egípcios e os funcionários da região. A aldeia é administrada por um comarca, assistido por um escrivão, o comogrammateus. E para capturar os contraventores há uma polícia constituída pelos filacitas e comandada por um arquifilacita.
Existe ainda toda uma hierarquia de funcionários burocráticos gregos e nativos em cada distrito, como o controlador das contas reais, o banqueiro real, o engenheiro chefe, responsável pela parte técnica da irrigação, os geômetras que elaboram os planos etc.
Cabe lembrar que a administração da água – o fator mais importante desta economia rural egípcia – é de responsabilidade direta do dioiceta. Ele é quem organiza a manutenção dos canais de irrigação e dos diques, estabelece a data de abertura das comportas a partir das características da cheia do Nilo e determina a quantidade de terra a ser semeada[33].
Como a maior parte da terra é propriedade real, o trabalho é feito por trabalhadores livres, os camponeses reais, supervisionados por toda esta burocracia que acabamos de ver.
Também as terras cedidas para colônias militares de veteranos, as cleruquias, ou presenteadas a altos funcionários, as dôreaí, pertencem ao rei. Como são de sua propriedade, podem, a qualquer momento, ser por ele requisitadas. Igualmente sob controle real ficam as terras dos templos.
O sistema de taxação é sofisticado e rigoroso. E os tributos cobrados nas terras reais são os mais pesados. Além dos vários tributos, o Estado arrecada riqueza também através do monopólio das mercadorias mais importantes.
Obviamente este sistema eficiente de enriquecimento do Estado tem o seu reverso: as camadas mais baixas da população egípcia são duramente exploradas.
Segundo C. Préaux[34] , o salário diário de um trabalhador agrícola corresponde ao preço de 6 a 10 kg de trigo. Compare-se: o salário-hora de um trabalhador agrícola na França em 1978 [data em que foi escrito o livro de C. Préaux] equivale a 10,5 kg de trigo. E nos Estados Unidos chega a 35 kg de trigo. No Egito dos Ptolomeus o salário de uma hora de trabalho compra apenas de 600 gramas a 1 kg de trigo.
E o camponês que trabalha nas terras reais está em pior situação do que o assalariado. O trabalho escravo custa maiores investimentos do que o do camponês livre, e por isso não tem muita difusão. No Egito, entre os nativos, só os templos são ricos.
A economia egípcia funciona assim: de um lado, há a acumulação de riquezas por parte dos gregos – que estão concentrados em Alexandria – e dos templos, que recebem muitas doações e favores, especialmente dos governantes, em vista da legitimação sagrada de suas atitudes; de outro lado, há a manutenção da pobreza de imensas massas humanas.
Diz P. Lévêque: “Reis, burgueses, funcionários, sacerdotes, todos vivem do duro labor dos humildes. A clivagem da sociedade em duas classes antitéticas, ricos e pobres, e a exploração de uns pelos outros, que tinha surgido no século IV na Grécia, não deixa de se acentuar no mundo da conquista”[35].
A situação dos camponeses egípcios é tão ruim que eles são obrigados a fazer um juramento – conservado em papiro – que diz o seguinte:
“Até que pague a minha renda, continuo à vista todos os dias e entregue aos trabalhos agrícolas, sem me refugiar no altar sagrado de qualquer templo, sem apelar a qualquer proteção, sem inventar qualquer meio para escapar”.
Oprimidos pelo sistema, os camponeses preferem fugir. Ou para o deserto – mas aí a sobrevivência é muito difícil – ou para Alexandria, onde se escondem no meio da multidão e encontram um modo para sobreviver. É a chamada anacorese. Ou é possível refugiar-se em um santuário, junto ao altar, lugar sagrado de asilo, de onde pode-se negociar com os administradores das terras condições melhores de salário[36].
O contraste entre a vida dos gregos e a dos egípcios é flagrante. Os egípcios permanecem presos a técnicas antigas, tanto na agricultura quanto no artesanato, enquanto os gregos vivem a vida urbana, as finanças, a movimentação – também econômica – da guerra. Os egípcios usam técnicas de conservação e segurança; os gregos usam técnicas de expansão e de risco.
7.6. A administração ptolomaica da Palestina
Este sistema administrativo ptolomaico é também implantado na Palestina, durante os 103 anos de domínio de Alexandria sobre a região. Mas, com algumas modificações, pois a estrutura social da região é diferente da egípcia e a complexidade política é maior.
Os Ptolomeus implantam um sistema de arrendamento, a famílias ricas da terra, do direito de cobrar os impostos locais, repassados, por elas, aos senhores estrangeiros. O centro administrativo parece ser Acco, que tem seu nome mudado para Ptolemaida.
Politicamente a região da Celessíria é composta das seguintes etnias:
. cidades fenícias ao longo da costa, de Ortozia a Gaza
. o distrito do Templo de Jerusalém, com seu povo judeu
. os povos samaritano e idumeu
. grupos descendentes de cananeus e sírios
. várias cidades no interior, incluindo as colônias militares macedônias
. as tribos dos nabateus e dos árabes, no sul e na Transjordânia.
O modo de vida grego se implanta mais rapidamente nas cidades fenícias, mas também as póleis mais significativas do interior, tanto na Judeia quanto na Idumeia, na Samaria como na Galileia, são inexoravelmente helenizadas.
Não há cidades livres, no sentido da Grécia clássica, dentro do reino ptolomaico. Mas há cidades que se aproximam do modelo da pólis grega, com seus magistrados e seu território. Assim são as mais importantes cidades fenícias e palestinas, como Tiro, Sídon, Acco-Ptolemaida, Gaza, Ascalon, Jope e Dor. Ou Marisa, na Idumeia[37].
Os judeus que habitam na Galileia, na Idumeia e na Transjordânia não têm qualquer estatuto especial, mas o distrito de Judá é considerado como “Estado do Templo”, território sagrado, onde valem as leis tradicionais do povo judeu e onde o sumo sacerdote é o chefe principal.
Acredita-se, entretanto, que já teria havido, no tempo dos Ptolomeus, um oficial especial que se encarrega, ao lado do sumo sacerdote, da administração das finanças[38].
Outra instituição que se desenvolve provavelmente durante o domínio ptolomaico é a gerousia (= senado), uma assembleia aristocrática composta pelos chefes das famílias mais influentes, pelos sacerdotes e pelos escribas do Templo. Será o conhecido Sinédrio da época de Jesus. Uma de suas funções é a de limitar o poder do sumo sacerdote.
De modo geral, convém observar que o desenvolvimento econômico da região da Celessíria faz parte de uma estratégia política bem definida por parte dos Ptolomeus. É a maneira mais eficaz de impedir o avanço de seus rivais Selêucidas sobre a região. E tal política se implanta principalmente através da aliança grega com os aristocratas locais, dos quais já falei a propósito da crise agrária da época de Neemias.
É bem ilustrativo da política ptolomaica para a região da Celessíria um decreto de Ptolomeu II Filadelfo, provavelmente de 261/260 a.C.:
“Ordem do rei. Os habitantes da Síria e da Fenícia, que compraram um nativo livre (sôma laikòn eleúteron) ou dele se apropriaram com violência, ou o adquiriram de um ou outro modo, devem declará-lo e apresentá-lo ao ecônomo em qualquer hiparquia dentro de vinte dias após a publicação deste decreto”.
Mais adiante, após declarar que podem ser conservadas as pessoas que já eram escravas antes da compra, valendo o mesmo para as pessoas livres vendidas em leilões reais, continua o decreto:
“E no futuro a ninguém será permitido, sob qualquer pretexto, vender ou penhorar nativos livres, exceto aqueles que o governador das rendas do Estado sírio ou fenício entregou ao processo de execução (prosbolé = arremate de propriedade a terceiros), também daqueles sobre os quais já foi pronunciada a pena de execução, como se encontra na lei do arrendamento”[39].
Este decreto, aparentemente filantrópico, na verdade estabelece um monopólio real na venda de homens livres. É uma medida econômica, mas também política, porque a caça ao homem livre cria uma desordem perigosa na região, provocando a indignação e a revolta das populações locais.
H. G. Kippenberg observa a propósito: “Pode-se duvidar de que este decreto tenha realmente surtido efeito na Palestina, onde naquela época grassava a escravidão. Ele é digno de nota porque legaliza a escravidão como consequência da inadimplência fiscal”[40].
Muito próximo deste decreto é outro conservado na Carta de Aristeas a Filócrates, também emitido por Ptolomeu II Filadelfo, só que, desta vez, a respeito dos judeus:
“Ordem do rei. Todos aqueles que tomaram parte na expedição de nosso pai nas regiões da Síria e da Fenícia e, invadindo o território dos judeus tornaram-se senhores de indivíduos judeus, quer os tenham trazido para a cidade [de Alexandria] e para o país [do Egito], quer os tenham vendido a outros – igualmente os que são da mesma raça e que os tenham precedido aqui ou que tenham sido deportados depois deles – que os possuidores os deixem livres e recebam imediatamente em compensação 20 dracmas por cada pessoa, os militares no pagamento de seu soldo, os outros no banco real”[41].
Também os arquivos de Zenão são importantes para a compreensão da administração ptolomaica da Palestina[42].
Trata-se de uma coleção de cerca de 2.000 papiros, encontrados após 1910, perto da antiga Filadélfia, localizada nas vizinhanças do oásis de Fayum, onde o dioiceta de Ptolomeu II Filadelfo, o poderoso Apolônio, mantém sua dôréa. Descobertos por escavadores clandestinos, os papiros de Zenão são dispersos pelo mundo afora durante a 1ª Guerra Mundial. Estão em Londres, no Cairo, em New York, na Alemanha, na Itália…
Os papiros cobrem um período de 32 anos, entre 261 e 229 a.C., e trazem os arquivos de Zenão, originário de Caunos, cidade da Cária controlada por Ptolomeu II. Zenão vai para o Egito, onde entra para o serviço de Apolônio, no qual permanece 13 anos, de 261 a 248 a.C. A partir deste ano, Zenão deixa Apolônio – do qual não temos mais notícias após 245 a.C. – e se dedica a seus negócios particulares em Filadélfia. O seu último documento datado é de 14 de fevereiro de 229 a.C. A dôréa de Apolônio é liquidada em 243 a.C.
Acredita-se que teria sido para proteger-se contra possíveis problemas jurídicos e políticos futuros a respeito de suas posses que Zenão meticulosamente arquiva os papiros referentes aos negócios de Apolônio sob sua responsabilidade e os papiros relativos a seus próprios negócios.
Apolônio, ao mesmo tempo que é um poderoso ministro de Estado, encarregado das finanças e da fiscalização de todo o reino, é também um grande proprietário e negociante. Zenão é um de seus homens de confiança – administra, por exemplo, a sua dôréa durante nove anos – e cuida de seus negócios particulares, não sendo, portanto, um funcionário do governo. Mas Apolônio parece não separar bem estas duas esferas de negócios, a pública e a privada, e Zenão está também, por isso, ligado às questões públicas.
Zenão vai para a Palestina, em viagem de negócios para seu patrão, no final de 260 a.C. Fica na região até o começo de 258 a.C., isto é, por um período de 13 a 14 meses. Estamos em plena segunda guerra síria (260-253 a.C.), quando Ptolomeu II enfrenta-se com o Selêucida Antíoco II. Como o dioiceta Apolônio é também responsável pelos suprimentos do exército ptolomaico, a missão de Zenão, que atinge as fronteiras do reino, não é apenas privada.
O seu roteiro na região não é muito fácil de ser reconstituído, mas é possível que ele tenha desembarcado em Gaza e da lá ido a Marisa, na Idumeia. Nesta cidade ele se vê às voltas com a fuga de três escravos que comprara na Idumeia.
Interessante é também sua visita aos Tobíadas, na Transjordânia. Para lá chegar, ele passa por Jerusalém e Jericó, segundo um papiro da coleção. Com os Tobíadas, Zenão realiza negócios para Apolônio e para o rei Ptolomeu II, como a compra de uma menina escrava, registrada no seguinte contrato:
“No ano vinte e sete do reinado de Ptolomeu, filho de Ptolomeu, e de seu filho Ptolomeu, sendo epônimos o sacerdote de Alexandre e dos deuses irmãos e a canéfora de Arsinoé Filadelfo que estão em função em Alexandria, no mês de Xandikos, na birta de Auranítide, Nicanor, filho de Xanocles, cnidiano, do séquito de Tobias, vendeu a Zenão, filho de Agreofon, cauniano, do séquito de Apolônio o dioiceta, uma escrava babilônia chamada Sfragis, de sete anos de idade, por cinquenta dracmas. Foi fiador […], filho de Ananias, o persa, cleruco de Tobias. Foram testemunhas […], juiz, Polemon, filho de Straton, macedônio, todos os dois clerucos do corpo de cavaleiros de Tobias, Timopolis, filho de Botes, milésio, Heráclito, filho de Filipe, ateniense, Zenão, filho de Timarcos, colofoniense, Demóstratos, filho de Dionísio, aspendiano, todos os quatro do séquito de Apolônio o dioiceta”[43].
Zenão fiscaliza também a hiparquia da região norte da Celessíria. Uma hiparquia é um distrito territorial governado por um hiparco. Este distrito, assim como os nomos egípcios, divide-se em aldeias (kômê) chefiadas por um comarca.
C. Orrieux observa a propósito da visita de Zenão à fronteira com os Selêucidas: “Pode-se imaginá-lo como um enviado especial de Apolônio, fazendo o leva-e-traz entre Alexandria e a Síria-Fenícia a fim de informar seu patrão diretamente sobre os problemas financeiros colocados pela proximidade das operações militares. Sem ser funcionário ele tem a função de conduzir delicadas negociações oficiosas”[44].
Zenão visita igualmente a Galileia e fiscaliza propriedades de Apolônio nesta região. Apolônio é o proprietário da aldeia de Beth-Anath da Galileia. O seu administrador consegue aumentar extraordinariamente a cultura da vinha, mas os camponeses estão em desacordo com ele quanto à quantidade de trigo, uva, vinho e figo que lhe devem fornecer, como documenta um dos papiros de Zenão[45].
No ano seguinte, entretanto, o administrador consegue sucesso, como testemunha a seguinte carta enviada a Apolônio:
“Glaukias a Apolônio, saudações (…) Ao chegar a Baitanata, eu tomei comigo Melas e nós examinamos as novas plantações e todos os outros empreendimentos. Considero satisfatório a situação dos trabalhos. Ele me disse que a vinha tem 80 mil pés. Ele construiu uma cisterna e uma casa adequada. Ele me fez provar o vinho e eu não pude adivinhar se ele vem de Quios ou da propriedade. Tu podes acreditar que um acaso feliz te favorece de todas as maneiras. Passe bem! Ano 23, Xandikos 7”[46].
Estas notícias sobre a viagem de Zenão estão em cerca de 40 daqueles quase 2.000 papiros do arquivo recuperado próximo a Fayum. O que resulta da leitura destes papiros é a impressão de intensa atividade política e econômica dos Ptolomeus na região da Palestina. Estes administram os territórios conquistados “com a mesma desenvoltura com que um agricultor macedônio administra suas próprias terras”[47].
Outro dado interessante para se conhecer a administração ptolomaica da Palestina é a história de José, o Tobíada e de seu filho Hircano, transmitida por Flávio Josefo[48].
Os Tobíadas vivem numa espécie de feudo na Transjordânia, ao sul do Galaad. O centro do território é a birta (= fortaleza) de Amon, identificada pelos arqueólogos com o `Arak el Emir atual.
Tobias, descendente do Tobias da época de Neemias (Ne 13,4), dirige uma cleruquia lágida na Transjordânia. Quando Zenão visita a Palestina em 259 a.C. ele comanda o clã.
Diz A. Paul: “Comandante de uma klerouchia militar (cujo centro era a birta ou `fortaleza’ de família, construída inicialmente para resistir às invasões dos beduínos do deserto), Tobias era o chefe de uma importante tribo local, tendo ainda as funções de um prefeito do rei do Egito, a serviço do qual punha seus soldados, suas relações e suas influências”[49].
Duas cartas de Tobias, pertencentes aos papiros de Zenão, ilustram suas relações com os Ptolomeus. A primeira é dirigida a Ptolomeu II, a segunda a Apolônio.
“Ao rei Ptolomeu, Tobias deseja bom dia! Eu te enviei dois cavalos, seis cães, um meio-onagro, cruzamento de jumenta, dois jumentos árabes brancos de tração, dois filhotes de meio-onagro e um filhote de onagro. Felicidades! Ano 29, Xandikos 10 [= 13 de maio de 257]”.
“Tobias a Apolônio, saudações! Se tu vais bem e se teus negócios e o restante estão como tu desejas, graças aos deuses! Eu estou bem, lembrando-me de ti sem cessar, como é o certo. Eu te enviei Aineas para te oferecer um eunuco e quatro rapazes, escravos […] de excelente estirpe. Eu reproduzo, a seguir, para teu uso, as características destes rapazes. Passe bem! Ano 29, Xandikos 10 [13 de maio de 257]”. A seguir vem as características dos escravos…[50].
José, o filho de Tobias, sobrinho do sumo sacerdote Onias II por parte de mãe, nasce na Judeia em uma aldeia da família. Quando acontece a terceira guerra síria ( 246-241 a.C.), Onias II, partidário dos Selêucidas, se recusa a pagar os impostos devidos aos Ptolomeus, que é de 20 talentos. O rei Lágida, Ptolomeu III Evergetes, ameaça então reduzir a Judeia a uma colônia militar.
José, pró-Lágida, após ser designado pelo povo como chefe (prostátes), vai representar os interesses da Judeia diante do rei Ptolomeu em 242 a.C., obtendo muito mais até: consegue o direito de recolher os impostos de toda a Celessíria[51].
Com o auxílio de 2 mil soldados ele exige duramente os impostos das cidades e dos campos, enriquecendo-se com isso consideravelmente.
Com créditos samaritanos ele financia antecipadamente o arrendamento e “em lugar de 8.000 talentos para a província sírio-fenícia, José ofereceu o dobro. Dotado de plenos poderes estatais para aplicar a força, José recolheu o tributo das cidades e mandou executar os parentes dos magistrados que relutaram. As cidades provavelmente só puderam pagar as novas cargas fiscais impondo aos camponeses doação parcial em mantimentos, baseando-se no fato de que a terra era propriedade do dominador”[52].
Flávio Josefo diz que ele leva os judeus à prosperidade. Como? Diminui o número de bocas para comer, através da escravidão – que ainda rende mais excedentes – e estimula culturas mais rentáveis, por exemplo, olivais em vez de cereais.
Ao morrer em 226 a.C., seu filho Hircano o sucede no cargo, até o advento dos Selêucidas na região, tendo se suicidado quanto Antíoco IV assume o governo[53].
Vejamos um trecho do relato de Flávio Josefo sobre José, o Tobíada, através do qual poderemos apreciar os seus métodos:
“José tomou, depois, dois mil homens das tropas do rei, a fim de poder obrigar os que se recusavam a pagar os tributos e, depois de ter dado a Alexandria quinhentos talentos, foi para a Síria. Os habitantes de Ascalon foram os primeiros a desprezar suas ordens. Não se contentaram em não querer pagar, mas o ultrajaram com palavras; mas ele soube castigá-los. Mandou prender imediatamente vinte dos principais, que mandou matar; escreveu ao rei para lhe dar contas do que tinha feito e mandou-lhe mil talentos do confisco de seus bens. O príncipe ficou tão satisfeito com seu proceder, que o elogiou magnificamente e permitiu que, dali por diante, usasse deles como quisesse. O castigo dos ascalonitas encheu de temor as outras cidades da Síria, que lhe abriram suas portas e pagaram seu tributo sem dificuldade alguma”[54].
Cronologia dos Ptolomeus
Nome | Data |
---|---|
Ptolomeu I Soter | 323-282 |
Ptolomeu II Filadelfo | 282-247 |
Ptolomeu III Evergetes | 247-221 |
Ptolomeu IV Filopator | 221-205 |
Ptolomeu V Epífanes | 205-181 |
Ptolomeu VI Filometor | 181-145 |
Ptolomeu VII Néos Filopator | 145-144 |
Ptolomeu VIII Evergetes (Físcon) | 144-116 |
Ptolomeu IX Soter (Latiro) | 116-107 |
Cleópatra III | 107-101 |
Ptolomeu X Alexandre | 101-88 |
Ptolomeu IX Soter (Latiro) | 88-80 |
Ptolomeu XI Alexandre II | 80 |
Ptolomeu XII Aulete | 80-58; 55-51 |
Cleópatra VII Filopator | 51-30 |
Bibliografia
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>> Bibliografia atualizada em 20.10.2024
[27]. Cf. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico, p. 70-98.
[28]. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique I, p. 311-312.
[29]. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 79-80. Cf. também ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon. L’orizon d’un grec en Egypte an IIIe siècle avant J. C. Paris: Macula, 1988, p. 77-97.
[30]. A enfiteuse, do grego emphyteusis, pelo latim emphyteuse é o “direito real alienável transmissível aos herdeiros, e que confere a alguém o pleno gozo do imóvel mediante a obrigação de não deteriorá-lo e de pagar um foro anual, em numerário ou em frutos”, define DE HOLANDA FERREIRA, A. B., Dicionário Aurélio Eletrônico – Século XXI. Versão 3.0, Rio de Janeiro: Lexikon Informática, 1999, verbete enfiteuse.
[31]. LÉVÊQUE, P. o. c., p. 75.
[32]. Cf., para este assunto, HENGEL, M. Judaism and Hellenism: Studies in their Encounter in Palestine during the Early Hellenist Period London: SCM Press, 2012, p. 18-55. Hecateu é natural de Abdera, cidade grega da costa da Trácia. Nasce no final do século IV a.C. e visita o Egito na época de Ptolomeu I Soter. Hecateu estuda com o cético Pírron de Élis e é etnógrafo, filósofo, crítico e gramático.
[33]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 25-27.
[34]. Cf. PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 484-488.
[35]. LÉVÊQUE, P. O mundo helenístico, p. 87.
[36]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 118-122.
[37]. Cf. ABEL, F.-M. Histoire de la Palestine I, p. 51-60.
[38]. Cf. HENGEL, M. Judaism and Hellenism I, p. 24-29.
[39]. Cf. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 73-74; SAULNIER, C., Histoire d’Israel III, p. 364.
[40]. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 74.
[41]. CARTA DE ARISTEAS A FILÓCRATES, 22. Em DIEZ MACHO, A. Apócrifos del Antiguo Testamento II, p. 22-23. Cf. ABEL, F.-M. o. c., p. 62-63. PRÉAUX, C, Le monde hellénistique II, p. 568 acredita na autenticidade deste documento, pelo menos nos seus termos mais gerais.
[42]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon; ABEL, F.-M. o. c., p. 65-71; SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 450-451. Veja imagens de vários papiros de Zenão (PCZ ou P.Cair.Zen.) aqui.
[43]. Cf. ORRIEUX, C. Les papyrus de Zenon, p. 42-43. O contrato é redigido em abril/maio de 259 a.C. O documento segue as regras mais estritas para este tipo de escrito: ano de reinado, corregência, sacerdotes epônimos dos cultos dinásticos, fiador, testemunhas etc.
[44]. ORRIEUX, C., o. c. p. 42.
[45]. Cf. KIPPENBERG, H. G. o. c., p. 74-75.
[46]. Cf. ORRIEUX, C. o. c., p. 47. Esta carta está datada em 9 de maio de 257 a.C.
[47]. HENGEL, M. Ebrei, Greci e Barbari. Aspetti dell’ellenizzazione del giudaismo in epoca precristiana. Brescia: Paideia, 1981, p. 48.
[48]. Cf. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae, XII, 158-236.
[49]. PAUL, A. O judaísmo tardio, p. 178.
[50]. Cf. ORRIEUX, C., o. c., p. 43-44.
[51]. Com o título de prostátes, “ao qual estava ligado o principal cargo administrativo e financeiro da Judeia, efetuou-se, de fato, uma transferência de poderes do sumo sacerdote pró-selêucida para o Tobíada pró-lágida. Com isso, José se tornou o mais alto funcionário civil de Jerusalém”, diz PAUL, A., o. c., p. 179.
[52]. KIPPENBERG, H. G. Religião e formação de classes na antiga Judeia, p. 76.
[53]. Cf., sobre José e os Tobíadas, SAULNIER, C. Histoire d’Israel III, p. 451-454; PRÉAUX, C. Le monde hellénistique II, p. 571-572.
[54]. JOSEFO, F. Antiquitates Iudaicae XII, 181.
Última atualização: 20.10.2024 – 21h17